quinta-feira, 6 de maio de 2010

Française musique: la hommage (2)

Foi numa tarde de fevereiro deste ano que descobri que, uma mulher é, de fato, uma mulher. Não há ser que se compare. Não existe desejos, ou idéias, que se equivalem a dos demais. As “nóias”, as meiguices, a beleza ímpar que faz par com o divino, a sedução, a maçã, e por que não também, a manga mais doce? Uma mulher é uma mulher, aqui, na China, no Alasca... E na França não seria diferente. Godard que o diga.

Cineasta fantastique. Jean-Luc-Godard, nascido em 1930 na França, foi ousado em suas criações, adotando facetas inovadoras no cinema mundial, como, por exemplo, a polifonia, o que o faz precursor do chamado cinema-discurso; os paradoxos, que geram metáforas incríveis; a linguagem descomprometida com padrões – linguagem que se sobrepõe sobre a linguagem - entre outros vários aspectos que não cabe aqui enumerá-los.

Foi um dos principais nomes da chamada Nouvelle Vague, ou seja, “a nova onda” francesa, que desbancou muitas vanguardas conservadoras da época. O cinema novo plantara sua semente, e os frutos espalhavam-se em abundância. Na Itália, o neo-realismo presente nas películas. No Brasil, Glauber Rocha desponta como o principal nome do cinema sob esse aspecto desfragmentador do “concretamente estabelecido”.

Foram muitos clássicos dirigidos por Godard, todavia, neste texto, destaco o longa “Uma mulher é uma mulher” (Une Femme Est Une Femme), estrelado por Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, a musa do cineasta, que, por sua vez, a tomou como esposa. Lá estava eu, no cinema, assistindo a esta relíquia cinematográfica. Para minha surpresa, grande parte do público que ali estava era jovem. O filme já começa apresentando algumas falhas audiovisuais. Não, não se trata de pirataria; o material estava parcialmente comprometido pelo tempo; afinal, o filme fora produzido no ano de 1961 (em Paris, nasce Diana que, anos depois, se tornaria uma das mais célebres mulheres de toda a História). Não fosse sabido o futuro, diria que Godard utilizara-se de um artifício sintomático em relação à Diana, haja vista o título do filme.

Esta obra que emerge no mundo do cinema no auge da carreira de Godard conta a história de uma bela moça, dançarina de cabaré, chamada Ângela, que tenta, a todo custo, convencer o seu parceiro a engravidá-la. Ele, em suas relutas, abre brecha para um possível envolvimento de sua mulher com o seu amigo. Parece um enredo dramático, mas, acreditem, Godard o conduz de maneira tão bem humorada, permeando canções pouco convencionais entre as cenas, que mal se considera a real aflição que a “mocinha” transloucada e equivocada da vida sofre em seu dia-a-dia.

O feminismo estava em alta na época. Até mesmo uma cadela já tinha viajado no espaço, em 1957. A moda vivia sua maior crescente, com a inclusão de roupas mais íntimas e sensuais no vestuário feminino, como a minissaia, por exemplo, criada por Mary Quant. A pílula anticoncepcional também já fazia parte do cotidiano da mulher, desde a década de 50, e tão mínimo comprimido deu a mulher um status tão elevado. Além do favorecimento na inserção no mercado de trabalho, a mulher assumiu enorme autonomia em sua vida sexual, deixando de ser “apenas um ser reprodutor”. Ironia ou não, Godard faz um ótimo contraponto em seu filme, apresentando uma personagem ávida por engravidar e que, para tanto, precisa se submeter às vontades dos homens.

Reprodução = submissão.

Ângela representa a mulher lírica, a mulher de Atenas, como interpreta Chico Buarque em sua famosa canção “Mulheres de Atenas”. É a mulher que anseia pelos seus direitos e ao mesmo tempo diz que “ deviam boicotar a mulher que não chora. A mulher que não chora é idiota”. Choro, historicamente, é considerado sinal de fraqueza, feminilidade. E é isso que a personagem transborda; tudo isso em plena ascendência da mulher, como ser autônomo, na sociedade.

