segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O homem que queria ser outro - Parte 4 - Revelação

Olá amigos, estamos na parte 4 desta história que vem atraindo muita curiosidade. Fico feliz por isso, e espero, a cada semana, poder recompensar a todos com novas surpresas. Abraços a todos, e boa leitura!


As pessoas iam, aos poucos, deixando o cemitério. Exceto Lia Neide, com seu vestido negro. Ela ainda segurava uma rosa vermelha. Os olhos lagrimejantes miravam um horizonte perdido. Sua vida estava cada vez mais fragmentada. Seu coração, apenas batia. Mas já não batia por nada, nem por ninguém. Estava oco, vazio; já não era mais aquele coração que parecia sorrir em seus desenhos pueris, na infância que lhe reservava boas lembranças. Agora era incolor, sem aquele vermelho vivo que a tornava viva. Agora, vermelhas eram somente as pétalas daquela rosa em sua mão. Rosa esta que ela agora daria um destino.


Caminhou até túmulo daquela família, onde fora enterrado o corpo do homem que ela, na verdade, amava... E lançou a rosa ao lado da cruz de madeira ali fincada, na terra úmida, revolvida. Ela secou as lágrimas, e disse:
-Adeus, A...
-Lia! – Chamou sua mãe, Dona Beatriz.
Lia olhou para trás. Em seguida, relanceou uma última vez o túmulo dele. Calada, ela se benzeu, e foi ao encontro de sua mãe, antes que a tristeza abatesse seu corpo por completo e, já sem resistência, ela ali fosse enterrada também.

Três dias atrás...

Ariano é acordado por sua mãe, que bulia levemente o seu ombro. Ela segurava o celular.
-Ariano, é a sua chefe. Ela insiste em falar com você.
-Ah sim... Obrigado, mãe. – Respondeu ele, ainda anestesiado pelo sono.Ele apanha o celular.
-Julia?
-Oi, meu querido. Desculpa eu incomodar você. Como está?
-Estou bem. O médico pediu que eu aguardasse aqui os resultados dos exames, por precaução. O que uma queda da escada não faz a uma pessoa... – Resmunga.
-Os resultados serão os melhores, tenha fé nisso. O Euclides está aqui, ao meu lado, juntamente com o Haroldo. Estão mandando um abraço.
- O Euclides não está chateado comigo?...
- Por que estaria?-Por nada... Esquece.
- O motivo da minha ligação tem a ver com ele. Amanhã você não terá condições de publicar sua crônica. Então... O Haroldo deu a idéia de publicar uma crônica do Euclides em seu nome.
- Ora, mas... Como assim? Por que uma crônica do Euclides?
- Ele pediu que trocassem seu setor de trabalho...
- E por que publicar em meu nome? O texto não é meu!
- Eu sei, mas é isso mesmo que estou reivindicando aqui por você. Por isso decidi ligar, e te comunicar. Você tem o direito de autorizar ou não.
- Eu não vejo motivo para publicar em meu nome. Não aceito isso.
Julia cobre o fone com a mão e anuncia:
- Ele não aceita.
Inconformado, Haroldo pede o fone.
- Fale com calma com ele, ok? O garoto está hospitalizado. – Recomendou Julia.
Ela passa o fone para o editor.
- Como vai, Ariano? Aqui quem fala é o Haroldo.
- Olá, senhor. Estou bem.
- Por que não aceita a proposta? O que tem contra a escrita do seu amigo?
- Não tenho nada contra, quero deixar isso bem claro. Só que não vejo necessidade dessa farsa. Isso pode ser descoberto. Meus leitores são bastante atentos e conhecedores do meu estilo.
- Mas os estilos de vocês são bem semelhantes!
- Mas não são iguais, senhor. Eu sugiro o seguinte: publiquem a razão da minha ausência, e, como provavelmente já pretende lançar o Euclides na área das crônicas literárias também, aproveite para anunciar a estréia dele na próxima semana.-Nossa, realmente, é a melhor idéia! Como já sabia que eu ia lançá-lo nesse setor?
- O Euclides conseguiu o que queria... Ele é bastante adepto a mudanças, sabe.
Haroldo fez que não entendeu, e foi logo cortando este assunto.
-Ok, então está confirmado! Amanhã Euclides assumirá seu lugar, só amanhã. Publicarei que você passou por alguns problemas de saúde esta semana, mas nada grave, e que voltará na próxima semana. Desejo melhoras a você, rapaz. Obrigado pela idéia.
- Por nada. Eu é que agradeço.
-Passe bem.

