sábado, 4 de fevereiro de 2023

O cansaço do tempo (por Lohan Lage)

Segundo estudiosos, o núcleo da Terra está freando. O centro, o norteamento do nosso planeta, está se cansando. Em consequência disso, haverá um gradual encurtamento dos dias. Tempo não é dinheiro: tempo é muito dinheiro. As Bolsas piram. Despencam. Desaceleram. Mas não mais que o nosso núcleo. Exausto em arder suas chamas em si mesmo. Em movimentar um raio de coisas, gente, máquinas, fungos.


Na real, as tão preciosas 24 horas por dia jamais foram 24 horas: a Terra faz sua rotação em 23 horas, 56 minutos e 4 segundos. Arrendondamos, pois, dando aquela esticadinha marota. Em 4 minutos muita coisa se resolve. Milhares de vidas são geradas em 4 minutos. Em 4 minutos, Usain Bolt seria capaz de percorrer seus 100 metros de corrida por 25 vezes. Em 4 minutos muitos usuários podem ficar milionários na BetFair, pois a zebra do campeonato albanês virou o jogo.

Se com menos 4 minutos no relógio rotacional já notamos tanta coisa sendo feita ou por fazer, imaginem só um saldo negativo de menos 10, 20, 60 minutos. A Renata Lo Prete teria que entrar mais cedo em seu Jornal da meia-noite. Ou teria que entrar mais tarde, quando já seria cedo. Os adicionais noturnos levariam empresas à falência. A fadiga intensa do núcleo terráqueo aumentaria a nossa fadiga. Ralaríamos mais, dormiríamos menos.

Cássia Eller canta que "o mundo está ao contrário e ninguém reparou". Hoje talvez a letra fosse adaptada: o mundo está encurtando e ninguém teve tempo pra reparar. O tempo é o mundo. Se um dia deixa de ser um dia, o mundo deixa de ter sentido. Não haverá mais tempo para nada, tampouco para o próprio tempo. A velha máxima de “um dia após o outro”, “um dia de cada vez”, essas frases todas motivacionais sobre cada novo amanhecer, isso seria um problema. As pessoas teriam que reduzir esse ideal e dizer “uma hora após a outra”.

E pra quem anseia por mais tempo? O que são 24 horas para quem arruma mil trabalhos, quer abraçar o mundo e põe a culpa no pobre do relógio quando claramente nem metade das tarefas são resolvidas? Ironicamente, o mundo responderia para essas pessoas que todos já foram felizes e não souberam aproveitar. Que perderam muito tempo se queixando. Que deixaram pra depois as horas que já deviam ter sido vividas, e não apenas giradas pelos ponteiros. Toda passividade diante do tic-tac será castigada.


Seria um fim irônico, lento e cruel. Pouco a pouco, as horas do dia decaindo, o núcleo entregando os pontos. Como se estivéssemos com a água chegando ao pescoço. Como parar pra tomar um fôlego? Morreríamos sufocados pela veloz sucessão de sóis e luas, luas e sóis. Lua nova, velha, quadrada, cheia e vazia. Todas as luas também já cansadas de dar das caras. As fotossínteses em descontrole, o nível do mar subindo e alagando ilhas, países. Viveríamos, nós e a natureza, um duro processo de transição a esse cenário obscuro. Do fim que não põe o ponto final. Que tortura minuto a minuto, que destrói corpos e psiquês, faunas e floras, e não aciona o detonador. É como aquele cara enfastiado da vida, com um trabalho puxado, boletos, berros de criança, conta zerada. É o núcleo se desfragmentando no automático. É aquela mulher já de saco cheio do marido que só vive o externo; come fora, dorme fora, beija fora. Quando dentro, só sabe zapear os canais de futebol e mandar pegar a cerveja na geladeira. E fazer o bife mal passado, porque ele ama o sangue. Ele quer o sangue. Do bife, da esposa. O filho também sugando a paciência dessa mulher, cuja voz já desafina o horror que percorre seus pensamentos. A mulher chuta o balde, boom. Não é o meteoro que vai destruir tudo. O fim não vem de fora, não vem do alto. O fim é o cordão da dinamite, com o fogo se alastrando lentamente pela artéria coronária. O fim não é a explosão: é a rota do fogo. O fim não é a parada cardíaca: é o entupimento da veia.

Núcleos que se desfacelam frame a frame, e ninguém repara. Ou fazem vista grossa. “É só uma fase”. A Terra implode e já não suporta mais frutificar e conviver com quem lhe desfere tanta agressão. Batem na sua cara diariamente. Quebram seus narizes, seus dentes. Suas vértebras. Ela freia, ela recalcula sua rota. Já é o fim. Temos a honra e o pavor de estarmos provocando e vivenciando o fim. Literalmente o fim dos tempos.

3 comentários:

Iara Caldwell disse...

Apocalípticos 4 minutos. Ótimo texto Lohan! Que bom que o blog voltou! Bjs.

joaolnl@gmail.com disse...

Lohan sempre genial falando de algo tão fino e tão presente em nossas vidas.Que possamos viver mais a vida, dar atenção ao tempo e viver o presente da melhor maneira possível!
Feliz com a volta desse blog tão importante em minha vida, "lugar" que compartilhamos muitas boas experiências e aprendizados!

Anônimo disse...

Me remeteu imediatamente ao relógio do juízo final. O tempo urge... e quanto tempo falta para que os ponteiros do Relógio do Juízo Final indiquem meia-noite.? E qto tempo temos para nos redimir de todo o mal que criamos e causamos? Esse tema é infinitamente complexo e subsequente em camadas que permeiam vários núcleos além do terrestre.
Só sei que ler um texto seu demanda tempo reflexivo, filosófico e estético porque é bom, evolui positivamente a cada tema proposto. Seus textos são necessários e estou feliz pelo retorno do Autores! Parabéns, my friend!