sábado, 30 de outubro de 2010

De missão

Exausto. Com uma imensa vontade de tomar uma ducha de água fria. Suado. Esquartejado pelo trabalho. E Freud ainda diz que trabalho traz conforto... Eu chamaria de recompensa.



Na mão, um jornal enrolado de hoje que, já a essa altura, cinco e meia da tarde, era de ontem. Os arautos virtuais já haviam me atualizado dos acontecimentos mais importantes do dia. Como se a demissão em massa que acontecera na minha empresa não fosse um acontecimento importante. Como se minha permanência nesta mesma empresa não fosse digna de um estouro bem sonoro de uma garrafa de champagne... Eu fui irônico, acredite. Minhas dívidas agradecem mais do que a mim.


Arranquei minha camisa e a lancei sobre o sofá. Era tão boa essa sensação. Não me refiro ao estar sem camisa, tampouco ao chegar a casa. Essa sensação de liberdade, materializada em pequenos detalhes, como este. Lançar a camisa molhada de suor sobre o sofá! E não ter que ouvir nenhuma palavra discordante. Eu amo minha mãe, mas eu tinha vontade de matá-la em momentos como este. Sinal de que amo mais a minha liberdade do que minha própria mãe. Ou era apenas o leão nietzschiano que rugia em mim?


O divórcio também me caiu bem. A sensação do vigor concedido pelo banho não podia ser melhor do que lançar a toalha completamente molhada sobre a minha cama de casal. Cama de casal para um homem que dorme sozinho. Ótimo, não? E desta vez não fui irônico.


Fetiche com secretária. Eu ainda teria uma secretária andando de um lado pro outro, em meu escritório, segurando todos aqueles papéis, atarefada e satisfeita, exibindo suas belas pernas não cobertas pela sua saia acinzentada que ultrapassava ligeiramente a fronteira dos joelhos. Os cabelos presos, os óculos bem arrumados sobre o nariz, o batom discreto que tornava seus lábios ainda mais sedutores... Secretária que sabe se abaixar para apanhar um objeto solitário ao chão e que, estrategicamente, torna-se a mulher mais oferecida que existe sem perder nenhuma gota do poço de sua inocência. Eu ainda teria uma secretária para atender a todos os meus interesses... Mas enquanto eu não a tinha, em carne, muita carne, e ossos necessários, claro, eu me contentava com a tal da eletrônica. Mundo sem graça este, que se faz cada vez mais eletrônico.


Verificar a secretária eletrônica era sinônimo de frustração. Lá estava eu... Primeira mensagem: “Filho, como vai? Eu fui assaltado ontem na saída do banco, levaram toda a minha aposentadoria... Filhos de uma puta... – Breve pausa, com respiração carregada – Preciso da sua ajuda, filho. Uma ajuda em dinheiro... É urgente. Entre em contato, fique com Deus, garotão”.


Pai... Sempre procurando por mim, o seu “garotão”, quando está sem dinheiro para apostar em seus cavalos. Nunca acreditou em Deus e ainda deseja que eu fique com Ele. Esse meu pai...


Mais um sinal. Outra mensagem. Assim dizia uma voz infante, contristada:


“Não dá pra falar muito não, não sei onde to, to machucado. Tão falando que vou aparecer morto no jornal, diz pros meus pais pra comprar o jornal amanhã, tem coisa de anúncio também. Me salva..."


Ouvi aquela mensagem mais de dez vezes.


-E eu pensando que minha diversão noite adentro fosse assistir os filmes do Steven Segall que aluguei...


Sem saber bem o que pensar, telefonei para todos os amigos e parentes os quais eu sabia que tinham um filho. Nenhum indício de desaparecimento.


Meu telefone registrou apenas um número desconhecido. Não havia como identificar esse refém.


“Ligar para a polícia?”, pensei. “Não, eu quero dormir”, conclui, já com as pestanas pesadas.


Joguei-me na cama. Com o olhar fixo no teto, aventurei-me em mais devaneios a respeito da misteriosa mensagem. Serviu-me de lenitivo para um sono perfeito. O herói dessa história roncava enquanto as vítimas do mundo esperavam pela sua chegada.


Quando abri os olhos, a luz do sol já se esquivava pelas brechas da minha persiana e tomava todo meu quarto. Dei um salto da cama, esfregando os olhos.