Haroldo desligou.
-Tudo certo. Você terá seu nome publicado, Euclides. Saiba que é um homem de coragem. Há dois anos Ariano publica seus textos conosco, initerruptamente, às terças-feiras. Substituí-lo requer bastante cuidado e talento, o que você também tem de sobra, não?
Euclides, um pouco desapontado pela mudança de planos, assente com a cabeça.
- Estou disposto a fazer sempre o meu melhor. Será mesmo esta crônica ou o senhor prefere outra em específico?
- Será esta! Ficou ótima. Pode se despedir do setor esportivo, rapaz.
O celular do editor começa a tocar.
- Meus amigos, agora preciso ir. Me dêem licença. – Justifica-se, ao olhar o visor do celular.
Haroldo sai apressado da sala, deixando Euclides e Julia a sós.
- Pronto, Euclides. Tenho que admitir... Você foi muito esperto.
- Não entendi. Sinto que há algo malicioso por trás desse elogio.
- Está sentindo coisas demais. Digo que foi esperto porque eu sei que, para convencer o nosso rigoroso editor em tão pouco tempo, ainda mais você, um novato no jornal... Olha, não é pra qualquer um.
- Eu não sou qualquer um, dona Julia. Agora com licença, preciso transferir meu material de trabalho para outra sala.
Euclides se retirou da sala, retumbante. Julia ficou com os olhos vidrados na porta por alguns segundos após sua saída, pensativa, batendo a caneta sobre a mesa.
- Aonde você quer chegar, Euclides... Aonde...?– Sibilou ela, perspicaz.

Já era noite quando Ariano recebia o parecer médico. Seus pais estavam ao seu lado, mais apreensivos do que ele.
- Nada foi encontrado em seu cérebro, a não ser uma pequena lesão, superficial, do lado esquerdo da sua cabeça.
- Mas doutor, essa pequena lesão é que provocou esse desmaio?– Perguntou o pai.
- Aparentemente sim. Novos desmaios podem acontecer. No entanto, podem ser evitados também, com um medicamento que vou receitá-lo. Outra coisa: evite fortes emoções, como aborrecimentos, ou festas exuberantes, excesso de ansiedade... Repouse, se mantenha tranqüilo. Em caso de novo desmaio, mantenham as pernas dele erguidas de vinte a trinta centímetros, verifiquem a pulsação dele, e molhem seus pulsos e seu pescoço.
- Essa lesão pode avançar para um estágio pior? – Indaga Ariano, preocupado.
- Não mentirei para você. Pode, caso você não siga minhas orientações médicas. Na pior das hipóteses, pode criar um coágulo, chamado de aneurisma cerebral. E se isso acontecer, você precisará ser operado às pressas.
- Minha Nossa Senhora!, exclamou a mãe.
- Fiquem calmos, é uma possibilidade remota. Vou prescrever os cuidados, e liberar o garoto. Aliás, Ariano... Sua mãe disse que escreve para um jornal, e me mostrou um texto seu. Você vai longe, rapaz.
- Obrigado, doutor. Espero mesmo que meu caminho seja longo, e não se finde por causa de uma queda da escada.
- Não! Ainda o verei autografando livros. E um dos livros será o meu, combinado?Ariano inclinou a cabeça, para esconder as lágrimas que nasciam.
- Combinado...

Amanheceu a terça-feira. A primeira terça-feira sem Ariano desde o seu ingresso no jornal. Euclides comprou o jornal, o folheou rapidamente, e alcançou a página seis. A página. Lá estava, na margem superior, a sua foto, e, ao lado o comunicado sobre a ausência de Ariano. Mais abaixo, o texto. A crônica de sua autoria. Euclides abriu um largo sorriso, arrepiado.
- Assumi o seu dia, Ariano. Abaixo a hegemonia! Viva a democracia!
E saiu pelo calçadão do Leblon gritando, com o jornal esvoaçando nas mãos. Parou na próxima banca de jornal e arrematou todos os jornais “Boca do povo”. Saiu distribuindo os jornais, de bar em bar. Distribuía aos transeuntes também. Chegou em casa extasiado, e foi direto para o computador. Anunciou a todos os seus amigos do Orkut sobre o texto publicado. Foi ao site do jornal, e acessou os comentários sobre seu texto. Lá, inventou uns nomes e registrou comentários do tipo: “Parabéns, você superou o Ariano Bezerra”, “Grande texto, os políticos estão mesmo afundando o nosso país”, “Você deveria assumir a terça-feira!”, “Parabéns, você se utiliza de palavras requintadas para expor suas idéias. Isso denota cultura.”Feito isso, recostou-se no respaldo da cadeira e suspirou, satisfeito. Desceu e encontrou sua avó sentada rente à janela da sala, observando a movimentação na rua, três andares abaixo.
- Vó, a senhora já leu o jornal de hoje?
-Ainda não. Mais tarde lerei.
Rodolfo, um homem esguio e de físico atlético, vem descendo a escada, vestido com sua roupa de malhação. Este é o pai de Euclides. Os cinqüenta anos de idade estão longe de condizerem com sua aparência física. Nos tempos vagos do trabalho, pratica exercícios.
- Caiu da cama, Euclides? Só dorme até tarde, o que aconteceu hoje? – Zombou o pai, sentando-se no sofá para ajeitar as meias.
- Eu acordo às nove todos os dias, ok? Isso é dormir até tarde?
Em seguida desce sua mãe, Amália. Uma mulher charmosa, de belos cabelos negros, voz arrastada e enjoada, daquelas típicas de madame da Zona Sul.
- Filho, estou indo dar uma caminhada no calçadão.
- Eu já comprei o jornal.
- E...?
- Disse para que vocês não o comprassem de novo, só isso.
- Ah, eu nem ia lembrar disso. – Disse o pai, enquanto alongava as pernas.
- Hoje eu escrevi, substitui o Ariano Bezerra.
- Ah, que pena. – Resmungou Dona Hilda, da janela.
Euclides, meio sem chão entre os três membros de sua família, reflete no que irá dizer a seguir.
- Talvez eu almoce fora hoje. – Disse, esperando que alguém questionasse a novidade.
- Vamos, querida, já estou atrasado pra academia.
- Vamos, não quero perder mais nem um minuto desse sol!E saíram. Euclides ficou parado, no centro da sala. Olhou para a avó, que não lhe retribuiu o olhar, e continuou mirando a rua. Viu-se só, como sempre. Resolveu subir para o seu quarto, e lá, tirar proveito da solidão, lendo os mesmos livros que Ariano tinha lido.

