terça-feira, 15 de junho de 2010

Rafael



Ele foi levado morto na mala do carro da namorada, que chegou completamente nua em casa, com os cabelos cortados à navalha e sinais de violência por todo o corpo. Ele, com a cabeça estourada por uma bala de revólver, já era apenas o cadáver de um jovem de 19 anos...



Recebi a notícia por telefone às oito da manhã. Parecia um pesadelo, já que nos vimos na noite anterior. Noite da qual eu ainda descansava.


Minha amiga, desesperada, me contou aquilo que parecia ter saído de um filme de suspense ou terror de quinta categoria. Não, não podia ser verdade.
Coloquei o telefone no gancho e comecei a pensar em como contaria ao meu irmão, que também dormia, o que parecia ter acontecido.
Meu irmão disse que eu estava louca e pediu que o deixasse dormir. Aos prantos eu repeti que acordasse:
-Mataram o Rafael! Acorda!
...


Desde o fato passaram-se 13 anos, mas volta e meia fico a me perguntar como e principalmente porquê isso aconteceu. Remonto mentalmente as terríveis cenas que antecederam sua morte. Tento encaixar as peças desse macabro quebra-cabeça. Mas não adianta, algo tão brutal jamais fará sentido pra mim.
Como é possível que um psicopata surgido do quinto dos infernos dê fim à vida de alguém que é especial para você? Alguém lá em cima cochilou enquanto a barbárie acontecia?


Rafael e eu frequentávamos o mesmo clube e tínhamos alguns poucos amigos em comum.
Eu tinha por volta de onze anos e ele uns treze quando me apaixonei platônica e puerilmente.
Me fascinava profundamente aquele menino de franja lisa cobrindo os olhos e sorriso muito largo nos lábios.
Às vezes ia ao clube em dias de chuva para vê-lo jogar basquete e só de contemplar aquele sorriso parecia que despontava no céu um sol radiante.
Logo eu já estava colecionando qualquer coisa que trouxesse uma letra "R" estampada.
Era uma admiração infantil, daquelas que a gente não conta pra pai e mãe porque eles não vão entender. Mas lembro que minha mãe descobriu e isso me rendeu algumas broncas.


Fomos apresentados bem mais tarde...
Na adolescencência nosso círculo de amizades nos tornou mais próximos, finalmente.
Quem diria que ele se tornaria amigo do meu irmão? Logo frequentávamos as mesmas casas, as mesmas festas e assim nos tornamos amigos.
Amigos. E isso me bastava. Já nessa época eu tinha quinze anos e ele dezessete.
Lembro do dia em que ele veio me dizer que seu melhor amigo gostava de mim e que achava que eu era a menina certa pra ele. Não tive raiva. Senti que aquilo era um modo carinhoso de dizer que eu era especial.


No meu aniversário de dezesseis anos convidei meus amigos para um churrasco na minha casa. Ao todo, entre amigos meus e do meu irmão compareceram mais de cem pessoas.
Um churrasco, um simples churrasco, mas foi realmente inesquecível.
Rafael estava lá, me paparicando e fazendo a bagunça que já era sua marca registrada.
Lembro de como ele me abraçava toda hora e fingia tomar conta de mim.
No final da festa, ao me ver quieta, sentada num banco, sentou-se ao meu lado e cantou:

"Não, não chores mais... menina não chore assim..." ao que respondi:
- Não estou chorando, só estou cansada! - E assim vi de novo aquele sorriso gigante se abrir pra mim.


Eu nunca soube muito sobre ele. Nunca fui à casa dele. Nunca passei mais que algumas poucas horas ao lado dele. Tudo o que eu sabia era o que me interessava saber: Ele era especial, era meigo, era querido, era engraçado e era incrivelmente bonito.


Bem, ele não está mais aqui... E tudo o que sei é uma história bizarra, dessas que a gente vê em filmes e até em noticiários, mas jamais acha que vai acontecer com alguém tão próximo. Deixo de lado minha opinião revoltada, para relatar o que conheço como fatos:


Cena 1: Amigos reunidos, decidindo qual será a pedida da noite de sábado. A maioria decide ir para uma festa num hotel da cidade. Rafael decide ficar a sós com a namorada com quem estava reatando. Lembro de ter insistido para que ele fosse, e ele disse que não iria de jeito nenhum, mas pediu que eu me cuidasse.


Cena 2: Rafael segue no carro da namorada até um lugar ermo para conversarem melhor.


Cena 3: Um demônio psicopata surge para importunar o casal. Armado, decide render os dois e começar seus jogos doentios. Primeiro dá um tiro na cabeça de Rafael, ordena que sua namorada coloque o corpo na mala e começa então a torturá-la. Corta os longos cabelos da moça com navalha, obriga-a a fazer sexo com ele, violenta-a com o cano do revolver e outras coisas que não consigo nem dizer.


Cena 4: O demônio sai do carro ao ouvir um barulho de alguém se aproximando e ela (por uma força divina) consegue sair à toda com o carro.


Cena 5: A moça chega em casa de madrugada, completamente nua e anuncia aos pais que o namorado está morto na mala do carro.


Cena 6: Meu telefone toca às 8:00 da manhã com a terrível notícia.


Cena 7: O maior velório que já vi pessoalmente. Amigos unidos, incompreensão geral, dor que não cala, saudade que corta.


Assim os anos foram passando e a lembrança daquele sorriso não se apaga da minha mente. Aquele sorriso gigante que se abriu para mim quando eu tinha 11 anos...


Outro dia eu estava assistindo a série Medium, na qual a personagem Allison Dubois sonha com os mortos e ajuda a polícia a resolver casos de assassinato. Gostaria de ter esse dom só por um dia, somente para entender o que se passou naquela fatídica noite e para me assegurar de que ele está em paz. Vez em quando me vem à mente aquela melodia que ele cantou no dia do meu aniversário... e ela me conforta. Eu sinto que no fundo ele deve estar bem, tomando conta dos amigos que deixou aqui, afinal esse é o verdadeiro papel de um anjo. Anjo Rafael.

Este texto não é ficção. É insuportavelmente real.

7 comentários:

Lohan Lage Pignone disse...

Sem palavras.

Lohan Lage Pignone disse...

Ou melhor, como já dizia um mestre da música, "é tão estranho... Os bons morrem jovem".

Renner Monnerat disse...

Se Deus é justo, então quem fez o julgamento?

Lohan Lage Pignone disse...

As vezes o que é injustiça para nós, seja a justiça para o juíz. Muitas letras são escritas por linhas tortas...

Armando disse...

Oi mana Camila! É duro... Difícil qualquer comentário... Qualquer explicação não explicará nada... Embora saibamos que aquilo que se planta... se colherá... isto também não atenua a tristeza...Só nos resta olhar para a Grande Luz Superior... e que venha do Alto Conformação Divina amenizando esta dor que muitas vezes familiares e amigos levam para toda vida... e conte com minha solidariedade e ombro amigo. Abraço Fraterno!

Andréa Amaral disse...

=( ...I know what it is... more than anybody.

Ana Beatriz Manier disse...

Camila,

Sei do ocorrido e conheço a família.Foi mesmo trágico, brutal.
Muitas vezes também penso como você: "Alguém lá em cima cochilou..."
bjs!
Ana B.