Corri até o banheiro, fiz o que todos fazem todas as manhãs, exceto os que abominam a higiene. Pus água no fogo para o café. Não estava tão preocupado com a pontualidade no trabalho. Talvez servisse como justificativa para a minha demissão. “Arnaldo, você acaba de ser demitido. Você se atrasou dois minutos”.


Abri a porta e apanhei o meu jornal. Voltou-me à mente aquela voz. Aquela mensagem na secretária eletrônica... Sentei-me à mesa e pus-me a vasculhar cada notícia, cada anúncio daquele jornal. Um certo remorso de nada começava a me invadir. Eu queria confirmar que tudo estava bem, era só isso.


“Ai não...”.


Eu geralmente xingava bem alto quando algo me surpreendia negativamente. Mas aquela notícia causou-me uma espécie de paralisia das palavras inadequadas. Tornei-me um cordeiro vulnerável, perdido no interior de uma cova de leões famélicos. Precisava de alguém que me salvasse, que me dissesse: “isso é mentira”. As únicas palavras que conseguia pronunciar, naquele momento, eram as da notícia:


“Uma criança de doze anos foi brutalmente assassinada em um galpão. Antes de morrer, o menino foi violentado. Sobre o corpo, foi encontrada uma placa, de um anúncio de sapatos. Sapatos Black Beauty”...


Interrompi a leitura. Engoli a seco.


-Sapatos Black Beauty... Oh meu Deus...


Prossegui a leitura em voz alta. Meus ouvidos precisavam testemunhar esse caso. Talvez eles se opusessem a meus olhos, e desmentissem esse fato.


“Na placa, o assassino deixou uma mensagem: ‘Ele morreu por isso’. O empresário Fernando Lopes, pai da vítima, alega ter sido vingança. Segundo o dono da fábrica de sapatos, cujo anúncio foi encontrado sobre o corpo da vítima, muitos funcionários foram demitidos ontem, devido uma contenção necessária de despesas. Ele suspeita de alguns funcionários, os quais chegaram a ameaçá-lo por conta da demissão”.


Atordoado, caminhei até a minha janela. Observei todos os corpos em movimento cinco andares abaixo. Senti uma vertigem, uma náusea... Aquela mensagem agora latejava em minha cabeça incessantemente.


Comecei a especular o contrário. Por que havia de ser justamente aquela criança que me telefonou? Tudo poderia não passar de uma infeliz coincidência. Por que ela ligaria para mim, e não para o pai dela?


A água estava secando na chaleira. Talvez minha cabeça estivesse fervendo mais. Pensei pelo lado positivo: ao menos, eu não seria considerado um suspeito, afinal, não fui um dos demitidos.


Minha campainha tocou.


Quase me engasguei com o café. Fui atender a porta. Um policial nada simpático estava diante de mim.


-Nós capturamos o assassino do filho do seu patrão.


-Bom... Que...Bom, é, que ótimo. Quem é?


-Chama-se Vitório Almeida.


-Nossa... O Vitório fez isso?


-Ele se entregou há duas horas. Ele e mais dois capangas raptaram e mataram a criança. Conferimos as últimas chamadas do celular dele, e descobrimos que a última ligação foi feita para a sua residência.


-Co, como assim? Para a minha residência?


-Por volta das quatro e quinze da tarde.


-Desculpe, mas eu estava no trabalho ainda. Por que ele ligaria para mim, não?


-O problema é que não foi ele quem ligou para o senhor. Segundo ele, foi a criança. Ela aproveitou-se de uma distração deles, pegou o celular e na pressa discou o número do primeiro nome da lista telefônica. Era o seu, senhor Arnaldo.


Mergulhei em um estado hipnótico.


-O senhor está bem?


As palavras soaram muito estranhas.


-Sr. Arnaldo?


-Eu, eu... Eu estou arrasado. Completamente arrasado. Eu... Eu não pude fazer nada. Absolutamente nada.


-Eu entendo... Gostaria de intimá-lo a depor. Precisamos esclarecer essa história.


-Esclarecer? Como assim?


-E se não foi a criança que te ligou? Esta é a versão do assassino.


-Foi ela quem me ligou.


-De onde vem essa convicção?


Hesitei, e disse:


-Confira a... Confira a minha secretária eletrônica.


O policial assim fez. Ele olhou para a minha cara com uma expressão repulsiva.


-Por que não informou a polícia, senhor Arnaldo? Poderíamos ter tentado rastrear essa ligação!


