domingo, 2 de maio de 2010

Resenha sobre o filme "O Leitor"

Baseado no romance do escritor alemão Bernhard Schlink, o filme “O Leitor”, dirigido por Stephen Daldry (As Horas), nos apresenta uma série de fatos retratados em outrora pelas lentes cinematográficas, com algumas ressalvas que valem a pena serem mencionadas neste texto.

A trama começa a se desenrolar causando um certo ardor, ou, aos mais puritanos, um constrangimento visível: ancora-se em demasiadas cenas de nudez e sexo entre o jovem Michael Berg (David Cross) e a balzaquiana Hanna Shimitz, vivida pela atriz Kate Winslet. Até certo ponto, podia se entender, fazendo um trocadilho com o título do filme, que se tratava de “leitura corporal”. Em dado momento, surgem os aspectos literários e lingüísticos, que permeiam a trama até uma de suas cenas derradeiras.

Kate incorporou até o último fio de cabelo a austeridade que cabia a uma alemã participativa do Nazismo. Participativa, pois ela não teria sido nazista por escolha; foi levada a tal ato, a princípio, enlevada pela ingenuidade, pela carência de um saber básico, essencial, que era o da leitura e da escrita.

O que uma pessoa é levada a fazer quando sofre a precariedade do ensino, ou mesmo sofre com a falta de oportunidades para alcançar o conhecimento trivial? No Brasil é decorrente, nos períodos de eleições, a quantidade de pessoas manipuladas em seu principal ato de cidadania. Manipuladas por desconhecerem, muitas vezes, as questões éticas, e, sobretudo, por não saberem assinar o próprio nome. Um indivíduo como este, incauto, se negaria a receber qualquer auxílio advindo de um político? Seria ele capaz de desacreditar em alguma promessa, construída por um homem mais instruído e malicioso?

A Schutzstaffel (Tropa de Proteção), mais conhecida como SS, foi uma organização paramilitar nazista, composta por guardas ligados ao Nazismo. Esses guardas eram selecionados pela sua “pureza racial”. Mais tarde esse critério cai por terra, devido a necessidade de mais atuantes, e, assim, há adesão maior de velhos, crianças e mulheres – sobretudo pessoas analfabetas, sem perspectiva de vida, camponeses – que viam neste serviço a grande chance de ascenção social. Não sabiam, muitos deles, a dimensão do serviço que realizariam.
No filme, a protagonista foi integrante da SS. Sua sinceridade, em seu julgamento, expressa nitidamente a sua ingenuidade sobrepondo-se à sua natural frieza.Inclusive, o lema da SS era - nada mais, nada menos - do que “Minha honra é a lealdade”.

Diante dessas circunstâncias, como voltar atrás? Hanna, a personagem acusada pela morte de 300 judias, não tinha outra opção senão obedecer às regras estabelecidas pelo sistema. Quanto ao arrepender-se, seria relativo afirmar qualquer coisa; afinal, na Alemanha nazista, o amor e a dedicação extrema à pátria eram incutidos nas pessoas desde a sua infância. Arrependimento, dentro desse contexto, não existiria, uma vez que as justificativas sempre pesariam em nome da pátria.
“O que o senhor teria feito?”, rebate Hanna contra o juiz, em determinado momento do julgamento. O silêncio que se faz é eloqüente. Quem, durante a celeuma bélica e, sobretudo, ideológica, levantaria a voz contra o ordenado do Furher e todo seu poder?

O poder que Hitler adquiriu sobre o seu povo foi conquistado gradualmente através da palavra. Como um austríaco carrancudo, mal humorado e pintor fracassado se tornou um dos maiores líderes da História? Ora, a linguagem utilizada por ele e pelos seus elevados súditos era minuciosamente estudada, planejada. Os pronunciamentos eram totalmente direcionados. “Volker, volker, volker”! Quantas vezes não eram pronunciadas estas palavras? Quanta lavagem cerebral os líderes nazistas não propiciaram ao povo alemão? Tudo isso se deve, sobretudo, à capacidade retórica.

O analfabetismo conduz a submissão, e essa questão pôde ser observada claramente no filme de Daldry. Hanna não admitia seu analfabetismo, pois tinha consciência de que aquela carência causaria às pessoas ao seu redor ares de piedade, ou lhe oficializaria um ser ínfimo perante a sociedade letrada. Sua provável tentativa de crescer socialmente aderindo ao trabalho da SS foi mal fadada, i.e, o grande pulo do gato não tinha sido assimilado: o letramento.

