segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O homem que queria ser outro - Parte 13 - Celebração (Antepenúltimo capítulo)

Meus amigos leitores e leitores! Antepenúltimo capítulo, pegando fogo! Um detalhe do autor: desde que comecei a escrever essa história, tenho esse capítulo em mente. Estou tentando publicá-lo desde a parte 5, rsrs. Finalmente ele chegou. Celebremos! (Lohan L. Pignone).







No sábado, pela manhã, Régis, acompanhado por um policial, chega à casa de Vitor, o autor das ameaças à Lia Neide. Régis toca a campainha. Após alguns segundos, Vitor o atende, e logo o reconhece.



-Delegado Régis, 14º DP. Este é meu amigo Mandrake.



-Em que posso ajudar? – Pergunta Vitor, ainda sonolento. Era nove da manhã.



-Pode nos ajudar sendo um bom menino: sincero e obediente.



Vitor já imaginava do que se tratava. Para não piorar sua situação, não pensou na possibilidade de mentir.



-Prendam a verdadeira culpada pela morte do Adalberto. As evidências estão na cara de todos! Eu estava do lado dele quando a maldita mensagem foi enviada. Se ela não agiu com as próprias mãos, ela foi a mandante do crime!



-Peço que mantenha a calminha, rapaz. Entendo sua revolta, sua dor. Mas nada disso justifica o que está fazendo. Saiba que ameaça de morte é crime também, e o senhor, tanto quanto eles, podem ser presos.



-Ah, era só o que faltava! O que prova que eu a ameaço de morte?



-Por enquanto, nada. Dessa você vai passar ileso... Mas deixo aqui um aviso, bem claro: se ela receber mais uma ligação, seja de onde for, com ameaça de morte, nós vamos te pegar. E outra: se algum atentado acontecer a ela... Pode se considerar um homem trancafiado atrás das grades.



-Ora, se ela for atropelada, será minha culpa também? – Zomba.



-Quem mandou ameaçá-la?



-Está bem, eu perdi a cabeça... Confesso. Eu vou deixá-la em paz, mas não judicialmente. Vou mover céus e terras para prender essa vadia.



-Saiba que ela não é a única suspeita... É o máximo que posso lhe garantir. Estamos investigando, e creio que em breve saberemos a verdade.



-Assim espero.



-Ok... Tem porte de arma?



-Se tenho arma... Não, por que?



-Só por curiosidade. Saiba que se estiver mentindo, descobriremos também, não sabe?



-Sou contra arma.



-Ah é? – Ri o delegado – E com o que pretendia matar a moça? Envenenando-a com cianureto?



-Existem várias maneiras de vingança mortal. O senhor sabe disso melhor do que eu.



-Sei melhor ainda o que fazer com os sujeitos que cometem esses crimes... Fica esperto, ouviu? Estamos de olho. Vamos, Mandrake.



O policial que acompanhava o delegado toma a frente, entrando no carro que estava estacionado à beira da calçada da casa. Régis lança um piscar de olhos à Vitor, que expressa uma medo no olhar. Em seguida, entra no carro.



-Vamos embora. Aposto dez pratas que esse otário vai no banheiro se limpar agora.



Mandrake sorri e dá arrancada no carro.



No hospital, Euclides recebe alta. Com a face esquerda e o nariz inchados, o olho roxo e o corpo dolorido, ele vem caminhando pelo corredor, sorridente. Seu sorriso era insano, bem como seu olhar. Sorria dos planos diabólicos que montava em sua mente.



Mal saiu do hospital, com uma receita médica em mãos, e, ao invés de ir direto a uma farmácia, foi a uma livraria.



-Posso ajudá-lo, senhor? – Pergunta uma das atendentes, observando o estado deplorável de Euclides, que observava os livros com uma certa rapidez.



-Dar livros para os outros é sempre uma missão complicada, não acha?



-Ah, com certeza. Mas o senhor conhece essa pessoa, sabe de suas preferências literárias, seu estilo de vida? Isso já é um bom caminho.