Eram três horas da tarde quando Euclides chegou no trabalho. Agora, acomodado em novo setor, a mesma sala de Ariano, ele se prostra diante de seu computador e acessa novamente o site do jornal. Ao verificar os comentários da sua crônica, se surpreende. Abaixo dos cinco que ele mesmo havia registrado sob pseudônimos, ele encontra mais de dez comentários, postado pelos fiéis leitores das crônicas de Ariano.
- O quê?? – Ele se assusta, arregalando os olhos epiléticos.Dentre os comentários, os que se destacavam eram: “a falta que Ariano faz...”, “falar de política é demasiado enjoativo para quem está interessado em bons textos culturais”, “Volta Ariano!!”, “O que aconteceu com Ariano Bezerra??”, “Esse cara só manda bem em crônicas esportivas. Falar de política com esse vocabulário rebuscado, ninguém merece. Volta, Ariano”, “Ler jornal com um dicionário do lado é pior que ler sinopse de novela repetida” “Em que hospital foi internado Ariano Bezerra? Por favor, dêem noticias!”...

Abismado com a má repercussão, Euclides começa a comentar, desvairadamente, em seu próprio nome. Rebate todas as críticas, com muito despeito. “Nenhum de vocês possui titulação para me dirigir críticas! Quem são vocês? Leitores de gibis e revistas pornográficas! Decerto que nunca leram os grandes clássicos da História, ou sequer estudaram a teoria literária. Não gostam de política porque não amam o próprio país! O Brasil é assolado pelos maus governos, e vocês não querem abrir os olhos para isso. Quem são vocês, senão brasileiros que não sabem ser brasileiros?”.A partir daí, inicia-se uma grande “guerra virtual”. Os leitores fanáticos de Ariano versus um Euclides dos Santos irado, sem limites. Euclides não aceitava uma crítica sequer. Todas eram rebatidas de bate-pronto. Os comentários iam sendo multiplicados. Euclides já recebia xingamentos – a baixaria estava instalada.Euclides não conseguia se conter, e seus dedos deslizavam ávidos sobre o teclado; vez em quando suas mãos cerradas socavam a mesa, seus olhos flamejavam de raiva. Sua testa suava, suas mãos já começavam a se umedecer. Até que uma pessoa se aproxima dele...

- Euclides.
Ele ignora o chamado.
- Euclides dos Santos, por favor.
Ele olha para o seu lado esquerdo. Era Julia, imponente, com um semblante sisudo.
- O que foi, hein? Não vê que estou ocupado? – Diz ele, grosseiramente.
- Ocupado! – Ela ri – Você está fazendo um vexame do tamanho do seu orgulho!Euclides cessa a digitação e se levanta, encarando Julia.
- O que disse?
- Pensa o quê da vida hein, rapaz? Eu acompanho hora a hora o site do jornal, principalmente os assuntos ligados à redação. A opinião pública é essencial para nossos projetos, para o jornal!
- A opinião pública! Você sabe o que significa a palavra “pública”? Povo, coletivo, massa. Gentalha. A massa é ignóbil. Nunca deve se seguir o que a massa diz. Eles dizem o que são manipulados a dizer. São uns alienados, não são titulados, não possuem opinião própria! É desse tipo de gente que vocês consideram as opiniões?
- Tipo de gente... Euclides, o que é você? Suponho que seja um homem de plena capacidade, de Q.I 190, com pós-doutorado em “saber tudo”, autoridade máxima da nossa nação. O que é você? Nós recebemos opiniões de todos os tipos, e de pessoas tituladas também, conforme você diz. Ou você acha que só os jornais renomados são lidos por esses especialistas?
- Definitivamente, eu acho.
- Então que o faz aqui, cara? – Alterou-se – Se quer ser criticado por um Luis Costa Lima da vida, vá escrever no jornal O Globo, no Diário Oficial, o cacete a quatro!
- A gente sempre começa por baixo.

