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domingo, 24 de agosto de 2014

Literatura salva... ou distrai?

(Por Ana Beatriz Manier)

Tenho algumas lembranças de infância que me remetem a livros. Uma bem tenra, de dois personagens raposas de roupa e chapéu. O que faziam? Em que livro moravam? Não sei. Lembro apenas de sua imagem e de pronunciar seus nomes alto e lentamente, com o orgulho de quem já lia, apesar da dificuldade de quem ainda traduzia sílabas.
Aos dez anos, vivi as aventuras de uma personagem menina que, com olhos curiosos e infantis, extraia vida até de muros lascados e terrenos baldios. Depois joguei com Polyanna o seu jogo do contente, uni dedos com Tristão e segui o príncipe que me fazia olhar para o céu à procura de estrelas que sorrissem.
Livros estiveram presentes ao longo da minha infância, encurtando horas de dias arrastados e ampliando os limites das paredes que me protegiam do vento gelado do Sul. Me foram dados como presentes, lidos em voz alta por minha mãe, até eu ter idade para me apoderar deles. Não me foram impostos, eram amigos que eu gostava de ter, companheiros inesquecíveis.
Mais tarde, alguns viraram fardo nas leituras obrigatórias da escola, que me empurrava clássicos nacionais com autoridade militar, quando o que me interessava eram o susto e o medo de Horror de Amityville e os mistérios de Agatha Christie.  A sutileza de Machado e a profundidade de Clarice viriam depois.
Hoje, tantos livros mais tarde, vivendo de literatura, estudando, traduzindo e escrevendo, acompanho com curiosidade opiniões sobre o que ela representa para cada um e me surpreendo com algumas delas, em especial as que a ligam à salvação.
“Li porque ficava muito sozinho e não tinha o que fazer, a literatura era minha tábua de salvação”, disse-me um amigo escritor, ao se referir a sua infância.
         “Os livros me deram respostas, me salvaram do desespero”, repetiu minha mãe ao longo da vida, nos intervalos de suas crises de depressão.
A palavra salvação − com o perdão de quem a usa para falar de literatura − para mim, que sempre se distraiu com livros, me parece um tanto pesada demais. Vejo a literatura como algo a mais na vida, como a possibilidade de nos aventurarmos por novas searas e de voltarmos às já conhecidas com um olhar diferente. O olhar do outro. Vejo-a como uma forma preciosa de diversão que nos permite viajar pelo imaginário e nele encontrar prazer. Mas nunca, jamais, a vi como substituta de ausências em outros campos de atuação. Algo perigoso, se pensarmos bem.
Meu amigo, tão carente de pais presentes e de outras crianças, encontrou companhia nos livros, mas não salvação, continua lutando a luta diária, se superando, ora vencendo ora perdendo, em constante combate e experimentação. Minha mãe não se salvou; os livros, sua fonte quase exclusiva de conforto, prometeram ganhos que não se tem só com eles.


Coloque o peso da salvação na literatura, recorra a ela transbordando de expectativas à procura da solução para os seus problemas, e se frustrará a cada recaída. A resposta não está ali. “Trouxeste a chave, leitor?”.
 “A literatura não salva, mas adia o inevitável. E nos distrai durante o nosso percurso. Eu procuro fazer algo que gosto enquanto não me esfarelo”, disse André de Leones, num debate na FLIP de 2012.
“Nenhum romance ou conto, nem a soma do que li me humanizou ou me induziu a ser uma pessoa melhor”, posiciona-se André Resende, escritor e editor, acrescentando mais à frente que os livros, num dado momento, o induziram a uma arrogância que só a psicanálise resolveu.
Livros fazem parte do percurso vital do qual nos fala Leones, adiando a indesejada ao nos ocupar e distrair. Nem sempre são companheiros maravilhosos, como diz Resende, podendo às vezes nos levar a posturas que merecerão ser reformadas ou desconstruídas. Mas com certeza, nos ajudam a pensar, exercer a crítica, a procurar a chave dentro de nós. Livros podem muito.
E por poderem tanto e fazerem tanto, tenho ainda dentro de mim a criança que mal vê as horas passarem com a literatura e que adora comentar e debater o que lê. Tenho amigos que fazem o mesmo e, assim, vamos crescendo, construindo, reformando e acima de tudo, nos distraindo nessa vida, a meu ver, não passível de salvação.