-Sim, eu o conheço... Eu... Eu sei perfeitamente quem ele é. Sei de tudo que ele gosta, tudo o que ele quer, e o que não quer também. Sei tudo sobre ele...



-Nossa, a moça sorri, então imagino que não seja tão complicada assim essa missão!



-Neste caso, o problema não é o livro, mas sim, a pessoa que ira presenteá-lo. Ele... Ele não é mais ou mesmo comigo.



-Entendo...



-Não, não entende. Você não entende nada. Me deixe sozinho, pode ser?



A jovem se assustou. E, gaguejando, diz:



-Es, está bem, eu... Fique a vontade...



Euclides, com toda sua insensibilidade, permanece vasculhando as prateleiras...





Sete horas da noite...



Não haviam sido muitos os convidados para o aniversário de Ariano. Alguns amigos mais próximos da família, tios, e poucos amigos de Ariano, da época da escola. Uma enorme no centro da sala, forrada por um extenso pano de cor branca, com um bordado admirável. A simplicidade permeava a recepção dos convidados, que presenteavam Ariano, o enchiam daquelas mesmas perguntas:



-Como se sente, meu querido?



-Está se cuidando direitinho?



-E a faculdade?



-Vai continuar no jornal?



-Já comeu quantas universitárias?



Ariano atendia a todos com sua genuína simpatia. Ficou muito feliz com a chegada de Julia e Ana Lucia, e, sobretudo, com a chegada dela...



-Lia Neide... Você veio...



-Eu não podia faltar. Você se tornou uma pessoa especial na minha vida. Ao menos comparecendo em sua casa, em seu aniversário... Eu posso retribuir tudo o que faz por mim.



-Eu faço porque amo você.



-Por favor...



-Tudo bem, desculpe... Venha, se acomodem!



Ariano cumprimenta Dona Beatriz.



Seus pais o observavam de longe.



-Veja, ele adora isso. Ser prestigiado pelas pessoas que ama. – Comenta Arlete, mãe de Ariano – Ele diz que odeia aniversário, mas no fundo... Ele não me engana.



-Ele está doido por essa menina, a Lia. Tomara que eles dêem certo. Ela é uma ótima pessoa.



-Tem certeza disso?



-Como? – Espanta-se Walter.



-Ela não está sendo acusada de assassinato?



-Ela é inocente, Arlete. Por que está levantando essa suspeita contra a moça?



-Porque não há nenhuma certeza. Ou há?



-Eu nunca me engano com as pessoas.



Arlete cruza os braços, dúbia.



-Vamos servir o jantar.



Ariano conversava com Ana Lucia.



-Por que não trouxe seu filho, Ana?



-Ah, ele anda meio doente... Além do mais, o pai quer aproveitar mais tempo com ele. O trabalho impede que ele seja, de fato, um pai presente.



-Em que ele trabalha?



Ana aperta os lábios, e mente:



-Ele é engenheiro civil.



-Que legal.



Lia Neide balança o ombro de Ariano. Ele se vira para ela:



-O que foi, Lia?



-Você disse que não tinha convidado esse traste. – Diz, constrangida.



Ariano e Ana Lucia voltam seus olhares para a porta. Euclides era recebido por Arlete, que por sinal, estava muito sem graça. Ele trazia sob o braço um embrulho.



-Onde está o aniversariante, dona Arlete?



-Eu vou chamá-lo...



Não precisou. Ariano já estava ali, com ar de poucos amigos.



-Olá, Ariano. Feliz aniversário.



Euclides lhe dá um abraço. Por cima do ombro de Euclides, Ariano lança um olhar estupefato para a mãe, que faz sinal para que ele mantenha o controle.



Julia se reúne a Lia e Ana Lucia, com uma taça de vinho na mão.



-O Ariano não podia ter chamado o Euclides.



-Mas ele não o convidou. – Diz Ana Lucia, convicta.