A dor da raiva. Quando explode no peito, só tem um jeito pra curar: extravasar. Naquele instante, a vontade de Julia era acertar uma de direita no rostinho de anjo daquele sujeito emproado. E olha que ela se garantia; quando jovem, nocauteara mais de cinco meninos em brigas de rua.
- Moleque. Isso é o que é. Vergonha, essa discussão no site... O editor lerá tudo isso, o dono do jornal também. Sua reputação irá por água abaixo. Aliás, você chegou a formar alguma reputação? Tenho minhas dúvidas. Sabe o que eu acho que você quer? Alcançar um êxito impossível de ser alcançado por você. Um êxito como o de Ariano Bezerra. Ter o talento que ele tem. O problema, meu caro, é que talento não se adquire. Se nasce com ele. A estética do seu texto me dá náusea, e pelo visto não fui só eu quem reparei isso. Cheio de palavrinha bonita, arcaica... Que isso, estamos no século vinte e um! Você está cursando Jornalismo, e já devia saber como deve ser escrito um texto jornalístico. E isso o nosso amigo Ariano sabe de cor e salteado. Sabe de prática, de talento. A essência dos textos dele é inigualável. Se pensou que fosse igualar o sucesso dele, se deu mal, cara. Bateu com a cara no muro. Incrível como as pessoas se preocuparam mais com a saúde do Ariano do que com o seu texto inaugural, haha. Até hospitalizado ele ofusca você, Euclides.
- Você foi longe demais.
- Você foi. – Enfatizou Julia, apontando o dedo para Euclides – Você foi longe demais. Nem mesmo este jornaleco de quinta categoria merece um profissional como você. Estando aqui, você já foi longe demais. – Ironizou – Um profissional que se preze sabe acatar críticas, sabe lidar com isso. Sabe reconhecer suas limitações. Sabe se conformar em ser ele mesmo. Ontem você disse que não era qualquer um. Hoje, para mim, você é menos do que qualquer um. Você não é ninguém.
Euclides engole a seco, e seu olhar epilético é tão forte que deixa o corpo de Julia inteiramente hirto. Ela sente um vento gélido tocar sua pele, mas não perde a postura.
- Agora me dá licença. Já falei tudo o que tava entalado aqui, na minha garganta – Diz, apontando para o pescoço.
Julia se retira da sala de Euclides. Ele fica ali, remoendo todas aquelas palavras. Num acesso de raiva, ele derruba todas as folhas e objetos que estavam sobre a mesa de uma só vez.
-Desgraçada! Você me paga! – Grita, com um olhar demoníaco.
Euclides não demorou em se prontificar para deletar todos os seus comentários antes que eles fossem visto pelos seus superiores. Saiu furioso do jornal. Ficou vagando pela rua, sem rumo. Entrou num bar e pediu uma dose de uísque. Seria a primeira dose de sua vida. O máximo que bebia era champagne adocicado nas viradas de ano. E às vezes, um copo ou outro de cerveja. Mas, definitivamente, não era adepto ao álcool.
Debruçado no balcão, ele vira a dose de uma só vez. Sente uma forte ardência tomar conta do seu interior, como se todos os seus órgãos fritassem com aquela bebida. Sentiu-se nauseado, e foi para o banheiro rapidamente. Deparou-se com um banheiro nada higiênico. Foi direto para a privada – o cúmulo do asco, de tão fétida e suja - e lá vomitou tudo o que tinha no estômago. Uma dose foi o suficiente. Misturada ao ódio, ao despeito, e à realidade que insistia em lhe dizer que Julia estava certa, a dose de uísque foi mera coadjuvante. Seu orgulho foi ferido, sangrava. Não podia dar o braço a torcer! Mas os pensamentos latejavam: “A essência dos textos dele é inigualável. Se pensou que fosse igualar o sucesso dele, seu deu mal...” “Talento não se adquire. Se nasce com ele.”Euclides, ainda agachado rente à privada, com a boca e as narinas sujas com resquícios de vomito, começa a bater a cabeça contra a parede. Até que na quarta vez, ele desmaia, ali dentro daquele cubículo.

