quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Notícia de Vida no Jornal Severina.



Esta crônica foi um exercício de intertextualidade criada através de duas fontes: o texto "Morte e vida Severina", de João Cabral e "Notícia de jornal", de Fernando Sabino. Minha releitura, juntando as duas sopinhas de letras .


Leio no jornal a notícia de que uma mulher dá a luz às portas do hospital. Uma mulher de cor parda, vinte anos presumíveis, pobremente vestida, dá a luz, em pleno centro da cidade, socorrida por populares que participavam do desfile de 7 de setembro.
Dá a luz. É um menino magro, de muito peso não é, mas tem o peso da obra de ventre de mulher. É uma criança pálida, é uma criança  franzina, mas tem a marca de homem, marca de humana oficina.
Uma mulher dá a luz. Depois de insistentes pedidos e comentários,uma maca é trazida para transportar mãe e filho às portas do hospital.

Os populares que a socorrem descrevem a formosura do menino: é um menino guenzo, como todos os desses mangues, é belo como o coqueiro, que vence a areia marinha, é tão belo como um sim numa sala negativa.
Uma mulher dá a luz. O clínico de plantão ( um homem) afirma que o caso (dar a luz) é da alçada da Maternidade Municipal, especialista em mulheres pobremente vestidas que dão a luz, mas que não se sabe o porquê, são esquecidas sem maca enquanto o dinheiro público paga a armação de arquibancadas para o desfile de 7 de setembro. E a mulher de cor parda, vinte anos presumíveis, pobremente vestida, ainda assim  sorri, diante da nova vida.

Uma mulher dá a luz em plena calçada entre populares que participam do desfile de 7 de setembro. Uma mulher caída na calçada. Uma vadia, uma tarada, uma miserável, uma desempregada, uma vítima do descaso ou de uma escolha errada.
Não é da alçada de quem passa com pressa, pra não perder lugar na arquibancada, pra festejar o orgulho de um país, cheio de brilho nas fardas. Não é da alçada do Ministro, que cumpre sua obrigação civil, que bate ponto no Planalto e finge que não existe pedofilia ou fila de doentes, na capital e nos hospitais do Brasil.


E a mulher dá a luz. De vinte anos presumíveis (mas no fundo será quinze ou catorze...). Pobremente vestida. Dá a luz, diz o jornal. Louve-se a insistência dos populares, dos passantes, cuja consciência pesada, de classe média que gasta os tubos com acessórios inúteis para celular, insiste em estender a mão a uma mulher que dá a luz, pedindo misericórdia com o olhar esperançoso e belo porque com o novo todo o velho contagia; belo porque corrompe com sangue novo a anemia. Uma criança que chora, um choro que contagia, belo porque tem de novo a surpresa e a alegria. Belo, como coisa nova inaugurando o seu dia. Como esperança de um novo país que não mais silencia, a corrupção dos poderosos que a todos alicia.

E a mulher dá a luz, e enquanto mãe e filho choram, os populares fazem uma corrente de apoio e indignação, querem prestação de contas, para o direito à saúde do cidadão, para o descaso dos médicos de plantão. E as autoridades do município: prefeito, secretário, governador, que vieram assistir ao desfile, descobrem um grande filão - correm para o palanque fazer discurso de explicação, vender votos para a próxima eleição, fazer promessas que nunca se cumprirão, enquanto mãe e filho são resgatados para uma clinica particular, aproveitando os holofotes da mídia em todo lugar.



E ontem, após ser resgatada da maca e levada à clínica particular, a mulher que deu a luz, agradece as autoridades, sorri para as câmeras, enquanto seu filho mama feliz.

6 comentários:

Sim! Podemos pensar! disse...

Brilhante Andréa!!!

A medida que lia o texto ia visualizando,imaginei o centro do Rio de Janeiro,avenida Presidente Vargas paramentada para o desfile cívico enquanto mais um chegava neste mundo de meu Deus,trazendo esperança de dias melhores nesta terra das contradições.

