quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Itinerário completo.



Naquela noite após o trabalho, decidi  voltar a ser gente. Arranquei as amarras que me prendiam àquele uniforme marinho, seco, sem marcas de identidade, complementando o meu semblante austero e tristonho.
Meu reflexo no espelho do vestiário feminino mostrava a palidez das noites insones.
Retirado o tailleur, vesti o tubinho preto básico que realçava as curvas que eu sempre fiz questão de esconder. Vestir aquele traje já era o primeiro ato de libertação. Era a concretização de uma vontade e de uma identidade que sempre quis assumir e que nunca tive a coragem de concretizar. Chegou a hora. Me olhei no espelho, mas não me sentia feminina o suficiente. Retiro então os sapatos de salto mediano e decido calçar scarpins pretos, após colocar meias finas da mesma cor.
Molhei meu rosto, passei a mão molhada pela nuca, removi o suor e a estampa de tédio no meu olhar vazio.
Suspirei fundo, sequei a face com pedaços da toalha de papel e iniciei um make-up com acessórios que retirei da necessaire: sombra prateada e outra cinza, rímel preto e o toque final com gloss cereja nos lábios. Resolvi não desfazer o coque que me prendia os cabelos. Pronto. Saio do prédio com destino determinado. Entro no carro e decido iniciar minha jornada ouvindo um rock'n roll catársico.
Dada a partida, Green Day estourando meus tímpanos, adrenalina em processo de ebulição, sigo o tráfego em direção a rodovia interestadual. Piso agora no acelerador com mais força; a pista quase livre e eu dona do mundo, a voar para os braços abertos da vida que me espera. Olho meu rosto pelo retrovisor, solto meus cabelos com urgência e sinto a felina que habita em mim , emergir de dentro de uma caverna, onde estivera hibernada por tanto tempo.
E então uma alegria irrestrita invade o meu peito que bate alucinado e vou seguindo determinada a não seguir nenhum roteiro determinado. Nada de projetos antecipados. Deixo a vida me levar. Vida nova, caminhos novos, surpresas que me aguardam.
Minha intuição me dizia para não parar e quando dei por mim, já havia atravessado pedágios, viadutos, serras, encruzilhadas, até chegar no local mais improvável para exibir meu visual sexy e pistoleira.
Desliguei o carro, respirei fundo, arranquei os sapatos que me incomodavam e faziam os meus pés latejar. Relaxei por alguns minutos rescostando a cabeça no banco e fechando os meus olhos já cansados pela atenção emprestada à longa travessia.
Abri o vidro da porta ao meu lado para deixar o ar da madrugada invadir a minha caixa.


Silêncio. Encontro a batida compassada no meu peito, sem alarde ou tensão. Sinto meu coração vivo.
Começo repentinamente a pensar em Deus, conscienciosa de todas as coisas a minha volta.
Saio do carro descalça, arranco as meias finas e sinto a areia da praia abraçando os meus pés...
O ar. O mar... A esquerda, o mar. A direita, o mar. No centro, o mar... e lá no fundo, onde a linha do horizonte se risca sozinha, o inicial côncavo que se avoluma, aumenta, sobe e enternece as ondas a cada instante, lá eu encontro o eixo que me faltava enxergar.
A luminosidade de um novo dia se apresenta diante de mim. Eu, única espectadora do maior show da Terra; a manifestação mais pura da existência de uma energia maior do que tudo que podemos sequer sonhar. A manifestação criadora de vida e luz, espelho refletido nas águas vivas que ecoam no ar o som melancólico de ondas pequeninas que são chupadas pela areia na praia.



Sinto meu corpo todo arrepiado pelo vento frio. Sigo em frente, toda a dimensão do infinito à minha disposição. E eu, formiguinha atômica ansiando por um sinal qualquer... um sinal que me comovesse e me fizesse querer voltar atrás. Mas não. O sol subindo acima do cristal das águas, não me induz a repetição. Não.
Ele provoca em mim a elucidação de que não há repetição num mesmo movimento, pois  que cada momento é único. O que penso se repetir é uma teimosia implícita no meu modo vivendus e percebo na transparência das águas que se misturam com a espuma branca da arrebentação na areia, que me tornar uma caricatura de mulher fatal não é o que condiz com minha essência de ser pura e simplesmente mulher. Ser este ideal machista de revista cosmopolita não me tornará mais feliz, será apenas uma casca para encobrir como um véu de mentiras, o que realmente sou e o que realmento quero que alguém do lado de fora enxergue, da mesma maneira que enxergo o nascer e o pôr do sol : o yin e o yang lado a lado se complementando, sem a mais ou a menos, só sendo, só acontecendo, um dia após o outro...