No jornal, Julia procura saber se Euclides ainda estava presente.
- Não senhora. Eu o vi sair bem esquisito daqui. – Informou uma jornalista.-Obrigada.
Julia se dirigiu até o setor esportivo. Lá, ela chama Cláudio, um dos repórteres que cobriam as partidas de futebol.
- Claudinho, querido, preciso saber de uma coisa. Você tem um minuto pra mim?
- Tenho dez, Julia. – Sorri.Os dois se afastam um pouco do alvoroço.
- Em que posso te ajudar?
- O Euclides. Ele deixou o setor esportivo ontem, você soube?
- Claro. Ontem ele veio aqui e avisou a todos sobre sua mudança. Disse que foi solicitado pelo editor-chefe, felicitamos ele, enfim...
- Ele disse isso?-Com certeza. Mas há algo de errado, Julia?
- Ele pediu transferência. Não foi solicitado conforme disse a vocês. Mentiroso. Alguma vez vocês tiveram algum tipo de desentendimento com ele aqui?
- Nunca! – Sorriu – Ele era até carismático, contava umas piadas sem graça que nos fazia rir. Apesar do pouco tempo aqui, o Euclides deixou saudade.
- Minha nossa... – Boquiaberta.
- O que, Julia?
- Nada, nada, esquece. Eu pensei que ele tivesse arrumado confusão com vocês, só isso. Me enganei, pelo visto... – Disfarçou.
- Não, ele nunca arrumou problema.
- Cláudio, te agradeço muito. – Agradeceu, segurando nas mãos do repórter – Agora preciso ir avisar uma coisa ao editor. Fica na paz.
- Que nada, Julia. Quando precisar...
Julia sai a passos sôfregos até a sala de Haroldo. Ela bate na porta.
- Entre! – Autorizou Haroldo.
Ela abre, e vai logo dizendo:
- Precisamos conversar. É sobre o Euclides.

Já eram seis e meia da noite quando Euclides chega em sua casa. Meio desnorteado, ele cruza a sala e vê, sobre a mesa de centro, o jornal aberto, na página seis. Ele caminha até a mesa, pega o jornal e o rasga em vários pedaços. Nesse momento, seus pais estão descendo a escada. Estão vestidos com roupas de gala; ele com um smoke invejável, e ela, com um vestido azul um pouco decotado.
- Filho? Chegou agora em casa?
- Parece que sim, não acha? – Responde ele, com os nervos a flor da pele – E vocês, para onde vão desse jeito?
- Hoje é nosso jantar de aniversario de casamento. Não vai nos parabenizar? – Diz Amália, a um sorriso meigo e um requebrado repleto de classe, já defronte o filho.
Euclides estava em convulsão. Seu olhar epilético piscava a todo instante, como que se fosse um tique nervoso. Seu corpo suava por inteiro. Ele olhou para a mãe e disse:
- Parabenizar? Quantas vezes algum de vocês me deram parabéns pelos meus textos no jornal, hein?
Amália e Rodolfo, que ajeitava seu smoke, se entreolham.
- O que foi isso Euclides? Que frescura é essa agora? – Bradou o pai.
- Frescura? Frescura eu vejo estampada na cara mal lavada de vocês dois!
Do alto da escada, Dona Hilda observava a tudo.
- Enlouqueceu, é?
- Olhe os olhos dele, amor! Ele não está normal! – Assustou-se Amália.
- São os meus olhos de sempre, mamãe! Você que nunca parou para observá-los. Eu nunca sou notado nessa casa. Família de merda! Nunca ninguém se importa comigo aqui!
- Não diga isso! – Berrou Amália, contristada – Está sendo injusto! Nós sempre te demos tudo! Você, um homem com 25 anos na cara, que já podia ter sua casa própria, mas não! Se não nos importamos com você, porque ainda vive sob nossas asas? Ingrato!
- Vivo aqui porque quando me ofereceram um apartamento, senti que faziam isso para se livrarem de mim! Mas eu não dei esse gosto a vocês, jamais daria... A partir daí foi que eu percebi o quanto vocês me menosprezam. Tudo o que faço está horrível, está inferior ao padrão! Quantas vezes leram os meus textos, meus trabalhos da faculdade? ...
- Filho, você sabe que eu não gosto de ler nada sobre esporte...
- E eu odeio ler! – Complementou o pai.
- Vocês foram assistir minhas apresentações na faculdade? Meu pai faltou a minha própria formatura! Disse que me formei em Letras pra morrer de fome, e não foi me prestigiar por isso... Pensam que me esqueço desse dia?
- Eu estava viajando a trabalho...
- Mentira!! Eu sei de tudo, tudo! Vocês sempre o preferiram!
- Para com isso, Euclides! Basta! Vejo nos seus olhos uma outra pessoa. Não é você! – Exasperou Rodolfo, se aproximando de Euclides.
- Sou eu, sou eu! Me enxerguem ao menos uma vez na vida! Me ouçam!
- Está drogado, só pode...Amália leva as mãos a cabeça após esta conclusão.
- Euclides... Me diz a verdade: você fez uso de droga?
- Querem saber? A maior droga da minha vida é a minha família! – Define, lágrimas escorrendo dos olhos.
Euclides sobe para o seu quarto em disparada. Sua avó o vê entrar no quarto.
- Nossa, esse cara não consegue ver ninguém feliz! – Exclama Rodolfo.
- Estragou a nossa noite... – Lamentou Amália.-Não, não estragou nada! É isso que ele quer, Amália. Vamos para o nosso jantar, esqueça o Euclides. Venha.
Rodolfo pegou em sua mão e a conduziu até a porta. Eles se foram.