Mais do que um amor propriamente ao jovem Michael, Hanna sentiu a princípio desejo; e, mais adiante, amor ao que Michael podia proporcioná-la, que era tanto o prazer carnal quanto, principalmente, o prazer do conhecimento através da leitura que ele realizava em voz alta. A relação sexual passou a ser uma espécie de condicionamento criada por Hanna: sem leitura, não há sexo. Ou seja, a recompensa de Michael, jovem púbere, que conquistava a cada visita à casa de Hanna a sua autonomia, era o ato carnal.



Hanna tornou-se, inevitavelmente, uma mulher inesquecível para Michael. Talvez tenha havido amor entre ambos, mas não existem fatos expressivos que corroborem esse sentimento. Há muito mais interesses envolvidos do que propriamente amor naquela relação.

Michael, após a prisão de Hanna, demora a inferir toda aquela situação, a perdoar todo o passado da prisioneira. Ele se faz presente na vida da prisioneira, enviando fitas com gravações de livros a ela. Hanna se torna autodidata graças a esse material, e, finalmente, alcança a sua autonomia como ser racional: aprende a ler e a escrever; eis a grande ironia do destino: ambos foram mediadores da autonomia um do outro.

O perdão, aliás, torna-se o epicentro do filme em sua reta final. Michael busca se redimir com a filha, já adulta, pelo tempo perdido durante a sua criação. Por outro lado, ele oferece a chance a uma das sobreviventes judias do campo de concentração a perdoar Hanna Shimitz pelas barbaridades por ela consentidas. A judia, que por sinal se encontra alojada em uma luxuosa residência, se recusa a tal ato, fazendo questão de demonstrar sua superioridade financeira nos dias atuais apesar do passado obscuro.

Essa história, que se passa em diversos períodos temporais, pode ser destacada também por duas razões técnicas: a fotografia e a atuação. Há momentos no filme que se dá vontade de ficar de olhos fixados na cena durante horas, de tão bem focada, de tão belo o panorama, como na cena em que Michael se lança, nu, dentro de um lago gélido, e os raios de sol incidiam suavemente sobre as águas (com o fotógrafo Chris Menges no comando, não podia ser diferente).

A atuação é incontestável, com destaque para o ator novato David Cross e, “chovendo no molhado”, para a atriz Kate Winslet, que alçou o status das atrizes memoráveis do cinema mundial após este filme, sendo, inclusive, consagrada com o Oscar de Melhor atriz por este magnífico trabalho.

“O Leitor” é mais um remédio cinematográfico em prol da cicatrização de uma purulenta ferida histórica que ainda está aberta nas mentes dos homens de bom coração.


Ficha técnica:

Título original: The reader
Gênero: Drama
Duração: 02:04 hs.
Ano de lançamento: 2008
Direção: Stephen Daldry
Roteiro: David Hare, baseado no livro de Bernardo S.
Música: Nico Muhly
Fotografia: Roger Deakins e Chris Menges
Elenco: Ralph Fiennes, David Cross, Lena Olin, Kate Winslet

5 comentários:

Simone Prado Ribeiro disse...

Jóia Lohan! Que texto rico de informações! Adorei saber um pouco mais, em suas pesquisas, sobre a Schutzstaffel, os campo nazista e o poder que Hitler conquistou através de sua inteligência e discurso. Esses foram , dentre muitos, os aspectos que chamou mais a minha atenção.
Um beijão
Si.

Lohan disse...

Si, eu também me fixei bastante nessa temática; afinal, é que vivemos em nosso dia-a-dia, essa questão da educação, e também ''até que ponto a carência do saber básico influi na vida de um ser humano''.
Obrigado por ter lido, agora vc sabe que estou curioso para ler a sua! rs
Publique no seu blog também!
Bjs!

Andréa Amaral disse...

Que resenha elucidativa e bem respaldada esta... adorei. Além da análise dos aspectos cinematográficos, foi fundo em observações históricas e completou com uma análise fundamental para que os "leitores" do filme possam reavaliar suas leituras sobre a pessoa de Hannah, deixando talvez, um pouco de lado, o julgamento comum sobre todos os que contribuíram para tamanho latrocínio. Parabéns, Lohan.

Lohan disse...

Obrigado Andrea!
Realmente, muitos ali contribuíram para o holocausto, e por que poucos grupos foram julgados depois, como o daquelas mulheres?
Essa questão foi bem explicitada pela Simone, no blog Poesia em si.
Bjs, até a próxima resenha! rs

Robson Veiga disse...

olá galera, tudo bem...
belíssima resenha sobre o livro, parabéns...
estou deixando também uma resenha sobre o livro, é só acessar e curtir...
http://cafelitterario.blogspot.com/2011/02/entre-segredos-gozos-e-leituras.html