domingo, 26 de setembro de 2010

Meu cálice transborda

Dizem que o saber não ocupa espaço. Discordo. Ocupa sim. Preenche vazios, horas vazias, “horas perigosas do dia”.
A cada texto, a cada palestra, a cada aula, a cada nova amizade sinto-me transbordar, como se não houvesse mais espaço dentro de mim.
Em seguida, vem a inquietação. O sentimento de risco. O gosto pelo risco.
E arrisco.
Não tenho medo, sei quem sou: sou Ana, de trás para frente, de frente para trás.
Palíndromo não é uma ilha grega.
Então, com o passar dos dias, das horas, o novo saber é deglutido, absorvido, e os vazios voltam a se avolumar. Hora de mais: de mais leituras, de mais gente, de mais troca, de mais riscos.
O processo não se esgota. Repete-se eternamente. Renova-se.
Meu cálice transborda.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Danilo Caymmi em Friburgo, Fafá de Belém no Cazaquistão.




Dias atrás assisti ao show do Danilo Caymmi, que, até então, eu achava que era o Dori Caymmi (Filho. O pai já morreu, eu sei. Também não sou tão alienada assim...).
Danilo pisou no palco esbanjando alegria. Sua entrada sorridente já dizia ao que vinha. Poderia até não cantar bem, mas cantou, claro. Muito prazer.
Bonitão e com jeito boêmio, sua voz veludo-grave-melodiosa ecoou alto pelo teatro fazendo a platéia abrir sorrisos, suspirar, lembrar-se de algum momento que valia a pena ser lembrado.
Surpreendi-me por conhecer boa parte das músicas e também por não conhecer algumas.
Minha jangada já havia saído tantas vezes para o mar, e eu não tinha me dado conta de que era a família Caymmi que soprava a vela. A vida do negro continuava difícil como o quê, e eu não me lembrava de nenhum Danilo em minhas Andanças.
E os corações que guardo em mim? Nunca achei mesmo que tivesse um só... Pouquíssimos dias antes ouvira um cover de O Bem e o Mal (voz melodiosa também), mas não me ligara muito à letra... até que senti aquele cheiro de vendaval no teatro e, de repente, o deus, o santo e o louco saltaram para cima de mim. Que descaramento! Estava para gritar quando eles sussurraram em uníssono: “Fica fria. Nenhum problema ser assim.”
E o que a Fafá de Belém tem a ver com a história?
Nos intervalos entre as músicas, quando Danilo conversava com a platéia, disse várias vezes que a amiga estava no Cazaquistão (fazendo o quê, ele não disse -- foi preciso uma outra pessoa falar que ela cantou para uma plateia de 1500 pessoas no maior teatro de lá). Acho que ele queria apenas divulgar a estranhesa do lugar. Sendo assim, vou incrementar a divulgação : Danilo veio cantar em Friburgo, Fafá foi cantar no Cazaquistão.

domingo, 12 de setembro de 2010

BAD HAIRDAY!






Peço desculpas aos homens, mas é preciso ser mulher para entender o verdadeiro sentido dessa expressão norte-americana.
Olhar-se no espelho num dia especial, num dia normal, num dia qualquer e ver que seu cabelo está uma massa homogênea e grudenta, ao contrário do que diz a Master Card, tem o seu preço. E alto.
São tantos os estados capilares (cabelos pesados, sebosos, minguados, mechas rebeldes, chifrinhos persistentes, franja colante...) e tão sérios os efeitos colaterais no psicológico feminino (estou um lixo, eu me odeio, imagina se ele me vir assim? e se ela me vir assim?), que só sendo mulher e passando pela experiência para entender... e superar.
Pois lá estava eu naquele dia úmido e frio, após horas de trabalho em casa, em frente ao computador. Tinha que sair, precisava sair, tinha aula à noite e aula que não dava para perder. O trabalho consumira todo o meu tempo, o frio estava de rachar, não seria possível dar aquela lavadinha básica no cabelo, aquela que a gente dá rapidamente na pia do banheiro, só para ele ficar soltinho e você, renovada.
Se minha avó fosse viva, teria dito: “Passe talco e escove bastante, que disfarça.” E por acaso eu iria querer sair de casa cheirando a Tabu ou Cashemere Bouquet? Pelo amor de Deus!
Resolvi abstrair. Ah, quem vai perceber, afinal de contas? Sou muito mais do que meros fios de cabelo.
Bem, saí de casa, entrei no carro, fui para a faculdade. Estacionamento, cantina, sala de aula. Atrasada, como sempre, mas a tempo de não perder o fio da meada.
Sentei nos fundos da sala, onde normalmente se sentam os atrasados, e me liguei no modo “aula”. Perfeito, tudo bem, coisa tola preocupar-se com as madeixas.
Foi então que, por um momento, dei uma desligada e comecei a correr os olhos pela sala. Pelos colegas, pelas colegas... e por seus cabelos...
Fiquei surpresa. Hah- ha! Todos grudentos! Alguns até com marca dos dentes do pente! Éca!
Em seguida, parti da visão geral para a análise individual. Aquela ali, sempre toda salto alto, com aquela franja colada na testa? E aquela outra, sempre “combinandinho”, com os fios encolhidos pela umidade?! Cruzes! E olha só a intelectual querendo disfarçar com um rabo-de-cavalo! Mas o que é isso? O que está acontecendo com a mulherada?
Pois é.... o que estava acontecendo é que estávamos todas com frio, todas tocando a vida para a frente, todas ali, assistindo aula depois de um dia exaustivo de trabalho, todas sem tempo sequer de parar para se olhar direito no espelho, que dirá lavar a juba, encarar um secador de cabelos, uma escova, para, em seguida, sair sob a neblina e os fios começarem a minguar de novo...
E foi bom, muito bom olhar para aquelas cabeças sebosas.
Senti-me reconfortada, normal, incluída. Se estivesse com um copo na mão, teria levantado um brinde: Bad hairday para vocês também!