Julia estava ao volante quando ligou para a casa de Ariano. Quem atendeu foi Arlete.
- Como vai, dona Arlete? O Ariano está bem? Quais foram os resultados do exame?
- Sim, está. Os exames não detectaram nada de grave, graças a Deus.
- Eu até iria aí, mas estou meio sem tempo... Poderia chamá-lo para mim um instante? Preciso muito contar algo a ele.
- Me desculpe, mas... Ele adormeceu há pouco. Anda muito sonolento, começou a tomar um calmante hoje. Está em recuperação. O médico disse que ele não pode sofrer nenhum tipo de emoção forte. Precisa se manter tranqüilo, em repouso, por uma semana, ao menos.
- Ah sei... – Murmurou, em forma lamentosa – Nenhuma emoção forte...
- Por que, aconteceu alguma coisa?
- Não, imagina. Fico feliz pela saúde dele. E torcendo pra que ele volte logo pro jornal. Faz muita falta o seu menino.
- É, ele é especial mesmo. Não quer deixar recado?
- Infelizmente, é só com ele. Mas de qualquer forma, obrigada. Dê um beijo nele por mim.
- De nada, beijos.
Julia desligou e lançou o celular sobre o banco do carona. Em seguida, ela soca o volante.
-Droga! Pobre Ariano... Mas não vai demorar muito pra verdade vir à tona. O Euclides que se cuide.