-Desculpe, mas quem é você? – Indaga Julia, bebericando seu vinho. Ana Lucia, que lutava contra sua ânsia em encher uma daquelas taças com aquele vinho tinto escaldante de prazer, engole a seco. Julia franze o cenho, aguardando uma resposta.



-Ela é amiga da faculdade, do Ariano. – Apresenta Lia.



-Ah, você é a Ana Lucia?



-Sim, eu mesma... Prazer.



-Prazer, Julia.



Elas apertam as mãos.



-Como sabe que ele não foi convidado pelo Ariano? – Pergunta Lia, intrigada.



-Por que... Por que eu, sem querer, comentei com o Euclides ontem sobre o aniversário. Agora, como eu imaginar essa inimizade deles? Eles sempre foram super amigos, gente.



-É, mas as coisas estão mudando... – Disse Julia, tomando mais um gole de seu vinho.



Ana Lucia, sedenta, fixou aquela imagem, aquele inclinar da taça, aquele umedecer dos lábios, aquele gole do vinho mais saboroso, aquela cor de sangue, aquela vida escorrendo de uma taça...



-Me dêem licença, eu... Eu vou me servir desse vinho.



E foi, em disparada. Julia e Lia se entreolham, dando de ombros.



-Essa Ana Lucia acabou com a noite do Ariano.



-Não. – Rebate Lia – Ele saberá superar. Ele é maior do que toda a mesquinharia que o ronda.



Euclides entrega o presente a Ariano.



-Não fui convidado, mas... Não me importei muito com isso. Prefiro acreditar que eu sou um daqueles amigos que não precisam receber em suas casas convites de aniversário. Aqueles amigos do peito, que nunca se esquecem da data de aniversário.



-Está errado, Euclides. Os melhores amigos são os primeiros a receberem o convite.



-Todo esse desprezo é por causa dela, não é? Continue acreditando nela...



-Cale essa boca, Euclides. É por causa dela sim, e é nela que eu acredito. Eu não sou indelicado a ponto de colocar você para fora da minha casa. Sou um homem bem educado. Além do mais, ignorar você será mais gostoso do que te expulsar.



-Quantas palavras duras... E nem abriu o presente. Já que é bem educado, você não faria a desfeita de me devolver, faria?



Ariano sorriu, e desembrulhou o presente.



-Ora, ora, ora... Antologia poética do Vinicius de Moraes... Até que você não escolheu mal.



-Eu fiz Letras, se esqueceu? Sei o que é bom. O poeta que melhor fala do amor, da vida. E como você tem se entregado a esse mundo de poesia ultimamente...



-É... Mas como eu sou uma pessoa de bom coração, e não por desfeita, lhe agradeço, mas te devolvo o livro.



Ariano estende os braços segurando o livro.



-Por que isso? Não gosta de Vinicius?



-Sim, ele é o melhor, eu concordo com você. E por isso mesmo estou te devolvendo esse livro.



-Não compreendo... O que está...



-Estou insinuando, Euclides, que este livro servirá mais a você do que a mim. Quem sabe lendo Vinicius de Moraes, você não aprenda e tenha o prazer de assinar poesias de sua autoria?



Ariano repousa o livro na mão de Euclides que, doído de raiva e perplexidade, o recebe, sem desgrudar o olhar epilético daquele que ria irônico de sua cara.



-Fique a vontade... Mas não a ponto de colocar remédio na minha água, ok?



Ariano vira as costas para Euclides, contendo o riso nos lábios.



Euclides continua ali parado, com o livro na mão, pensando: “ele já sabe da poesia, do remédio, ele já sabe de tudo... Será impossível fazê-lo mudar de idéia a meu respeito... Pior para ele. Antes meu amigo do que meu inimigo”.



Walter vai ter com o filho.



-Está bem?



-Estou ótimo, pai. Deixe o Euclides circular pela casa. Ele não fará nada contra mim.



-Ele não é louco.



