quinta-feira, 22 de março de 2012

Madame Lise Feu de la Mer


Ao contrário da distinta Confeitaria Prodígio, onde a moda francesa avançava as calçadas e mascarava os detritos, a Camerata Leopoldina acendia suas luzes por volta das 19h para um público de homens ricos, artistas, músicos intelectuais e bons bêbados, numa rua torta e estreita do boêmio bairro do Olegário. Por lá, as meninas traziam um brilho e eram escolhidas a dedo para dançar e cantar números ousados, onde mostravam as coxas nos palcos e as nádegas nos bastidores. Era o ano de 1922 e tudo corria bem por aqueles arredores, onde a alegria parecia se instalar como parceira de farra – quando a polícia não dava batida e levava a escumalha arruaceira das intermediações. O local era frequentado por policiais sem farda, que não pagavam o ingresso (eram pagos para entrar e se comportar como homens livres) e entravam em troca de uma vista grossa para algumas das liberdades tomadas no espaço.
Logo na entrada, via-se a chapelaria, comum nos clubes ou casas de chá. Mas além da grande porta vermelha encapada – de onde se ouvia um burburinho de ruído musical – os bons costumes davam folga aos homens que já chegavam desabotoando os punhos e desatando os nós das gravatas. O calor era grande, tanto pelo ambiente não muito ventilado, quanto pela provocação das rendas e das poucas carnes expostas por aquelas musas, que assim permitiam viagens de euforia, que se davam na soma da cocaína vendida nas farmácias (ao lado de depurativos, elixires e garrafas de Coca-Cola). A música era uma bomba, aprovada pelos homens rudes e também pelos frequentadores de ouvido refinado e fino trato. Era popular, profana, delicada: tornava o ambiente a casa dos prazeres, com tons franceses de acordeão, vindos de cantos distantes e oníricos. Pois parecia - depois de atravessarem aquele portal divisório – transporem-se para uma área distante do globo terrestre. Rolavam entre os adolescentes mais espertos dessa época, pequenas revistas de mulheres com pêlos avantajados no púbis, seios redondos e sorrisos etéreos. Mas ali, para aqueles homens, aquilo era mais que concreto às vistas: o lar das maravilhas. Tudo compunha: o cheiro de bebida, perfume e suor, as luzes tímidas de penumbra e os pequenos focos de velas sobre as mesas, um mobiliário refinado onde não se precisava escorar ou sentar com a devida elegância do espaço público, lá fora. E fêmeas, poucas, em número certo, livres e lindas, que cabiam nos olhares e na imaginação dos muitos pagantes.
Este local nunca seria o mesmo. Impressionante pensar como uma presença feminina iria revolucionar não só aquele espaço febril, mas toda a cidade comportada. Madame Lise Feu de la Mer - Lise para amigos íntimos que a visitavam depois de suas apresentações e a levavam para jantares e passeios. Era esta uma francesa recém-chegada ao Brasil, mulher de fogo, artista renomada no país de origem, amante dos que a alçavam às alturas sociais. Queria devorar a todos e tinha trejeitos de santa. Viajou para o Brasil com a promessa de ser a maior musa de cabaré das Américas. E foi. Pagavam caro para vê-la, e bons políticos presenteavam joias. Alucinava com seu número de entrada, sem a presença de coristas. Era somente ela, com um foco de luz nos lábios, o corpo sendo seduzido aos poucos por outras luzes que espocavam e expunham um feitiço que nenhuma outra conseguia alcançar. Começava assim a noite espetaculosa: palco escuro, expectativa... uma cortina se abria com uma perna da fera e um canto de sereia assombrava e fazia tremer as pernas daqueles homens que estavam ali para serem fortes. Ninguém resistia à voz daquela mulher e uma cortina brilhante - uma miríade de estrelas - anovelava-se a ela. Mas apenas uma estrela era capaz de brilhar naquela escuridão. Ouvia-se, doce e calmamente, maliciosa e gostosa, a voz que convidava ao delírio: Ma chambre est un repaire de la luxure, la colère vient à démêler. Mes fenêtres sont ouvertes à la briseQuand j'ai vu que tu étais là, à regardermon jour à l'autreQu'ai-je faitVous avez demandé à chanter!