-Eu estava com sono. Eu trabalhei demais. Trabalhei demais para o pai dele. Sou uma má pessoa por ter sentido o corpo pesar e cair sobre a cama ao invés de ficar dedicando minhas horas de descanso a uma mensagem sem pé nem cabeça como essa? Tenho culpa se não me chamo Valdomiro, mas sim, Arnaldo, e sou o primeiro nome da maldita agenda do celular de um babaca que mata uma criança por ter perdido um emprego?


O policial ficou me olhando durante alguns longos segundos.


-Você não será preso por isso, senhor Arnaldo. Mas eu não queria estar no seu lugar, neste momento. Em breve retomaremos contato. Tenha um boa dia... Se for possível.


-Eu terei. Aliás, aceita um café? Acabei de passar.


-Não... Obrigado.


Estranhando minha atitude natural, o policial deixou a minha casa. Respirei aliviado. Não sabia bem ao certo a razão daquele alívio. Uma criança morreu... E uma criança nasceu dentro de mim, livre como o vento do litoral. Como aquele policial não queria estar no meu lugar? Eu agora tinha um motivo para ser demitido! E melhor: agora eu tinha uma bela justificativa para dar ao meu pai: sem emprego, sem grana.


O problema seria contratar uma secretária nessas circunstâncias...

7 comentários:

L.F disse...

Lohan, quando você for publicar seu livro de contos, você tem que incluir esse aí. Masterpiece! Principalmente por fazer dos detalhes, uma parte da descrição da vida e da personalidade do personagem. Não é todo mundo que consegue fazer isso mantendo um ritmo agradável pra se ler.

Ana Beatriz Manier disse...

Maior jeito para suspense... Aconselho a explorar o gênero policial.
bj!

Lohan Lage Pignone disse...

Obrigado, L.F! Surpresa boa seu comentário, continue acompanhando nossos textos. Esteja certo de que o incluirei sim, em meu livro de contos. Aliás, este nasceu de um trabalho da faculdade, era pra ser algo bem simples... E nasceu este, rs. Só uma pergunta, perdoe minha ignorância: o que significa masterpiece?

Ana, quando eu era menor, adorava escrever histórias de suspense. Eu costumava ler Agatha Christie, minha mãe tem vários livros dela. Eu estou com um pra terminar faz tempo, pretendo postá-lo aqui quando terminar.

Obrigado, abraços!

L.F disse...

Ah, Masterpiece seria algo como "obra de arte". Eu não lembro onde ouvi essa expressão, pra ser sincero. =X

Anyways... eu acompanho o blog do Autores S/A já tem um tempo, indicação de um amigo meu, o Robertinho (acho que você deve saber quem é. Estuda contigo, se não me engano).

Eu realmente não gosto muito de deixar comentários, mas não teve como evitar. Seu conto foi o que salvou meu domingo! ;P

Vez ou outra arrisco também escrever algumas coisas... já pensei até em te pedir pra participar do autores, mas sempre achei "putz, nunca que esse cara vai ter vaga pra eu escrever lá." aí nem pedi.

Bem, de qualquer maneira, abraços! Continue escrevendo!

Lohan Lage Pignone disse...

Olá, L.F! Por que não? Por que nós não teríamos uma vaga para você?! Sinta-se convidado a participar conosco!

Obrigado pelo ''masterpiece'', rs. O Roberto é um grande amigo meu, ele não estuda comigo, mas eu o via com frequência, hoje já tem um tempo que eu não o vejo.

Cara, fiquei feliz em saber que meu conto salvou seu dia! Olha que por pouco eu não posto esse conto no domingo, sorte que estava em meu pen drive...rs.

Sinta-se a vontade em comentar sempre. Você é de Friburgo?

Quanto ao convite, está de pé. Caso você aceite escrever no Autores, entre em contato comigo, por esse e-mail: lohanlp@yahoo.com.br

Abraços!

Andréa Amaral disse...

Há muito tempo não leio um conto(no verdadeiro sentido da palavra),
mas esse sujeito conversou comigo e não pude ignorá-lo. Um desabafo e tanto.

Lohan Lage Pignone disse...

Acabei de ler hoje o livro O Estrangeiro, do Camus, e percebi que este meu conto possui um certo teor existencialista, Andréa. Essa angústia do personagem, esse sujeito, e essa questão do: fazer, trabalhar, amar... Tudo isso, para que? É mesmo necessário viver assim?

Entre outras coisas...

Beijos!