Todos foram convidados se servir. Alguns se acomodaram nos sofás, outros preferiram ficar de pé, conversando enquanto saboreavam seus pratos e suas bebidas.



Euclides servia-se, naturalmente, quando Julia se aproxima dele propositalmente, enquanto arrumava seu prato também. Em murmúrios, os dois começam a trocar farpas.



-Quantos quilos de maquiagem usou nesse rosto pra tapar o estrago?



-Quantos reais em crédito tem gastado por enviar mensagens anônimas pro meu celular?



-Quantos litros de óleo de peroba você gastou pra passar nessa cara lavada, a ponto de vir ao aniversário de uma pessoa que não o convidou?



-Quantas vezes já foi pra cama com aquele escroto do Haroldo pra continuar garantindo seu empreguinho de redatora no jornal? Por que, cá pra nós, você ali é um zero a esquerda. Seu trabalho é péssimo.



-Mesmo que eu me prestasse a isso... Pelo menos fui boa de cama. Já os seus métodos inescrupulosos pra tomar a vaga dos outros foram mal sucedidos, querido, tanto que foi demitido solenemente, com uma surra do papai de brinde. Cuidado com a espinha do peixe, você pode engasgar e morrer. – Alertou, sarcástica, ao vê-lo pôr uma posta de peixe em seu prato.



-Cuidado comigo, Julia. Você pode perder os freios a qualquer momento, avançar o sinal e colidir com caminhão de cimento. Sua morte seria trágica.



-Não tenho medo das suas ameaças, Euclides. A minha proteção espiritual não vai permitir que nada de mal me aconteça. – Retrucou, mais séria.



-Se eu fosse você, não levaria muita fé em fantasminhas... O máximo que eles podem te fazer é te levar pro inferno quando você bater as botas. Sua estúpida.



Euclides se afasta de Julia. Ela, irada, finca seu garfo no pedaço de carne assada que estava na bandeja sobre a mesa.



Ana Lucia não comia nada. Apenas bebia. Aquele já era a quarta taça de vinho...



Meia hora depois, Walter pede o silêncio de todos, e, ao lado da esposa, inicia uma homenagem ao filho, em voz alta:



-Filho, venha cá...



Ariano se aproxima dos pais, envergonhado.



-O que estão aprontando?



Walter abraça o filho e proclama:



-Esse é o menino de ouro. Eu já lidei com muitas pessoas nessa minha vida. Sou advogado há quinze anos, e, baseado no nível de minha experiência de vida, posso afirmar que tenho um filho de ouro. Estudante exemplar, jornalista promissor, um filho de dar inveja a qualquer família. Gênio. Filho, saiba que, enquanto eu puder, farei tudo que estiver a meu alcance pra te ajudar, pra... – Pausa, emocionado – Pra provar o quanto te amo.



Pai e filho se abraçam fortemente. Todos aplaudem aquela cena. Exceto Euclides, que observa a tudo com uma tristeza profunda no olhar.



Ariano já estava com lágrimas nos olhos quando Walter tirou do bolso da calça uma chave, e a balançou diante de Ariano.



-Que significa isso, pai... – Já expressando meio sorriso.



-Vinte anos de vida. Merece um carro de presente, não acha?



Ariano se derrama em lágrimas de emoção, e recebe a chave do carro das mãos do pai.



-Pai, eu não posso acreditar!



E se abraçam novamente. Euclides prende os lábios com força, evitando derramar uma lágrima teimosa que insistia em sair do seu olho. Não ia derramá-la. Observava a tudo, frio. Em sua memória, uma lembrança veio à tona...



“-Meu sonho é ter um carro, pai. – Disse Euclides, na véspera de seu aniversário de vinte anos de idade.



Estavam passando na frente de uma concessionária.



-Carro... Você precisa arrumar um emprego primeiro. Meu pai nunca me deu carro. Eu é que comprei, com meu suor.



-Mas pai... Você tem condições de me dar um carro.