Era mais velha que muitas das meninas, conhecia o can-can com a habilidade de suas pernas longas, mas não mais o dançava. Exibia-se agora de jeito delicado, sem ser ágil, com olhos fuziladores. Era diferente das outras – não era vulgar nem se estadeava à toa. Tinha olhos exóticos de madrepérola, uma tez nívea, uns lábios de tom rosicler, naturais e carnudos, que faziam coreografia com as palavras: Qu'ai-je faitVous avez demandé àchanter ! Era um mar de fogo.
As esposas, revoltadas com a estrela vinda de fora – que mexia com os maridos, arruinava fortunas familiares e era, de fato, a mulher mais quente na cidade – ficavam nos lares rezando, e quando cochichavam umas com as outras, entre muros e vizinhanças, rogavam pragas e ficavam curiosas por ver a francesa fresca – como a chamaram, de cara. Apelidaram-na de Madame Lisa Fedida de Merda. O apelido mal educado rompeu o silêncio e as mulheres passaram a invejar e a maldizer a francesa da Camerata Leopoldina. Mas os jornais não lançavam charges ofensivas nem davam espaço para essa onda contrária que crescia. Apenas manchetes de elogio e de anúncio da grande artista. A Camerata Leopoldina, que antes da chegada de Madame era um antro desesperado da luxúria, tornara-se um local sacro, um espaço de devoção e de grandes números musicais. Ganhara outro status.
Madame Lise Feu de la Mer passara agora a frequentar a Confeitaria Prodígio, o que causou uma balbúrdia na sociedade e aplausos de outros artistas que a reconheciam como brilho único. Lá nunca ia sozinha – estava sempre acompanhada de algum amigo que lhe pagava o chá de hortelã e torradas. Era convidada para rodas de intelectuais, palestrando sobre as modas, os costumes e as vanguardas artísticas. Não era a mulher mais inteligente do mundo, mas sabia sorrir e falar as coisas mais agradáveis de suas experiências – que ninguém sabia se eram verídicas, mas eram sempre detalhadas com boas passagens espirituosas. Tinha sido amiga de importantes literatos franceses, dizia. Muito bem vestida, com rendas, chapéus requintados, perfumes originais, sapatos únicos – as mulheres morriam de inveja por ela ser francesa de verdade, dona de toda a moda e originalidade que elas procuravam alcançar. Aos poucos foi sendo melhor falada nos círculos, mais desejada nas rodas, mas sempre invejada. Era mulher de verdade, possuía um terremoto na alma, era sensível e de opinião. Ganhou seu espaço, vários espaços, jornais, a cidade inteira.
Albertino, um garçon novo na Confeitaria, nunca tinha ido a Camerata. Era de uma família portuguesa, usava um belo bigode e tinha seus 23 anos. Dona Isaurinha, sua mãe, rezava diariamente para que seus meninos não fossem homens de fraca índole e não podia imaginá-los andando por aquelas bandas de pecado. Dona Isaurinha nem gostava do fato de Albertino ser garçon de uma confeitaria frequentada por artistas. Mas ele ganhava bem, era bom moço e garboso, tinha um nível de estudo razoável e ia à missa aos domingos.
