domingo, 30 de agosto de 2009

Expediente noturno


Mais uma noite fria. Apesar da baixa temperatura, permaneço parada numa esquina. Aguardo pelo próximo freguês. Muitos passam por mim e nem me notam, não lhes interessa me notar, não hoje. Trabalho de dia também, mas a noite torna minha profissão mais estimulante, excitante.

Minha profissão é antiga, somos muitas nesse ramo e estamos nisso desde que o mundo é mundo. Algumas, como eu, preferem a noite, as esquinas e becos, um clima mais soturno. Mas tem aquelas que preferem misturar-se entre as pessoas ‘normais’, por lugares mais tranqüilos e amenos. Uma coisa é certa, é um trabalho árduo e cansativo. Dia após dia a demanda só aumenta.

Já há algum tempo venho fitando os olhos em um jovem rapaz que todos os dias, no mesmo horário pára próximo a mim e fica conversando com um amigo durante alguns minutos. Todos os dias, mesma rotina. Os dois caminham juntos, conversam por quinze, vinte minutos, depois um deles parte e o outro permanece só, aguardando a chegada de um ônibus.

O rapaz que permanecia só, não reparava na minha presença. Olhava através de mim e nada enxergava a não ser um poste como qualquer outro. Mas o outro, aquele que todos os dias partia primeiro, aquele me encarava nos olhos. Certa vez, estando sozinho, ele se aproximou de mim e disse saber o que eu fazia. Perguntou quanto eu cobrava por algumas horas de diversão. Na verdade ele queria pagar para eu brincar com o amigo dele, garantiu que não queria me tocar, apenas assistir. Respondi que só faço o meu trabalho, não brinco com as pessoas. E que esse tipo de brincadeira costuma custar bastante caro, ele não estaria disposto a pagar. Ele afirmou que não importava o valor, pagaria a quantia que fosse necessária. Finalizei o diálogo dizendo que procurasse outra forma de se divertir.

Nos dias que se seguiram percebi que aquele jovem que aguardava o ônibus permanecia sozinho. O amigo com quem eu havia dialogado não mais o acompanhava. Aquele jovem solitário tinha algo que me encantava, não conseguia desgrudar os olhos dele desde a primeira vez que o vi. Ele parecia estar triste, cabisbaixo e eu senti um enorme desejo de abraçá-lo, mas não podia fazer isso. Minha pele descoberta e fria não traria acalento para sua alma necessitada de calor.

Esta noite o rapaz havia notado minha presença, pela primeira vez. Ele me olhou profundamente e me cumprimentou com um sonoro “boa noite!”. Enquanto passava por mim, pude ver bem de perto aqueles belos olhos verdes. Aquele olhar me arrebatava. Senti que estava chegando o momento de enfim, ficarmos mais próximos. Mas eu não tinha a certeza de nada, apenas sentia uma intuição. É sempre assim, fico aguardando até que meus serviços sejam solicitados.

Faltavam alguns minutos para a meia noite, quando o amigo dele se aproximou. Passou por mim com um olhar cheio de ódio e foi direto onde o rapaz estava, como sempre, parado aguardando o ônibus. Conversaram por cerca de dez minutos, e após três disparos, o rapaz caiu no chão, enquanto o assassino fugia.

Olhei para o rapaz ensangüentado e me abaixei, abraçando-o com carinho. Beijei seus lábios, agora tão gelados quantos os meus. Toquei sua pele fria e disse:

-Não tenha medo.
-Você vai me salvar?- perguntou o rapaz, empalidecendo.
-Infelizmente não há mais nada a fazer. Eu vim conduzi-lo nesta passagem.
-Você é a...
-Sim, eu sou a morte.

O rapaz não mais resistiu e dormiu o sono eterno. Fechei delicadamente suas pálpebras e coloquei de volta sua cabeça na calçada fria. Precisava continuar meu trabalho, alguém decidiu brincar de esconde-esconde comigo e eu bem que avisei que brincadeiras custam caro.

12 comentários:

Andréa Amaral disse...

