terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dois lobos...

- Me perdoe...
O rosto magro e velho à sua frente suplicava-lhe, os olhos sem brilho pediam por alguma piedade milagrosa que lhes devolvesse luz. Ele estava ali, trêmulo à sua frente como se agora temesse. As rugas da testa que tanto lhe apavoravam agora eram suaves, mas ainda traziam a lembrança do homem mau.
Com os olhos cobertos de lágrimas, pouco via, só ouvia seus gritos. Sem ter para onde fugir, acabava encolhida nos cantos, as mãos em frente ao rosto em uma ultima defesa. O objeto de sua dor e raiva agora suplicava-lhe, inútil, por misericórdia. Tentou se virar e afastar-se mas ele tocou-lhe no braço, não como o homem mau mas levemente. Mesmo sem olhar diretamente sabia que as lagrimas corriam de seus olhos.
O homem mau não chorava nunca, não possuía sentimentos, esse era o homem bom. Seu sorriso era capaz de curar as mais profundas chagas e seu abraço parecia um mundo à parte, muito longe de qualquer problema. O rosto era distorcido pelos anos guardados na memória mas o sorriso parecia intacto, uma de suas melhores lembranças. Virou-se completamente e abaixou os olhos por um momento, encontrando os sapatos velhos e surrados. Eram inconfundíveis.. os pés do homem mau.
Os sapatos batiam contra o piso em uma dança desordenada, tudo que podia observar de seu refugio embaixo da cama eram os pés, eles dançavam rápido, as vezes vagarosamente, na medida em que os gritos se intensificavam ou diminuíam. Dessa vez pareciam mais aflitos, empenhavam-se cada vez mais em sua dança até pararem em um ultimo e definitivo som. As gotas de sangue pingavam no chão como tinta vermelha, os pés de repente sumiram, restou o silencio cortado pelos gemidos.
Virou-se resoluta para ir embora mas o homem ajoelhou-se, já soluçando e implorou-lhe mais uma vez. Ela deteve-se e observou-o mais uma vez. As mãos abertas que lhe alisavam docemente os cabelos, as mãos fechadas que as vezes via antes que lhe atingissem. O corpo alto caminhando ao sol, o corpo magro estirado no sofá. O homem bom, o homem mau, suas lembranças se misturavam e se confundiam, os dois homens lutavam em seu interior numa batalha definitiva, mas não percebiam que essa luta lhe dilacerava por dentro. Abaixou-se com as mãos sobre a cabeça, tentou afastar as lembranças mas elas persistiam, giravam em sua mente, multiplicavam-se por todas as partes. Em alguns segundos, seu desespero converteu-se em grito. Deixou que o eco circulasse por alguns instantes em sua mente já limpa e então voltou a fitar o homem à sua frente.
O homem bom e o homem mau haviam desaparecido, restava apenas um ser humano frágil e vulnerável, soluçando como uma criança.
De repente, sentiu-se capaz de apagar de vez o homem mau, guardar apenas as boas lembranças. O ser à sua frente parecia mais humano agora, assim como ela mesma. Aventurou-se a dar um passo em sua direção, mas logo tudo escureceu-se. Os sons até então incompreensíveis tornaram-se os mesmos de todas as noites. Abriu os olhos e passou as mãos pelo rosto coberto de suor, descansou-as sobre o colchão com um suspiro e passou a fitar o teto. Quando seus olhos acostumaram-se com a escuridão, levantou-se.
O corredor parecia uma mancha cinzenta e disforme, ela contava cuidadosamente os passos até a porta do meio, entre seu quarto e o banheiro. Ao chegar perto, viu-a entreaberta e parou, o som abafado fez seu corpo tremer, dava-se ordens explicitas para voltar mas seu corpo insistia em seguir em frente.
Ao chegar à pórta reconheceu o som, observou o interior do quarto. A garrafa esquecida intacta sobre a mesa, o corpo inerte debruçado no chão, soluços.

2 comentários:

mauri disse...

Aproveito para pedir desculpas pelo sumiço de semana passada, vou tentar ser mais assíduo nas postagens . E também para desejar um maravilhoso natal e fim de ano para vocês, agradeço por suas palavras e saibam que com elas aprendi muito. Um enorme abraço!!

Lohan Lage Pignone disse...

Nós também lhe agradecemos por sua presença neste blog. Seu talento contribui muito para o crescimento de todos.
Dois lobos é um texto denso, de ampla interpretação. Seus textos são bastante ricos no que diz respeito a interpretação.
Parabéns, feliz ano novo, e que em 2010 estejamos firmes e fortes no Autores.
Abraços!