Show de bola!!!

Parabéns!!!

Camila disse...

Nossa... Andréa... Que soco no estômago! Gosto de textos que causem algo em mim, nem que seja isso, um soco no estômago. O texto está belíssimo e a cena é de uma singeleza única. Sinto vergonha de ver coisas assim, saber que são rotina no meu país tão amado. Sinto orgulho ao mesmo tempo, ao ver que povo bonito é o nosso, que se sensibiliza diante de uma completa estranha, que na verdade representa o todo. Total "aula de Lúcia Helena"... Quem são os indivíduos que vivem à margem? Qual a importância destas vidas esquecidas? Quais são os retratos da solidão contemporânea? Poutz... Matou a pau!!!!! Tô besta aqui...

Unknown disse...

Lindo, tudo a ver com minha fase maternal. e o texto é, sim um "soco no estômago"!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Sidarta disse...

Belo texto, Andréa. E também, um soco no estômago, como disse a Camila.

Interessante: você tratou aqui de maternidade, e depois o João falou de paternidade.

Muito boas as fotos que você colocou também, especialmente a última, mostrando o olhar da mãe para o seu bebê que acabara de nascer.

Curioso o parto ter ocorrido no meio da rua, durante um desfile de 7 de Setembro. Me faz pensar no quanto "independentes", o quanto "livres" nós somos, quando a um ser humano é negado o direito de nascer num ambiente acolhedor, seguro e saudável.

Quando governantes veem sua própria manutenção no poder como prioridade, alguma coisa está errada. Não é surpreendente a política ter tanto descrédito no mundo atual.

Uma outra coisa que me chamou atenção no seu texto é que você enfatiza bem a ideia de que "a mulher dá a luz". E talvez ela esteja mesmo nos dando uma luz de SOS para o grave abandono que a Saúde Pública enfrenta em nosso País. Eu ainda sonho com o dia em que teremos saúde e educação gratuitas e de qualidade para todos, como a Europa fez através do Estado de Bem-Estar Social, depois da Segunda Guerra.

Isso não é utopia. A partir do momento em que a classe média se conscientizar de que paga duplamente pela educação e saúde (impostos + escola particular e plano de saúde), e só está tendo prejuízo nesta relação (quem é que está satisfeito aqui com seu plano de saúde, por exemplo?), ela irá cobrar dos governos pela qualidade do serviço público, para ela própria utilizar.

Calculemos quanto a gente gasta por ano de escola para nossos filhos e planos de saúde. Quanto não economizaríamos se tivéssemos serviços públicos de qualidade nessas áreas?

Enquanto a classe média se sentir separada da classe mais pobre, viveremos esse caos social, que inclusive gera insegurança e violência nas cidades.

Andréa, você nos deu uma luz importante com esse seu texto. Parabéns pela sensibilidade.

Beijos!

k@ disse...

Andréa, perfect text!
Amei, bem contraditório, o luxo, a cretinagem versus a pobreza, os sem vez e voz. Infelizmente essa é a realidade desse país, que temos orgulho por sermos um povo lutador e cheio de belezas naturais, mas envergonhamo-nos das falcatruas politicas, como dizia o memorável Cazuza "a burguesia fede" e dá nojo!

Parabéns!

Andréa Amaral disse...

Queridos amigos, obrigada pelas palavras e pelos elogios, mas devo confessar que eu sozinha não teria gabarito para escrever tal texto. Como coloquei no início, juntei partes e estilo de prosa de dois textos de dois autores diferentes e maravilhosose vocês que já me conhecem bem, perceberam os acréscimos e as críticas que fiz, por isso, tenho que dividir com eles o soco no estômago que vocês sentiram, por isso agora é minha vez dizer: Obrigada Fernando Sabino e obrigada João Cabral de Mello Neto.