-E quem vai pagar as despesas do carro? Você tem meios para isso?



-Eu consigo um emprego, pai.



Rodolfo gargalhou.



-Você? O que você sabe fazer, Euclides?



-Eu sei escrever bem. Eu já ganhei um concurso de redação na escola.



-Escrever bem não dá dinheiro nesse país. Aprenda isso.



-E o que dá dinheiro, pai?



Pararam para atravessar a rua.



-O que dá dinheiro? Seja um administrador de empresas, um promotor, um juiz, um médico neurologista.



-Eu não conseguiria, pai...



-Então, Euclides, sinto te dizer, mas você nunca será ninguém na vida”.



Como uma ventania, aquela lembrança devastou o juízo de Euclides. Seus nervos atrofiavam-se dentro do corpo. Mas não podia chorar, não podia berrar, não podia quebrar nada. Seria entregar sua fraqueza.



Ariano correu até lá fora para ver o carro. Era um lindo Palio vermelho 2002. Abriu, ligou o carro, verificou cada detalhe do interior daquele automóvel. Euclides permanecera na casa, comendo alguns petiscos. Ele e Ana Lucia trocaram olhares. Ela, num canto isolado, tomando sua bebida. Ela estava entregando sua fraqueza com aquela taça na mão. Euclides vira as costas para ela.



-Ele não te convidou. – Disse ela, cutucando seu ombro.



Ele se volve para Ana.



-O que disse?



-Ele não te convidou. Eu to me sentindo arrasada por ter te contado.



-Arrasada? Você ta bêbada, isso sim. Não larga esse copo.



-Está me vigiando, é?



-Nem precisa vigiar pra saber que você está enchendo a cara.



-Você está me desrespeitando de novo, Euclides.



-Você não é digna de respeito.



Ana Lucia mordisca os lábios, enfurecida, e joga a bebida no rosto de Euclides. Aquele vinho tinto escorre lentamente pelas suas faces, gotejando de suas sobrancelhas grossas, limpando toda aquela máscara que ele utilizara para disfarçar as marcas da surra.



Ele não reage. Percebe que algumas pessoas presenciaram a cena e cochichavam a seu respeito.



-Melhor do que entornar essa, foi jogar tudo na sua cara. Agora sim, eu posso dizer que sou uma bêbada de respeito.



Ana sai da sala, indo dar os parabéns a Ariano pelo carro. Euclides vai até o banheiro, e lava o rosto. As manchas roxas e o inchaço agora são mais visíveis. Ele se olha no espelho, e, muito nervoso, cospe contra seu próprio reflexo.



-Pé de cana filha da puta.



Ele seca o rosto e retorna à festa.



Todos já haviam retornado.



-Meu filho é talentoso em muitos aspectos, mas... Uma coisa que poucos sabem é que o Ariano também é músico, pessoal! – Vibra Arlete, anunciando a todos presentes.



-Ariano!! Toca uma pra gente!! – Pede o “público”.



Lia, que estava próxima de Ariano, pergunta, olhando para o piano imponente da sala:



-Não me diga que sabe tocar piano?



-É... – Ele ri, tímido.



-Vamos, filho! Sente-se ao piano, toque uma canção para a gente!



Ariano, relutante, senta ao piano.



-Manda ver, Ari! – Grita um de seus amigos.



Euclides estava de pé, observando Ariano. Julia se aproxima dele. Estão ombro a ombro.



-Você está me seguindo pela casa?



-As lágrimas borraram a maquiagem? – Goza ela.



Euclides tinha vontade de esganá-la!



Um rápido silencio toma conta do recinto. Ariano se posiciona. Seus dedos longos começam a deslizar sobre as teclas do piano. Seu corpo, de jovem franzino, crescera repentinamente diante daquele magnífico instrumento. Ariano era uma sumidade. Transformara-se, em segundos, no maior músico que aqueles olhos já haviam presenciado; que aqueles tímpanos já haviam registrado; que aquelas almas já haviam se regozijado. Almas que se descobriram pobres diante de tanto talento, tanto poder. A música! A música tocava fundo no âmago, como uma flecha invisível de encantamento. Os pêlos dos corpos hirtavam-se, e lágrimas clamavam para participar daquele momento único.



