terça-feira, 19 de abril de 2011

Ressurreição em Boa viagem.



  Naldo não queria companhia. Por isso mesmo, se mudara para a roça. O cheiro do mato, a conversa das árvores com a água do rio, o humor esquizofrênico das montanhas, se tornaram sua companhia mais próxima, mais íntima. Adorava conversar com a natureza, saboreando seu caneco de café coado à moda antiga. Adorava sentar-se na varandinha de terra batida encolhido em seu casaco de pêlo de carneiro enquanto observava por horas, o constante movimento das nuvens e do clima.
  Ora chovia, ora fazia sol. Ora esquentava, ora esfriava, o que deixava o local úmido o tempo todo. E assim passavam os dias, entre o entrave das burocracias que o obrigavam a ir à cidade e a contemplação solitária de um modo de vida que poucos compreendiam.
  Seu passado era urbano, cosmopolita, frenético. Nos tempos em que morava em São Paulo, sua saúde física e mental foi sofrendo as consequências de quem vive a tortura dos engarrafamentos intermináveis, da poluição, do barulho, dos bueiros entupidos, das agressões verbais de gente que como ele se tornou escrava de um sistema corrompido onde o que vale é fazer dinheiro em milésimos de segundos; em que cada segundo equivale a uma hora; onde parece que um dia é formado por quarenta e oito horas.
  Até que um dia cansou. Se olhou no retrovisor do carro e percebeu que aquela busca incessante por dinheiro  deveria servir a algum propósito. Não tinha mulher ou filhos ou pais idosos que dependessem de sua atenção. Sua vida social se limitava as visitas diárias aos clientes a quem vendia planos de assistência funerária. Não possuía nenhum tipo de hobby, vício ou objetivo. Nem sequer gostava do seu trabalho. Estava simplesmente respirando...
   Mas isso também já era passado. Agora havia chegado o momento, estava pronto. Cinco anos de solidão e agora não havia mais como retroceder. Seu destino estava traçado.
  Só reparou que estava pronto quando seu coração palpitou de emoção ao compreender que
era capaz de concretizar algo que para os códigos éticos cristãos seria uma insanidade mental. Estava pronto para deixar de ser um solitário. Estava pronto para adquirir uma companhia que jamais argumentaria qualquer coisa com ele. Alguém cujo silêncio absoluto e total frieza se encontravam num corpo inerte, morto.  Um corpo vazio de vida, o qual ele banharia, beijaria, abraçaria quando assim o quisesse. Um corpo que ele ignoraria, esconderia, sem obter qualquer  resposta negativa ou positiva. Um corpo que ele teria que buscar na calada da noite misteriosa e cúmplice, no pequeno cemitério de Boa Viagem.

  Seu itinerário se daria sem atropelos. O cemitério local padecia da falta de habitantes. Os moradores já não enterravam mais ninguém naquele lugar. Havia se tornado um condomínio de luxo para pouco mais de cento e vinte privilegiados natais. A culpa era do terreno úmido. Mas isso não vinha ao caso agora.
  Naldo já sabia a quem resgatar da claustrofobia. Havia estudado seu túmulo, observado sua foto, seus traços, seu íntimo e se apaixonou.
  Em poucas horas teria em seus braços aquele esqueleto. Em poucos meses teria de volta esculpida em cera, em massa,  em carne  retirada de um tanque de formol gasoso, a sua Maria. Uma virgem, assim como a mãe de Jesus. E ela ressuscitaria esta noite, Sexta-feira Santa.
  Mas estes pormenores ainda teriam que ser escritos. Por ora, saboreava mais um caneco de café, enquanto se perguntava o porquê das pessoas se interessarem pelos vivos, ou melhor, por aqueles que eles consideravam vivos. Vivo na verdade, é aquele que está morto, pois só ele vive na contemplação, na paz, na doação completa à mãe natureza. E ele parecia o único a saber disso, ou pelo menos, um dos únicos a ter a sanidade de compreender tal fato. Este parecia ser o recado que Jesus deixou quando morreu e ressuscitou. E logo, logo, em poucas horas, ele daria a oportunidade de um vivo considerado morto ter a atenção que qualquer ser humano carente de ar deveria ter. Seu amor e dedicação seriam irrestritos; sua vida voltaria a ter sentido. Não seria mais um vegetal.

4 comentários:

Ana Beatriz Manier disse...

Andréa, sua narrativa está ótima! Direta, causando suspense... vontade de continuar... continue, não pare onde parou, não. O que Naldo vai fazer com o esqueleto,depois que maquiá-lo???? Continua, mulher... Encerrou qdo ia começar a ficar quehte...
bjs!

Lohan Lage Pignone disse...

Por favor, Andrea, faço das palavras da Ana, as minhas! Continue!

Quando comecei a ler, imaginei uma narrativa totalmente diferente, rs. Pensei que você tivesse se inspirado (unicamente) em sua new life, no bucólico que ela representa. Mas, eis que me surgem aquelas imagens, e a ida ao cemitério... Nossa, há muito eu não me surpreendia com um texto assim. Me pareceu até uma espécie de culto, ritual, sei lá. Pode surgir daí uma teoria existencial incrível, Andrea. Dê prosseguimento a essa linha de pensamento.

Muito bom, amiga. Beijos!
Lohan.

Andréa Amaral disse...

E eu que pensava que o Naldo quem era insano e vem vocês dois mais do que empolgados para conhecer a Maria...vou pensar no assunto. Agora, nova teoria existencial foi além da minha própria imaginação, Lohan.kkkkk. Já imaginou? Obrigada pelos comentários.

Lohan disse...

Sim, desenvolva sua ideia, Andrea! Teoria existencial sim: até que ponto se está vivo em morte, ou morto em vida? Naldo foi acometido por uma profunda náusa sartriana.