Euclides estava enclausurado em seu quarto, ao som de uma ópera de Tchaickóvski no último volume, o Concerto número 1. Deitado na cama com o os olhos fitos no teto, ele não percebe a entrada de sua avó, no quarto. Sorrateira, vestindo seu vestido de cetim claro com adereços pretos, os cabelos arrumados em coque - ela se aproxima do aparelho de som, e abaixa o volume. Ele olha para ela, irritado.
- Tira a mão daí, velha enxerida!
- Veja lá como fala comigo, moço. Eu não sou sua mãe, muito menos o tonto do seu pai. Sei muito bem que não está drogado. Sei muito bem que é você.
- Quem sou eu? Ah, a senhora então sabe quem eu sou? Por favor, me diga quem sou, porque nem eu sei.
Euclides se senta na cama.
- Você sempre tentando ser o outro... Euclides, Euclides... Até quando? Até quando essa busca fatigável?
Euclides se sente ofendido, e se levanta da cama. Caminha até a velha, com uma expressão interrogativa.
- O que está dizendo, vó?
- Desde criança você não se contenta com o que tem e com suas aptidões.
- Tomou o seu remédio, vó? Porque não parece.
- Estou muito lúcida, rapaz! Sou a mais lúcida desta casa! Eu venho te observando, desde a infância! Te conheço como a palma de minha mão. Sei do que é capaz.
- Do que sou capaz?
- De tudo. – Ela diz, cravando um olhar tenebroso no olhar epilético do neto.
- O que está insinuando?
- Sempre desconfiado... Como quem esconde mil segredos dentro de si...
- A senhora ainda tem coragem de ficar do lado deles? Não vê o que passo aqui!
- Não estou do lado de ninguém, caia na real. Estou do lado dos fatos. Esta não é a família dos sonhos, Euclides, mas é a sua família. É a família que você plantou.
- Eu não escolhi nascer nesse inferno.
- O inferno nasceu com a morte do seu irmão.
A lembrança da morte de Ernando... O jovem Ernando. Aquela recordação fechada, quase impenetrável na memória dos membros daquela família. Em Euclides, era quase insuportável a dor daquela lembrança. Era a facada mais profunda que ele poderia receber.
Euclides oscilou pelo quarto, atordoado.
- O que foi, Euclides? O remorso ainda o persegue?
- Cale essa boca!! – Berrou ele, voltando a encarar a avó, agora muito furioso.
- Eu não tenho medo desses seus olhos. Através deles, eu enxergo tudo. As trevas que há em você.
- Sai do meu quarto! Agora!!! Sai, é uma ordem!!
Dona Hilda ainda deixa escapar um risinho cínico, e deixa o quarto, na lentidão de seus passos longevos. Euclides, mais atormentado do que nunca, resolve ir tirar mais uma satisfação com a velha. Ela, que já havia alcançado o topo da escadaria, se vira para ouvir o que Euclides tinha a dizer. Ele chega com mansidão.
- Vó, me explica isso... O que a senhora sabe?
- Eu sei de tudo.
- Tudo, mas tudo o que?
- Chega de se fazer de santo! Sei que você matou o seu irmão. Assassino... – Acusou, com uma voz venenosa.Euclides não contém as lágrimas.
- Eu não o matei. Ele...
- Ele se afogou! Ah, coitadinho! E você presenciando tudo. Eu fui a primeira a chegar no local da tragédia... Meu neto, morto naquela maldita piscina, e você ali, perto, fingindo ter chegado ao mesmo tempo. Mentira! Vocês estavam juntos o tempo todo!
- Por que eu mataria o meu irmão?
- Porque ele era mais inteligente que você. Ele sabia montar nos cavalos da fazenda, você tinha medo. Ele conquistou a menina mais cobiçada do município, você invejava a beleza dele... Seu irmão sabia de um tudo, e você... Você sempre foi medroso, mais limitado. E obviamente, você via seu irmão ganhar os melhores elogios, as melhores recompensas, tudo de melhor. Afinal, ele era melhor que você.
- Você disse que ele sabia de tudo... Ele não sabia nadar. – Disse, arrefecido.
- Maldito seja você. Matou-o exatamente em seu ponto fraco. Por isso está passando por todo esse sofrimento, Euclides. Jamais irá se encontrar. Sua vida estará sempre no outro, pois todos são melhores do que você. Você nunca se dará por satisfeito. A inveja vai consumir mais rapidamente os seus dias. Irás morrer seco, sem brilho, sem nunca ter sido ninguém. Deus te marcou, Caim.
- Eu sou o melhor! Sempre fui! – Berrou, visceralmente - Maldita é a senhora... Velha estúpida. Nove anos depois e ainda chora a morte do netinho querido. Sempre soube que eu o matei... Por que nunca me entregou?
- Não tenho provas, mas sempre soube, aqui, dentro do meu coração. E também, imagine o desastre que eu causaria na família ao ter que revelar toda a verdade...
- Por isso sempre me tratou com indiferença. Nunca me deu a atenção que toda avó dá ao seu neto... E continuará assim, até a morte. Esse segredo, essa indiferença...
- Já basta esse cinismo! Pois agora eu mostrarei a todos quem você é, sabe porque? Porque percebo que em breve você fará uma nova vítima... Eu impedirei que isso aconteça.
- Você? Haha, uma velha de oitenta e dois anos nas costas? Olha que velhos morrem fácil, fácil. Ainda mais a senhora, que sofre de labirintite... Coitada. Vai que perde o equilíbrio numa situação dessas, perto da escada, e bummm... Vai-se embora.
- Sai de perto de mim, demônio! Vai morrer sem nunca ter se encontrado!
- Disse que sou capaz de tudo, não disse? Ou sou eu o velhote que não escuta direito? – Dizia, zombeteiro.
- Satanás!
- Acabo de me identificar com ele. Vou te livrar desse sofrimento, vozinha. A vida é dura... Será melhor para a senhora descansar nas nuvens de algodão. Não era essa a historinha que contava pra gente? Que quando se morre, se passeia em nuvens de algodão? Sabia que o Ernando desejou morrer só pra passear nas nuvens? Eu apenas realizei o sonho dele...Euclides começa a gargalhar, sem piedade. Dona Hilda, ao notar o ápice de sua loucura, decide descer a escadaria, apoiando-se no corrimão. Euclides a vê descer dois degraus e diz:
- Não tem escapatória, vó. Bom Voyage.Euclides desce um degrau, estica os braços e dá um forte empurrão nas costas corcundas de sua avó. Ela se agarra ao corrimão como quem se agarra ao último fiapo de vida. Ele tenta arrancar suas mãos frágeis do corrimão, mirando seus olhos desesperados, que clamavam pela vida, ainda que cansados pela idade avançada. Mas ele, sem nenhuma compaixão, arregala ainda mais aquele olhar epilético, e finalmente, solta suas mãos do corrimão.
- Ahhh!
Foi o último berro da velha. Ela rolou dez degraus. Do alto da escada, Euclides ficou a observá-la, lá embaixo, mortificada. Ele sentou-se no degrau, apoiou o queixo numa das mãos e analisou a situação por alguns instantes, com uma expressão naturalíssima. Resolveu descer a escada. Calmamente, passo a passo, ele alcança o corpo da avó. Se aproxima dela, e se agacha. Ele olha nos olhos dela, que por sua vez, estavam arregalados de horror. Pela boca entreaberta da velha ainda se sentia um resquício de ar se esvaindo. Euclides conferiu sua pulsação.
- Maldita. Bem que dizem, vaso ruim não quebra. Me desculpa, vó, mas a senhora precisa morrer agora. Quem mandou ficar me ameaçando? Não sabe, com toda sua experiência de vida, que um bicho acuado procura sempre o melhor meio para se defender? E geralmente, sua defesa... É o ataque.
Euclides ainda olhava nos olhos de Dona Hilda, que podia ouvi-lo, mas não tinha forças para falar nada. Chegou a sussurrar algo...-Sa...ta...nás...-O que vou fazer agora? – Indaga ele, se erguendo – Não posso assassiná-la com minhas mãos. Em todo caso, ela se estabaca da escada... Se eu asfixiá-la, a perícia pode descobrir... Vó, que tal mais uma aventura radical na escada, hã?Euclides passa por cima do corpo da avó, se inclina e segura em suas pernas, uma já fraturada. Ele começa a puxá-la de volta para o topo da escada. A subida é vagarosa, tortuosa; a cabeça da velha vem se debatendo a cada passagem de degrau. Com muita dificuldade ele consegue trazê-la consigo até quase o cume.
- Bem, agora preciso virá-la ao contrário... – Disse, ofegante.
Euclides move o corpo de sua avó, colocando-o frontalmente, em direção a descida da escada. Ele a levanta um pouco, segurando em suas costas, e a empurra, promovendo uma nova queda da velha. Ela cai de cabeça, fraturando o pescoço. Rola até quase o fim da escada. Ele, ainda fatigado pelo “trabalho”, desce e verifica os pulsos dela. Percebe em seguida o pescoço virado. Os olhos, ainda esbugalhados, como se ainda esbanjassem vida. Ele, incomodado com aquela visão, fecha os olhos da falecida.-Enfim, morta.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA...

