sábado, 4 de dezembro de 2010

A falta que sobra



Tudo estava perfeito, a corda, a escada, o banquinho, o lustre resistente e bem fixado no teto e claro, as cartas de amor. Não que fosse necessário tanta precisão, mas ela já pensava nos que remontariam a cena mentalmente atrás de respostas.

Primeiro as cartas. A de papel cor de carmim, fartamente carregada de declarações e encantamento, foi a primeira a ser escrita. Esforçou-se em criar uma caligrafia rebuscada, porém com ares masculinos e uma despedida simples, onde lia-se "com amor, Pedro." Uma gota de perfume no canto inferior esquerdo da folha e um exercício repetitivo de dobra e desdobra para desgastar e marcar o papel. Pronto. Agora a carta em azul celeste, esta mais objetiva, contendo breves relatos cotidianos e mencionando alguma saudade. Outra gota de perfume e claro, a despedida, "Um beijo, Pedro". Mais uma vez o exercício de dobrar e desdobrar para aumentar a idade da carta. Por fim pegou a folha branca. Desta vez o conteúdo era somente a despedida e poucas informações sobre um novo amor. Esta era a mais difícil de escrever, marcada pelas lágrimas que corriam densas de seus olhos e pingavam seguidamente, borrando um pouco a tinta. Nada de perfume, amor ou beijo. No fim, lia-se somente "Pedro". Dobrou e desdobrou duas vezes, para em seguida rasgá-la em pedaços, mantendo os fragmentos próximos, de modo que pudessem remontá-la sem muito esforço. Colocou-as com cuidado em cima da mesa, numa ordem aleatória. Dentro do envelope da primeira carta colocou algumas pétalas de rosas secas, o que pensou, pareceria lembrança de algum momento especial. Abriu uma garrafa de vinho Cabernet e dele bebeu uma taça, deixando o restante também por sobre a mesa. Terminada a etapa das cartas, concentrou-se então nos demais detalhes.

Com o auxílio da escada, passou a corda por entre os cristais do lustre e encontrando um ponto seguro na armação de aço, fez um firme e rebuscado nó. Lembrou-se por um segundo que havia aprendido aquela complicada forma de atar num belíssimo filme de época que assistira ano passado, quando nada daquilo estava previsto para acontecer. Mas agora, agora tudo havia mudado. Agora havia o Pedro, ou melhor, não havia.

Vestindo pijama de flanela, com a maquiagem borrada e completamente descabelada, subiu no banquinho. Chorando muito, passou com cuidado a corda em volta do pescoço. Pensou por infinitos segundos em tudo o que lhe afligia. Pensou no vazio. Pensou na sobra de tempo, na sobra de tudo que não satisfazia. Pensou na falta. Pensou em Pedro. Pensou em quantos Pedros sobraram em sua vida. Pensou em quantos faltaram. Riu-se, questionou-se, por que Pedro? Por que não João? Começou a achar que o nome Pedro talvez não convencesse, mas pensou no trabalho que daria escrever tudo novamente... Talvez as pétalas de rosas fossem clichê demais... Por fim concluiu que Pedro estava bom e que aquilo tinha mesmo de ser clichê. Voltou ao seu princípio, de que o importante era nomear aquela falta com a qual ela não sabia lidar. Pensou nas coisas que deixaria pra trás, no que ficaria pra contar história. Morrer por nada era fraqueza, morrer por amor era coragem. Deu o pontapé no banquinho e debateu-se no ar por alguns instantes, mas parou de pensar no que sobraria, tão logo faltou-lhe o ar.

4 comentários:

Francisco Casa Nova disse...

É minha primeira vez neste blog. Primeira visita, primeiro comentário,primeira impressão. Ficou. O conto é bom, o blog também.

visitarei novamente está casa...abs!

Paulo Fodra disse...

Eu nem sei como descobri esse tesouro. Depois de quase um ano, ler um texto inédito seu é uma alegria infinita! Estava morrendo de saudade das tuas descrições ricas e dos teus enlaces descorcentates!

Beijos!

Van disse...

Muito bom!

Lohan Lage Pignone disse...

Incrível, Camila.
Seu retorno não poderia ter sido melhor.

Agora, o que tem de sobra no blog é seu talento...