-A Grande Sinfonia. A Sinfonia nº 40 de Mozart. Há! – Vibra Julia, amante da música clássica.



Euclides estremeceu. Também conhecia aquela composição de Mozart, e sabia o quão difícil era interpretá-la em piano. Agora era o fim, de fato. Agora tinha certeza: Não existia limite para o talento de Ariano. “Ele é perfeito em tudo, isso... Isso não pode ser, é surreal”, pensava, com uma dor lancinante. Seus olhos se encheram de lágrimas novamente. Lágrimas que refletiam aquele jovem de vinte anos, franzino, de óculos, e vestes simples. Euclides não piscava. A cada nota da música, uma batida dolorida do coração. O “dó” era em ré maior na alma de Euclides. Sua vida estava acabada, ali, definitivamente. Seria impossível alcançar tanta proeza. “Eu não conseguiria”, admitiu para si mesmo, mais uma vez...



E como era duro admitir isso.



Ariano chorava enquanto tocava. Pensava em Euclides, na traição. Pensava na rejeição que recebia de Lia Neide. De que adiantava, estar ali, atingindo o seu ápice, reluzindo sua luz mais intensa e, no fundo, não ter o que considerava de mais valor.



Aquelas almas emanavam uma força surpreendente. Ariano e Euclides. Duas forças em oposição.



-Mozart... Superdotado, já se apresentava à realeza aos cinco anos de idade... Diz a lenda que Antonio Salieri, outro grande compositor, definhava de inveja de seu rival, Mozart. Mozart ofuscava seu talento, seu brilho. Salieri jamais alcançou a fama de Mozart, e por isso, teria o envenenado. Fingia-se ser o melhor amigo de Mozart, quando na verdade, queria ser o próprio Mozart.



Essas palavras foram ditas por Julia, capciosamente, ao pé do ouvido de Euclides, enquanto Ariano apresentava seu verdadeiro espetáculo.



-Você jamais será Ariano Bezerra, Euclides.



Aquelas palavras criaram uma revolta intensa em Euclides, que precisou sair dali o mais depressa possível antes que cometesse uma grande besteira.



Euclides foi até a cozinha. Lia Neide diz a mãe que irá até a cozinha apanhar um copo d’água e volta num instante. Ana Lucia percebe a saída de Lia logo após a de Euclides e acha estranho.



Euclides também bebia um copo d’água. Lia o encontra na cozinha. Ambos estão sozinhos.



-Ta me seguindo também, garota? – Ataca Euclides, enfurecido.



-Eu? Seguindo você? Eu não perderia meu tempo.



Ela se dirige até o filtro. Euclides se aproxima de Lia.



-Você me destruiu com o Ariano, você não tinha o direito...



-Eu não te destruí. As suas atitudes mesquinhas, falsas e horríveis te destruíram com o Ariano. E em breve, destruirão a você mesmo. Finalmente o Ariano enxergou quem você é. Finalmente todos enxergaram.



-O jogo ainda não terminou. Muita água está pra rolar.



Lia o encara.



-Eu vou conseguir provar minha inocência e me livrar de todo esse caos da minha vida. Por sua causa eu estou sendo até ameaçada de morte! Minha vida se tornou um inferno por sua causa, seu... Demônio.



Euclides segura no braço de Lia.



-Eu to apaixonado por você, Lia. Eu... Eu me apaixonei por você.



-Me larga!



Ela tira seu braço da mão de Euclides.



-Eu digo a verdade, acredite. Eu posso ter errado muito, posso ter mentido demais... Mas isso é a mais pura verdade. Eu nunca amei tanto uma mulher na minha vida.