6 comentários:

Andréa Amaral disse...

Gente!Você e Camila juntos irão fazer Janete Clair se revirar no túmulo! Haja morte e mistério! Amei "mais uma aventura radical, vó." Pena que ela não rolou numa prancha de surf de areia pelo corrimão.kkkkk...psicopata pro Euclides é pouco. Ele é irmão da Nazaré Tedesco? Wonderful ,Lohan. Me deu uma MEDA. Tô doida que chegue a próxima segunda. bjs.

Sim! Podemos pensar! disse...

Rapaz!!!

Também lembrei da Nazaré Tedesco kkkkkkkkkkkk

A cada semana a história esta melhor,logo que vi achei muito grande(ando muito ocupado) e ia deixar para ler mais tarde,mas quando comecei a ler as primeiras linhas,não me contive,prendeu totalmente minha atenção e fui até o final.

Parabéns!!!

Ivelise Zanim disse...

A trama está ficando a cada semana mais envolvente e instigante!
Aos poucos vemos detalhes sendo desvendados dessa personalidade tào atribulada que o Euclides possui:uma família apática e ausente, que o ignoram desde a morte do seu irmào, que por sinal foi assassinado por Euclides...E se nào bastasse todo estrago q ele ja aprontou até aqui..,nesse capitulo de hoje,ele mata sua avó... e assim se sucederá c/ todos q representem perigo ou ameaça aos seus planos maléficos!!!! E que venha o próximo capítulo!!!!DA-LHE LOHAN!!!!

Anônimo disse...

Nossa,dessa vez vc foi longe,rs. Estou adorando cada dia vc me surpreende mais. Cada segunda há uma superação em sua criatividade,rs. E ainda deixou um suspense no ar, quem foi que morreu tirando a vó? Será que é o Ariano? Espero que não, mata o Euclides,rs. Já estou ansiosa para a próxima segunda, bjs da sua amiga Sofia.

Unknown disse...

Cada vez mais instigante...
E com isso, mas raiva vou sentindo desse Euclides....Meus parabens caro amigo...Por isso é meu escritor predileto!!!
Abraços e até a próxima!

Lohan disse...

Obrigado Bambu! rsrs Tbm sempre acompanhando a história, valeu amigo. E o nosso famoso anonimo, novamente na área, hehe. Sofia, se deixaste o nome no comentário, pra que botar anonimo?? rsrs Só vc mesma, rs.
Obrigado a todos vcs, Ivelise, João e Andrea tbm, que sempre marcam presença. Eu estou começando a gostar do Euclides, sabiam? Esse personagem vai me render boas histórias ainda, rsrs. To começando a me render as tramas macabras da Camilíssima mesmo, rs, e curtir esse lance de sangue, sangue! rs
To zuando gnt, abraços!