sexta-feira, 8 de agosto de 2014

No ponto

(por Camila Furtado)

Não conseguia desviar os olhos dela. Fingiu olhar a paisagem em movimento lá fora. Há uma linha tênue entre admirar uma mulher e assediá-la; não queria interpretações errôneas. Mas no fundo, no fundo, ela parecia corresponder. Se ela descesse no mesmo ponto, seria um sinal de que ele deveria aproximar-se, cogitou. Ele pediu licença à senhora sentada ao lado e levantou-se. Ela deu lugar a uma grávida e levantou-se também. Coincidência, ele pensou. Ela puxou a corda e fez soar a campainha de parada. Será o destino? Questionou. Logo estavam um à frente do outro, esperando o momento de saltar. Ele sentiu o perfume dela, mas conteve-se em olhar para trás. Ela reparou a nuca dele, cabelo bem aparado.

O motorista precisou reduzir bruscamente. Trombaram-se. Ela pediu desculpas. Ele sorriu. Ficaram ali, presos a uma eternidade dos segundos que não passam, assistindo à paisagem de um trajeto sem novidades. Ele imaginava o primeiro encontro não casual. Ela imaginava o momento de apresentá-lo à família. Tentavam conter a ansiedade de encarar-se, contentavam-se com olhares diagonais, daqueles em que se finge estar olhando outra coisa qualquer.  Aos olhos dos desatentos, nada mais que dois distraídos. A essa altura ele já imaginava se ela era do tipo que gosta de um bom vinho. Ela pensava se ele comeria comida japonesa.

Finalmente o ônibus parou e ele desceu. Decidido a não olhar imediatamente para trás, para não demonstrar o interesse pela direção dela. Ela decretou que se ele não olhasse, tudo não teria passado de especulação. Foram andando na mesma direção. Ele retardando o passo e tentando ficar lado a lado. Ela tentava acelerar, equilibrando-se no salto.

Emparelharam-se. Mas até quando? Pensaram, simultaneamente. Se ela olhasse, sim, iria falar com ela. Senão, pronto, aquela teria sido a história deles.
Mas o que ele falaria? E se ela fosse casada? E se ela fosse chata? E se tivesse voz fina demais? E se fosse bipolar por opção? E se sofresse de TPM num grau insuportável? E se pedisse pra ele parar de jogar futebol com os amigos?
Pensou isso tudo, mas olhou mesmo assim. E novamente, eles acertaram no segundo. Ela olhava. Ela pensava que poderia não ser a mulher ideal para ele, já que a carreira para ela era algo muito importante, que talvez ela não pudesse corresponder aos sonhos dele de ter família grande, que talvez ele não entendesse que ela tem um trabalho que exige demais.

Em cerca de dez segundos ela precisaria virar à direita. Ele precisaria virar à esquerda. Eles não sabiam de quantos segundos dispunham. Ele pensou em todos os defeitos que ela poderia ter. Ela pensou em todos os defeitos que ele poderia achar que ela tinha. Continuaram marchando em frente. Nenhuma palavra. Conformaram-se. Foi legal, ele pensou, enquanto durou. Virou à esquerda, conforme todos os dias. Poderia ter sido legal, ela pensou, mas não deu. Virou à direita, como havia de ser. Cada um no seu caminho, pensando no caminho diferente que poderiam ter traçado.

O instante se foi. O encontro já exigia mais que seguir em frente, significava voltar atrás. Ele precisaria voltar atrás na sua velha mania de colocar defeitos em todas. Ela precisaria voltar atrás no seu hábito de colocar defeito em si mesma. Não havia, de nenhuma das partes, disposição para uma nova rota. Ah, mas se ela tivesse virado à esquerda, pensou ele... Ah, mas se ele tivesse virado à direita, disse ela em voz baixa... Foi apenas coincidência, concluíram ao mesmo tempo.


4 comentários:

Lohan Lage Pignone disse...

Ela voltou.

Camila, eu te confesso, até emocionado, o quanto fiquei contente por ter a oportunidade de ler um novo texto seu.

Nunca me esqueço de ''Sinopse'', ''Vermelho'', entre tantos outros já publicados no Autores. E este vem abrilhantar ainda mais o seu acervo. Um romance do porvir, ou, talvez, o romance do se. E quem nunca viveu um fato desse na vida real? Todos já passaram por isso. Com a gente, acostumado a criar histórias, então... A imaginação, além da paixão instantânea, voa longe, sobretudo em transportes coletivos! Ônibus é um celeiro de histórias. E de romances possíveis e reais.

Aproveito, só pra concluir, para lançar uma campanha aqui: Camila, publique um livro de contos!

É isso,
Beijos,
Lohan.

Cinthia Kriemler disse...

Como saber o "se", não é mesmo? Algumas mulheres e alguns homens que conheço teriam forçado a barra. A maioria se dá mal, mas nem todos. Escolha sábia a dos personagens... Ou não? Muito bom esse texto. Quem já não passou por isso atire o primeiro depoimento!

Ana Beatriz Manier disse...

Texto muito gostoso de se ler. E uma boa sacada dessas fantasias relâmpagos que nos passam pela cabeça quando olhares se cruzam.
Bem-vinda de volta Camila, afinal, a casa é sua.

Andréa Amaral disse...

Só sei dizer que me sinto feliz por ter a chance de ler mais um texto seu, poderosa Camila.
Alguns minutos de magia, de especulações, de sonhos e de desanimo, de decepção antecipada....e assim caminha a humanidade nos dias atuais.