Agora, vamos ao que realmente nos interessa: a música. Há uma cena, em especial, neste filme, que resume com perfeição, a meu ver, a angústia de Ângela; a situação torna-se cômica com a entrada da música, ah, sim, a música! É constrangedora aos ouvidos femininos a letra dessa música. Incrível como a superioridade do homem ainda reinava, e também a inteligência de Godard em sintetizar, numa só cena, toda a história do filme, bem como um dos principais traços estéticos da Nouvelle Vague.

Interpretada pelo cantor francês Charles Azvanour, a canção da semana é: Tu t’laisses aller. Após ouvirem e apreciarem a tradução, poderão imaginar o quanto Azvanour deve ter sido criticado pelos movimentos feministas em polvorosa da época.

A música ganhou uma versão italiana, alemã e inglesa, também interpretadas por Charles. Mas... Uma mulher é uma mulher; até mesmo nos patamares mais elevados da sociedade, ela continua sendo uma mulher. Então, eis a mulher que vos apresento, música e imagem.


Boa música e leitura a todos vocês.
Obrigado, Lohan.


(Pintura de Gustave Caillebotte)




(Tradução das falas)
- Tem uma moeda de 20 francos?
- Sim. Quer tocar um disco?
- Qual?
- "Itsy-Bitsy Bikini"?
- Não. Charles.
- Aznavour?
- Olha esta foto.
- O que é esta foto?
- Uma foto.

*Tradução da canção:

Tu t'laisses aller ( Tu deixa-te ir)

Como tu és engraçada a olhar,
Estás aí, espera e faz birra.
E eu com vontade de rir...
É o álcool que me sobe à cabeça.
Todo o álcool que bebi esta noite a fim de conseguir a coragem,
De confessar que estou de saco cheio de ti,
E de tuas fofocas
De teu corpo que me faz repousar
E que me tira toda esperança.
Não agüento mais, te digo,
Tu me exasperas, me tiranizas,
Suporto teu gênio de cão,
Sem ousar dizer que exageras,
Sim, exageras, agora já sabes,
Às vezes gostaria de te estrangular
Deus, como tu mudaste em 5 anos
Tu estás largada demais
Ah, tu és linda de ver,
Tuas meias caídas nos sapatos
E teu velho robe entreaberto
E teus bobes, que ridículo,
Pergunto-me cada dia
O que fizeste para me seduzir
Como é que pude te paquerar
E te alienar toda a minha vida
Assim pareces com tua mãe
Que nada tem que inspire o amor
Diante dos amigos, que catástrofe
Me contradizes, me interpelas,
Com teu veneno e mau humor
Tu farias tremer montanhas
Ah, tirei a sorte grande
O dia em que te encontrei
Se calasses a boca seria ótimo
Você está largada demais
És uma bruta, és um tirano
Não tens coração nem alma
Entretanto penso muitas vezes
Que apesar de tudo és minha mulher
Se quisesses fazer um esforço
Tudo poderia ser como antes
Para emagrecer, um pouco de esporte
Arruma-te na frente do espelho
Gruda um sorriso no rosto
Maquia teu coração e teu corpo
Em vez de pensar que te detesto
Tenta ser carinhosa
Volta a ser a garotinha
Que me deu tanta felicidade
E às vezes, como no passado
Gostaria que pertinho do meu coração
Tu te aboletasses
Tu te aboletasses...

11 comentários:

Andréa Amaral disse...

O Ministério da Saúde adverte: viva a pílula anti-concepcional e a revolução sexual, que trouxe à mulher muitos direitos e mais responsabilidades de saber ser autônoma:dona de sua vida, de seu corpo e de seus pensamentos; contudo, os efeitos colaterais enraizados na cultura de massa ficam evidentes nesta canção atualizadissima. Mulher, além de mãe, dona de casa, profissional, amante nota dez, companheira, conselheira, administradora e eterna sábia, ainda somos escravas na busca pelo elixir da juventude e beleza. Ser perfeita e deixar as marcas do tempo se mostrarem é ofensa mundial. Não somos mais, parecemos bonecas infláveis. Daquelas que são usadas por parecerem ser o que não são. Brilhante resenha, Lohan. Caprichou em todos os detalhes de análise. Parabéns.