Um dia, Albertino viu Madame Lise entrar pela porta do meio da Confeitaria. Sentiu seu perfume de longe e por pouco não derrubou a bandeja quando viu que a mulher olhou diretamente para ele. Neste momento, Lise com um olhar de ímã arrastou o garoto a seu pedido. Estava sozinha e queria um chá de hortelã com torradas passadas em manteiga – tinha um gosto simples e isso gerava admiração das cocotas que olhavam de soslaio o que a madame consumia. O chá foi servido e Madame entregou a ele um lenço de seda, com um perfume doce e delicado. Disse quase sem olhar seus olhos: At-on jamais dit que vous avez les yeux effrayés d'un loup? – algo do tipo : Alguém já disse que seus olhos são de um lobo medroso ? O menino não entendeu nada e pediu desculpas. Ela então soltou : Já visitou a noite de uma estrela?Vous me donne envie d'être jeune. Ela teve vontade de ser jovem com ele. E assim, convidou-o a passar uma noite na Camerata. O rapazola ficou vermelho, pediu licença e foi atender outra mesa, sem tirar os olhos da Madame – que também o olhava. Perguntou discretamente a Rodolfo, amigo garçon da casa, quem era aquela mulher. O amigo riu da ignorância do jovem e disse que ele estava carregado pelas asas da sorte. Nunca Madame tinha se dirigido a um garçon diretamente, entrado no recinto chamando por alguém. Perguntou o que ela entregou para Albertino e ele se intimidou ao dizer que tinha em seu bolso um lenço de seda daquela mulher. Rodolfo não acreditou que Albertino desconhecia a figura de Madame Lise, que só a conhecia de nome. Pudera. Era novo na Confeitaria e vivia uma vida religiosa e calma – não por vontade, mas por costume. Foi para sua casa tentado pelo convite que recebeu, por aquelas palavras que não paravam de ecoar em sua lembrança. Nada tinha sido entendido em francês, mas ele entendeu toda a intenção daquela epifania. À noite, sob o lençol, pôs o lenço perfumado em seu pênis, por debaixo das grossas ceroulas. Se masturbou com medo de ser descoberto na calada da madrugada, mas só teve ali um êxtase, um gozo como nunca, um desejo de mulher. Passou a andar com o lenço no bolso de seu uniforme de trabalho, para que dona Isaurinha não descobrisse - enquanto fuçava suas roupas sujas – os vestígios de um sonho. O rapaz andou distraído, pensando na mulher, zonzo como encantado. Passou a comprar os jornais em que a mulher aparecia sorrindo como uma deusa, passou a perguntar para os amigos como era a Camerata. Até aprendeu o primeiro verso de seu famoso número no cabaré : Ma chambre est un repaire de la luxure, la colère vient à démêler. Assobiou no banho. Passados três dias, Madame retornou à confeitaria certa de quem seria seu atendente. Seu pedido foi o de sempre, mas seus olhos passeavam de forma constrangedora pelo corpo do garçon. Albertino, desastrado com aqueles olhos que o desestruturavam, esqueceu para fora de seu bolso a ponta do lenço dado por Madame. Ela, reconhecendo, sem hesitar, puxou o lenço dobrado e colado pelo sêmen do rapaz. Ela cheirou o lencinho e pediu para que Albertino fosse à Camerata naquela noite. Naquela noite ele não podia – não havia dado tempo para desculpas no lar.
Madame Lise não era virgem, como todos sabiam. Muitas mulheres, mesmo casadas e com vários filhos, pareciam ainda virgens, tanto era o recato, em todos os sentidos. Madame era uma mulher vivida, mas não era flor que qualquer um cheirasse. Os garçons amigos de Albertino não podiam, durante o trabalho, mostrar-se ansiosos pelos detalhes, mas acabado o expediente, vibravam quando sabiam de alguma palavra que ela tinha soltado ao jovem novato. E ficavam abalados de inveja. Todos enfrentavam a fila para a Camerata – nem sempre entravam. E só Albertino ficava em casa, a imaginar a dama da noite. Certo dia, deu-se por resolvido que iria à Camerata, ver Lise como aquele mito. Em casa, disse à mãe que queria melhorar de vida, melhorar os estudos, juntar uma fortuninha para seu futuro e para sua mamãe amada. Disse ter sido indicado a uma vaga no Jornal do Meio Dia, e que teria uma entrevista no Centro, naquela noite. Decidido, disse que o expediente era noturno e que seria uma alavanca para a vida deles. Passou, assim, a frequentar a noite boêmia.