Neste momento, sinto uma leveza límpida como as águas e luminosa como o astro rei invadir meu espírito, uma alegria genuína de quem sabe quem é, de se reconhecer sendo que se é, de saber que o renascer acontece em intervalos de vinte e quatro horas, em todos os dias de nossa existência, e que só cabe a nós mesmos prolongar ou não as estações do ano que queremos imprimir em nossas personalidades e em nossas almas. Todos os dias nascemos outros, todos os dias vivemos um dia novo, nem a mais, nem a menos. Os eclipses acontecem em intervalos curtos, para trazerem novamente a luz para onde ela nunca deveria ter saído. Isso é vida.

Não sei por quanto tempo caminhei na areia fofa e úmida com os pés descalços. Só sei que ao olhar para trás, só haviam marcas dos meus passos, e lembrei que embora os meus estivessem impressos como prova testemunhal da minha passagem nesta terra, eu acreditava estar sendo acompanhada pelo espírito de Deus ao meu lado.
Me senti protegida, aninhada, quente. Decidi então jogar minhas roupas na areia e corri de braços abertos de encontro as águas que me chamavam para um banho de purificação da alma.


Sangue quente, pele gelada, carne salgada, olhos ardendo. Mergulhar no mar é curativo. Despi-me de toda a mágoa, de todo o concreto que me pesava a alma, o peito, o coração. Mergulhei em águas fundas, toquei com a ponta dos dedos a areia molhada no fundo do mar, girei de braços e pernas abertas, dancei feito bailarina, boiei, criei ondas, fui peixe, golfinho, molusco... sereei...mulher de Vesúvio, me vi compasso girando trezentos e sessenta graus, espiralando, relógio sem ponteiros, espalhando segundos de imortalidade.

Quando finalmente resolvi sair do meu âmago, me perpetuei poderosamente rejuvenescida e capaz. Me senti metamorfoseando em pássaro, flutuando sem ter que bater asas. Enquanto recolhia as roupas, pensei nas escolhas que fazemos na vida, nas oportunidades que perdemos, que abraçamos, que criamos; pensei na imprevisibilidade do universo que pode conspirar ou não a nosso favor.

Mais uma vez, senti no meu espírito uma lucidez , uma mensagem sobre o que pensei querer deixar para trás, por não me sentir aceita, importante, capaz.
Percebi que minha vida era maravilhosa.Que eu sou maravilhosa. Não eram as roupas, a maquiagem ou a catarse musical que me fariam gente, mas a minha resolução de encarar com coragem os fantasmas do meu dia-a-dia que eu permitia habitar em mim. A minha visão e a minha ótica mudaram o foco.

De volta ao carro olho para o relógio. Sete horas da manhã. Ainda havia tempo de chegar em casa e desejar boa viagem a quem por muito tempo  me fez pensar em não voltar para quem eu realmente era.
E eu sou.
Meu próprio templo divino. Deusa da luz e do renascimento. Eu me amo.

6 comentários:

Sidarta disse...

Lindo... Palavras que falam ao coração, Andréa.

Eu me identifiquei muito com o que você escreveu. Estou passando por uma metamorfose em minha vida, e me parece que foi o que você descreveu de forma brilhante em seu texto.

A água tem mesmo esse símbolo de ser o lugar da transformação. O banhar-se para lavar não só o corpo, mas principalmente a alma. Curar-se de todas as mágoas, de todos os pesos de culpa, e sair mais leve para viver a vida.

Não mais "deixo a vida me levar", mas ser o levador, o piloto da própria vida. Não mais deixar que as coisas me aconteçam, mas fazer as coisas acontecerem ("eu aconteço"). Não mais ser coadjuvante no teatro da vida, e sim assumir o protagonismo da própria história.

Fugir do padrão imposto por uma minoria e aceito pela maioria, fechar os ouvidos e os olhos às normas estéticas da beleza publicitária e dizer não à normalidade são atos rebeldes para esta sociedade, mas são também os gestos que tanto anseiam nossos corações humanos.

Precisamos assumir a ousadia de SER. Não seja normal, seja você.

Camila disse...

Andrea, muito lindo esse texto! Queria encontrar esse poder de renovação... Já mudei de roupa, já mergulhei no mar, já fui mais eu mesma e nada... Por enquanto sigo com o rock catársico...

Sidarta disse...

Nenhuma busca sincera fica sem respostas, Camila.

Lembro da música "Oração ao tempo", de Caetano Veloso, que diz:


És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...

Sim! Podemos pensar! disse...

Simplismente Brilhante!

A água lava as mágoas que ainda existem em nossos corações,só é preciso estar disposto para isso.

Lindo,lindo,lindo!!!

Andréa Amaral disse...

Como diz o poeta maior: "Navegar é preciso. Viver não é preciso."
A água simboliza as nossa emoções e a nossa sensibilidade para lidar com elas. Sinto muita falta de água...de mar.Mas é bom perceber que este efeito renovador é contagiante.Obrigada a todos.

Eduardo Trindade disse...

Deveríamos ter sempre, todos os dias, um tempinho para repetirmos pausadamente: eu me amo. Esta (auto)afirmação faz muita diferença!
Abraços!