Camila disse...

O ministério da saúde adverte: Este blog vicia.
(P.S.: Estou em período de abstinência e confesso que não vejo a hora de voltar a injetar literatura na veia).

Lohan, amei sua resenha e seu olhar sobre o tema. Fico impressionada com a maneira minusciosa como conduz suas análises!
Andréa, amei suas palavras também, elas traduzem muitas de nós. Beijos aos dois.

Lohan Lage Pignone disse...

O ministério da saúde adverte: uma mulher é uma mulher; duas mulheres, como as dos comentários acima, são duas deusas! Portanto, cuidado para não serem abduzidos por elas, rs.

Adorei o comentário de vocês. Camila, volte a se drogar com literatura, essa droga é legal, muito legal! rs
Andréa, o seu comentário é complementar o texto, vc foi certeira em suas palavras. Vc chegou a assistir esse filme já? Provavelmente vc sentiria raiva da personagem em alguns momentos! (ou dos homens que a rodeiam, rs). A letra da música é perfeita, não?
Beijos, até a próxima française musique.

Simone Prado Ribeiro disse...

Ah, esse filme... Que inveja que eu tenho de ti toda vez que você fala que assistiu a esse filme, e na época eu não consegui. É uma tortura pra mim. Mas não tem nada não, darei um jeito, pois uma mulher é sempre uma mulher, e quando ela quer uma coisa consegue dar nó até em pingo d’água, que dirá em Godard?!! (rsrs..!!!)
Brincadeiras a parte, mesmo perdendo , infelizmente, a oportunidade, fiquei feliz em encontrar algo, uma abordagem tão bem desenvolvida de partes desse filme aqui; além do seu olhar sensível no que diz respeito ao feminino. Lohan, seu texto está um encanto só. Sobre a letra da música, nossa, quando terminei de ler, na hora senti uma raiva danada (rs) por saber o quão atual se faz ,em muitos homens, tal pensamento. Linda imagem que você escolheu de Gustave. E, como leitora, só tenho a agradecer por esse seu trabalho, ampliando o meu conhecimento e reflexão. Uma Jóia de texto!
Bjs!

Blog da Bruna disse...

Lohan, finalmentedediquei minha manhã à leitura dos teus textos sobre a música da França e suas ilustrações tão bem escolhidas.
Vc realmente chega fundo em suas análises, o que nos presenteia com detalhes que e3nriquecem nosso proprio conhecimento. Eu morei na França durante tres anos, minha filha durante 12 anos e temos em família reminiscência bem irraigadas da cultura e do modus vivendi daquele país. Ainda tenho saudade e hoje, não tenho mais condições de voltar nem que seja como turista...
OPessoalmente não sou grande apreciador do Aznavour: acho desagradável a énfase proposital que ele dá ao proprio sotaque de
armenio: charminho fabricado. Já que vc é amante da musica francesa, será muito interessante
- se é que vc já não o fez - dedicar-se`à analise aprofundada das criações de Jacquel Brel que vão muito além das interpretações de outros compositores, visto que ele mesmo foi um compositor muitíssimo acima de qualquer média.
É uma pena que dei ha pouco tempo minha coleção de CDs dele para uma amiga pois meu equipamento acabou e não tenho mais esperanças de poder adquirir outro.....
Pesquise, vc vai gostar muuuuito.Bruna

Lohan disse...

Isso, Simone! Uma mulher quando quer, dá nó em pingo d' água mesmo! rs Quanto ao filme, não se preocupe, com certeza haverá outros festivais do Godard, inclusive eu irei também, pois só assisti esse filme!

Bruna, que ótima surpresa ler um comentário seu! Obrigado mesmo pelas dicas! Jacquel Brel, sim, foi ele quem compôs Ne me quitte pas, não foi? Ele realmente é fora de série.
Na próxima semana, quem sabe, não ''pinta'' uma ilustração a respeito dele?
O Azvanour tem um estilo muito peculiar, eu sinto. Ele, de fato, divide muitas opiniões.
Surpresa saber também que vc morou na França. Agora já tenho mais uma fonte boa de pesquisa, hehe!
Bjão, volte sempre, viu?