-Falso, cínico. Você me deseja porque o Ariano também me deseja. O Ariano sim, me ama de verdade. Já você... Um homem sem caráter como você não é capaz de amar.



-Você realmente não dá valor a quem te ama... Ariano, o seu falecido ex, eu... Quem você pensa que é? A rainha dos amantes? Acha que terá a seus pés homens dedicados e amorosos a sua vida inteira? Está enganada, Lia. A vida passa muito rápida. As pessoas vão embora, conhecem outras pessoas, ou simplesmente... Morrem. Não vê o Adalberto? O que está esperando da sua vida? Que o Ariano morra também?



-Não faça nada de mal ao Ariano, pelo amor de Deus... Euclides...



-Entregue-se a mim. O Ariano é tão talentoso, tão genial... Ele não terá tempo para você. Ele viverá sempre muito ocupado, mais ocupado com os próprios pensamentos do que com a própria esposa. Os superdotados são pessoas entediadas, hiper ativas. Não irá suportá-lo um mês.



-Euclides... Como você é sujo... Eu já sabia que era, mas... É a primeira vez que tenho a oportunidade de ver e ouvir as suas imundícies. Eu fui muito burra em te dar trela esse tempo todo... Você roubou meu celular quando eu me distraí, você foi muito esperto... Você armou tudo. Aquela poesia... É do Ariano, e não sua. Quantas maldades... Como suporta ser uma pessoa tão pérfida? Isso não pesa em sua consciência?



-Consciência é sinônimo de covardia. Eu não me arrependo de nada que fiz. Muita coisa que fiz foi... Pelo meu amor a você.



-Você não ama nem a você mesmo.



-Eu quero você pra mim, Lia Neide.



Euclides segura nos braços de Lia e a beija de sopetão. Ana Lucia entra na cozinha, e os flagra. Ela deixa sua taça cair e se espatifar no chão, de tão perplexa.



Euclides se afasta de Lia, que tentava retomar o fôlego.



-Desculpa se eu... Se eu interrompi o casalzinho. – Diz Ana, num tom nada amigável.



-Olha, Ana, eu não quis beijá-lo! Esse homem é um... É um cafajeste!



Lia avança em Euclides, que a segura.



-Não tente me bater, garota. Você gostou do meu beijo, confesse. Sua boca estava sedenta pela minha saliva, pela minha língua.



Lia se debatia, porém Euclides segurava seus braços, dominando-a.



-É mentira!!



-Para de fazer ceninha, Lia! Todos em breve saberão de nós!



Ana Lucia caía na armadilha de Euclides...



-É mentira, não acredite em nada do que ele diz, me solta!!



Lia se solta de Euclides. Ofegante, ela cospe no meio de sua cara.



-Canalha! Tome a sua saliva nojenta de volta!



Lia retorna para a sala, retumbante. Euclides fica rindo sozinho, limpando o cuspe do rosto. Ana Lucia não movera um passo.



-Eu já entendi tudo, Euclides.



-Ana... Você era a última pessoa que podia ter visto o que aconteceu aqui.



Ana sorri, maliciosamente, e volta para a sala. Euclides vibra com o resultado.



Ariano finaliza sua apresentação musical. Todos o ovacionam, eufóricos, pedindo bis. Ariano se diz cansado, e se levanta.



Julia se dirige ao pupilo, e diz:



-Você foi... Você incorporou o Mozart. Ariano, não de mole pro Euclides. Ele está sendo derrotado, lentamente. Ele vai cair, Ariano. Seja firme. Vamos vencer.



-Eu sei, Julia. Eu sei.



E se abraçam.



Lia pede a mãe para ir embora, imediatamente. Alega não estar se sentindo bem. Elas vão se despedir de Ariano.



-Já vão?



-É, eu to um pouco com dor de cabeça, e... Eu adorei tudo, obrigada por tudo, Ariano.



Lia dá um beijo no rosto de Ariano, desnorteada. Beatriz também se despede do jovem.