No primeiro dia que se pôs na fila, enfiou-se num chapéu para não ser reconhecido. Não entrou no casarão antigo. Voltou no dia seguinte, viu alguns clientes da confeitaria e gelou. Depois viu Rodolfo e pensou que se ele era antigo na confeitaria e frequentava aquele lugar, também não havia de ter problemas para ele. Entrou pela porta vermelha encapada, ouviu o ruído da música de um outro mundo e se pôs dentro da farra da Camerata. Na mesma expectativa dos outros homens, sentou-se numa cadeira, ao fundo e um delírio passeou elétrico por seu corpo jovem. Como tinha decorado algumas palavras e trechos melódicos de abertura do número musical, se colocou pronto para silabar com ela seu francês treinado, de ouvido. Mas o número era outro. Sem cortina, entrou Madame, sob aplausos e gritos, com máscara de tigresa cintilante de brocal preto: Un chasseur de larges épaules de jeunes m'a regardé, dame de la jungleIl vise la carabine dans mes yeux, frissonne quand il entendit la voix de la bête... uma música animada que levou ao delírio todos os homens que ali estavam. Madame desceu do palco e ao ver Albertino na plateia, foi direto a ele e rugiu como a besta da selva que cantava na música, pegando com suas garras falsas o chapéu do jovem. Meow, bébé –terminou seu número com brilhantismo e galhardia. A cada semana agora apresentava um novo número e a casa passou a ter problemas de lotação. Madame era a estrela da cidade, a dona do coração dos homens.
Esperou a casa fechar para falar com a estrela. Era difícil : um mar de bêbados à frente se colocava como um muro de imbecilidade. Albertino sentiu um desespero, uma raiva desmedida e sem controle. Aquela mulher já era dele, em sonhos e nos olhares que ela lançava. Viu que saiu do camarim um outro homem, elegante e bonito, com a barba por fazer e a camisa desabotoada. Ébrio, percebendo alguns olhares, foi se ajeitando e saindo do cabaré, de sorriso torto na metade de seu rosto, cheirando a perfume doce. Albertino quis morrer, imaginando que aquele homem tinha acabado de estar com Madame em intimidades. Resolveu ir embora, mas não conseguia tirar da cabeça a mulher de seus pensamentos noturnos: Meow, bébé. No trabalho, encontrou com Madame novamente, mas fingiu não vê-la. Foi atender a mesa 13, fugindo com destreza da tigresa da noite passada. Pensou com intenção de ira e nojo: Madame Lisa Fedida de Merda - como soube também chamar.  Mas Madame, que ali estava estonteante e perfumada, foi até o moço, levantando-se da mesa e direcionando-se ao balcão. Ali, pediu para ser atendida por ele. Disse que não parava de pensar no bébé e que ela queria muito conversar em particular com o garçon. Logo Albertino mudou seus pensamentos, sentiu-se orgulhoso por ter total atenção daquela que todos queriam. Topou o encontro, saindo dali do trabalho e ingressando pela porta lateral da Camerata. Ficou se sentindo importante: aquela mulher me quer, a cidade inteira a deseja! Uma grande artista! E eu! Eu!
As horas nunca passaram tão vagarosas. Os minutos frouxos em lentidão. Dado o toque do final do expediente, Albertino saltou em galope para o local marcado. Bateu na porta da Camerata com discrição e aprumou-se, escondendo-se no chapéu para não perder o tino, a compostura e seu brilho. Era um rapaz bonito, de olhos amendoados e parecia mais velho que seus vinte e três. Seu bigode passava a ideia de virilidade, apesar do rosto delicado. Era alto, maior que Madame, e seus braços sonhavam conquistar toda aquela figura. Entrou no espaço, que àquela hora estava muito diferente do período da efervescência.  Um servente da Camerata disse que Madame o esperava. A porta do camarim, apenas encostada, era um convite. Cantava baixo uma cantiga velha, de algum cabaré antigo. Albertino bateu com decisão à porta e entrou sem esperar a voz de Lise. Ela sorriu e naquele primeiro instante, somente um papo demorado tomou de assalto os dois. Ela era mais inteligente e brilhante do que ele imaginava. Ela, com malícia, entregou a ele um novo lenço. Sorriu e ele, já sem a timidez habitual, procurou beijá-la. Ela o afastou, pedindo calma: depois da apresentação de hoje. Ele, afim de não mostrar-se tão fácil numa conquista - coisa de charme -, disse não poder estar presente no número, que tinha que estar em casa. Ela respondeu com encanto: ah, pode sim... Ma fontaine de jouvence, je me perds en toi...
      Depois daquilo, era certo que não havia desculpas do jovem. Ele iria ficar e visitar novamente o camarim da grande dama.
Marcelo Asth

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