Amanda disse...

Oi Lohan, tudo bem? Pode criticar sem ter visto o filme? Hehehe! Pra começar, eu detesto o titulo! Essas generalizações não servem pra nada. Ser mulher então, é o que? Querer engravidar a todo custo? Ok, pode ser que a maternidade tenha sido o maior objetivo da vida das mulheres daquela época, mas hoje ja esta bem longe disso.

Outra coisa que não concordo com você, é que reprodução é sinonimo de submissão. Neste caso do filme até pode ser, mas na vida não é assim.

Mas de maneira geral gostei do texto, das diversas referencias que vc deu ao longo da leitura, so essa parte de "oh, como as mulheres são isso e aquilo" que não me agradou muito.

Valeu! Um beijo!

Lohan Lage Pignone disse...

Oi Amanda, tudo bem!

Seja muito bem vinda ao Autores!

Eu tinha escrito um comentário enorme, rs, mas quando fui publicar, deu erro, que saco! rs. Vou resumir o que eu disse:

-Concordo plenamente com vc. Odeio generalizações também, e maternidade hoje está, necessariamente, aquém dos ideiais femininos.
Só fazendo uma ressalva: quanto a reprodução=submissão, me referi justamente à idéia do filme e da época em que ele fora transmitido. Antes da chamada revolução sexual, a mulher era vista apenas como um ser reprodutor, e isso a tornava um ser ínfimo, um ser submisso às vontades do homem. Mas, claro, se toda reprodução fosse sinônimo de submissão, a mulher já nasceria predestinada a servir ao homem, e isso não é verdade.

No mais, adorei a sua presença por aqui; pode criticar a vontade, negativamente também, não tem problema!

Bjs, Lohan!

Amanda disse...

Oi Lohan! Mas então, você disse "Mas, claro, se toda reprodução fosse sinônimo de submissão, a mulher já nasceria predestinada a servir ao homem, e isso não é verdade".

Dizendo isso você ja esta partindo do principio que é a mulher que quer reproduzir. Eu, por exemplo, tenho mais amigos que querem filhos e fazem pressão nas companheiras, do que o contrario.

A gente tem que tomar cuidado com esses lugares-comuns sexistas que a sociedade nos teima em por na cabeça.

Beijos!

Unknown disse...

"se toda reprodução fosse sinônimo de submissão, a mulher já nasceria predestinada a servir ao homem, e isso não é verdade."

...

Só eu li "E isso não é verdade"?

Nesta afirmação o autor deixa claro que não partilha da mesma opinião com relação as informações supracitadas.

Ou não???

Lohan disse...

Exatamente, Camila.

Mas eu entendi o ponto de vista da Amanda:

"se toda reprodução fosse sinônimo de submissão, A MULHER já nasceria predestinada a servir ao homem, e isso não é verdade."

Deu a entender que só a mulher reproduz um filho. Mas, se vc voltar um período antes desse, eu vinha dizendo a respeito da época em que a mulher era considerada assim. Me referi à época em que se situava homem e mulher, e, mais especificamente à mulher desta época. Eu também penso isso; que hoje, muitos homens sentem mais ansiedade em assumirem uma paternidade do que as mulheres assumirem o papel de mãe.
No mais, penso que, por um lado, a mulher deve sim buscar seu espaço na sociedade sempre. Entretanto, a maternidade é um dom divino que deve ser preservado, e não ''lançado ao léu'' por pílulas anticoncepcionais, por exemplo. Reprodução é sinônimo de felicidade! rs Não estou assumindo aqui uma posição machista, longe disso! Não quero dar uma de Odair José, mandando a mulher ''parar de tomar a pílula''. Não adianta o homem querer ser pai e mulher querer ser reconhecida socialmente, livre, etc. Ambos são seres reprodutores, e a vida precisa perpetuar. Ou não?