-Eu vou com elas, Ariano. Também estou um caco. A festa não podia ter sido mais divertida! – Diz Julia, contente.



-Eu acompanho todas vocês até a porta.



Antes de saírem, Euclides e Lia trocam um último olhar, o qual é telegrafado por Ana Lucia, que após aquele momento, já havia bebido duas taças seguidas de vinho...



Euclides decide ir embora também.



-Adeus, Ariano. O livro eu deixei sobre a estante. Já tenho muitos livros. E quanto ao carro... Parabéns. Não sabia que você tinha carteira já.



-Sim, eu tenho. Foi a primeira coisa que fiz quando completei dezoito anos. Quem sabe um dia eu não te dou uma carona?



-Ah... Está mudando de idéia quanto a mim ou é impressão minha?



-Eu disse que te daria uma carona... Mas não disse para onde te levaria.



-E para onde me levaria, Ariano?



-Para uma penitenciária, Euclides. Lá será a sua primeira casa. E olha que legal, você não precisará comprá-la.



-Você está jogando do lado errado, Ariano. Enfim... O tempo vai te mostrar a verdade. Obrigado, passe bem, meu... Amigo.



Ariano vê Euclides partir e sente um alívio...



A maioria das pessoas já tinham saído. Ana Lucia ainda tomava seu porre, isolada. Ariano, ao perceber o exagero da amiga, resolve orientá-la.



-Ana, não acha que por hoje chega?... Você mal se agüenta em pé...



-Me deixa, Ari, me deixa... Eu descobri tudo, eu já saquei tudo! Você é o mais inteligente desse lugar, mas fui eu quem descobri toda a verdade... – Dizia, ébria.



-O que está dizendo, Ana? Você não ta legal... Vou ligar pra sua casa, pedir que venham te buscar...



-Ah, Ariano... Quem precisa de ajuda é você, meu amigo.



Ariano passa a prestar atenção no que ela dizia.



-Por que diz isso?



-Você ta cercado por uma corja de assassinos.



-Ana, seja mais clara, se for possível... Você ta falando do Euclides? E mais quem?



-Aquela Lia... Ah, eu bem que desconfiei...



-A Lia Neide?



-Exatamente! – Confirmou ela, a um soluço.



-Vem comigo lá pra fora, Ana. Você está mal.



Ariano apoiou a amiga em seu ombro,



-Eu vi os dois se beijando na cozinha, Ariano!! Eu vi! Eles dois são comparsas! Eles são assassinos! Eles querem te matar!!!!



Walter e Arlete percebem os gritos e se viram para os dois.



-O que está havendo aí, filho? – Pergunta Arlete, preocupada.



Ariano petrificou-se.



-Repete... Repete, Ana, repete se for verdade...



-É verdade. Eu to bêbada, to. Mas eu vi. Enquanto você tocava, os dois se agarravam na cozinha. Eu vi.



Ariano leva sua mão a cabeça, expressando uma forte dor. Ele recua.



-Ahh!



Após um grito de forte dor, ele cai no chão, desacordado.



-Ariano!!!



Seus pais correm para acorrê-lo. Ana Lucia fica parada, observando a tudo, abobada, sem saber o que fazer.



Só o amor pode destruir o intelecto de um gênio.


(Continua nesta semana... Não percam!)



2 comentários:

Lohan Lage Pignone disse...

http://www.youtube.com/watch?v=a-p6HHq5g3Y

O link da Sinfonia 40 de Mozart, citada na história. Vale a pena ouví-la enquanto se lê o trecho em que Ariano se põe a tocar e Euclides passa por uma série de sensações escabrosas. É sensacional, eu nem sei explicar...rs
Valeu!

Ivelise Zanim disse...

Oi Lohan!!!Realmente está ficando sinistro esse final dessa estória.....Mas precisamos ver quem acreditará em quem.....o Euclides ja provou que é atentamente esperto e nao mede esforços p/ conseguir seus objetivos.....Agora está em suas màos o desfexo desta tào contundente estória....abs