Ai, CamilÍSSIMA...só mesmo um superlativo para tentar te enquadrar. Adoro seus textos.É incrível o fator "Surpresa" que sempre se encontra neles. Como uma criança à espera do show na festa de aniversário, sem saber do que se trata, mas feliz por saber que vai ter um; é assim que me sinto quando leio o título dos seus textos: feliz e cheia de expectativas positivas. Parabéns mais uma vez.

Camila disse...

Obrigada, Andréa, pelos elogios. Na verdade este conto é o relato de um sonho que tive esta semana. Procurei transcrever conforme as sensações se fixaram em minha mente. Não é uma excelente narrativa, mas procurei ser fiel ao filme que se passou durante meu sono, nem mais, nem menos detalhes. Que bom que consegui manter sua curiosidade! Beijinhos...

Lohan disse...

rsrs... É, vc sabe o motivo dos risos...rs
Lindo texto, sobretudo porque nasceu do onírico. E que sonho é esse!! rsrs
Mulher da vida que é da morte. Estreou o domingo com chave de ouro. Parabéns Camilíssima, o superlativo mais merecido do mundo.

Paulo Fodra disse...

Nada é apenas o que parece ser... adorei ser fisgado pela história deixando as imagens se formarem em minha cabeça apenas para receber o choque do clímax...

Beijos,

Sim! Podemos pensar! disse...

Fiquei até arrepiado,parecia mesmo um filme e que final surpreendente,eu conseguia visualizar tudo.Como sempre você arrasando com suas histórias!

Parabéns!!!

Cassie disse...

Adorei! Seus textos prendem a atenção do começo ao fim. E eu que achei que a moça era prostituta... ela era muito mais que isso! mas, vem cá... porque o sujeito matou o guri? Que maldade...

Sidarta disse...

Camila,


Eu tive a mesma impressão que a Cassiane, o que, aliás, parece ter sido a sua intenção com o texto, de, vamos dizer, "virar o jogo", surpreender. Mostrar o aparente para depois desmascarar.

Interessante a história ter vindo de um sonho, e você provavelmente deu uma roupagem literária para apresentar sua arte.

A Morte, disfarçada de prostituta. As duas são completamente impessoais, não mantém uma relação de afeto com o "cliente". Os que desejam a "prostituta", os "assassinos", os que se envolvem de alguma forma nesse meio estão flertando com a "Morte", mesmo sem ter a consciência disso.

Engraçado o rapaz parecer ter a intuição de que vai morrer, já que só percebe aquela mulher momentos antes de seu assassínio. Ela não, já sabe um bom tempo antes, já "flerta" com ele.

O beijo da morte, o único que o ser humano teme... Nada melhor do que narrar esta tragédia com um final surpreendente de um toque de lábios... Romântico e erótico este encontro final com a morte.


Beijos!

Camila disse...

Sidarta, você entrou na minha mente para escrever esse comentário. Você sintetizou tudo o que eu quis abranger neste conto. Você fez uma análise perfeita, uma resenha impecável do meu conto. Muito obrigada!
Obrigada a todos pelos comentários.

Camila disse...

Autores S/A, obrigada pelo carinho e pela amizade.
Cassiane, obrigada pelos constantes comentários, me estimulam a sempre tentar melhorar.
Paulo... Que honra... Diretamente de "A red knight"! Ter um serial writter como você aqui, acompanhando meus modestos contos me deixa besta de tão feliz. Em breve cometeremos um texto juntos! Bjs.

k@ disse...

Camila, de onde vc tirou isso? Que história louca, arrepiante, parece aqueles filmes de terror!!Fiquei com medo...
Agora aqui, porque olhos verdes ein? Logo verdes!!! São tentadores!!! rsrsrsrs
Parabens, vc sim é uma artista, sou sua fã! bjs

Lohan disse...

Olhos verdes costumam ser os mais tentadores...rsrs
Bjs

mauri disse...

(confesso q estou acanhado de comentar aqui, me sinto como uma criança no meio das pessoas grandes.. mas agora já comecei)
Sua historia me fez viajar! totalmente imprevisível, parece mesmo um filme de terror, só que mais interessante!