domingo, 20 de junho de 2010

Elos

Primeira postagem aqui. Vamos lá.

Trabalhava em uma empresa canadense e estava particularmente atribulada naquele mês. Além das funções que desempenhava no departamento de marketing, substituía também a secretária da diretoria, que saíra de férias.

O diretor, hoje de cabeleira grisalha e mente zen, não tinha tempo nem disposição para “bom-dias” ou “boa-tardes”, que dirá para responder perguntas de uma secretária-substituta.

Assim sendo, dei o melhor de mim durante aquele período, busquei o máximo da eficiência e fui resolvendo tudo o que estava ao meu alcance.

Invariavelmente, após a hora do almoço, chegava a correspondência do dia. O boy da empresa despejava amarrados de envelopes e pacotes de sedex na minha mesa e lá ficava eu fazendo a distribuição para os outros departamentos.

Um dia, num desses amarrados, chegou um envelope que me chamou a atenção. Não estava endereçado à empresa, nem a nenhum funcionário de lá. Era um envelope branco, air-mail, vindo do Canadá e endereçado a “Gertrude”, residente em Copacabana, Rio de Janeiro. O endereço estava incorreto, a carta fora devolvida e, em vez de voltar ao remetente, fora para a empresa, em Nova Friburgo e, por força das circunstâncias, para a minha mão. Até aí nada de mais. Um endereço errado, devolvido para o remetente errado. Um remetente canadense, para uma empresa canadense. No entanto, o que me fez parar e ficar olhando para aquele envelope, foi a quantidade de pedidos escritos em caneta hidrocor vermelha, em vários idiomas, para que aquela carta chegasse ao seu destino: “Por favor, entreguem esta carta”.

Fiquei balançando o envelope. Gertrude, apenas. E aí, o que faço? Quero ajudar essa pessoa que parece tão angustiada, mas como? Abro? Tento descobrir quem é Gertrude? De início, fiquei cheia de escrúpulos. Não queria invadir a privacidade de ninguém. Por outro lado, se não o fizesse, a carta se perderia para sempre e sabe-se lá o que mais junto com ela.

Abri. E fiquei emocionada. “My dearest Gertrude...”

Um senhor inglês, Irving, escrevia para a moça que conhecera durante a Segunda Guerra Mundial. Ele fora combatente em solo britânico e ela -- Gertrude, pensei, que estranho... um nome alemão -- uma mulher que ele conhecera nessa época. A carta não fazia menção à forma como eles haviam se encontrado ou quem era ela. Falava apenas de saudade, de desencontros, de rumos diferentes, de separação. E do desejo de reencontrá-la. Eles haviam se conhecido e se apaixonado durante a guerra. Eram jovens e viveram um amor intenso, conturbado, entremeado por granadas, bombardeios e poucas diversões. Decorridos alguns meses, acabaram se separando. Ele foi transferido para lutar em outra frente e perderam o contato. Com o término da guerra, Irving mudou-se para o Canadá. Constituiu família, trabalhou, viveu. Mas nunca deixou de procurar por ela. Décadas mais tarde, com o auxilio de amigos ingleses que fizeram uma busca junto ao que entendi ser um “Ministério Militar”, chegou a esperada notícia de Gertrude: morava no Brasil, no Rio de Janeiro, em Copacabana.

E lá estava eu com aquela carta na mão. Nem sequer cogitei consultar o diretor monossilábico, senti que cabia a mim encaminhá-la ao seu destino, como se eu tivesse sido escolhida para isso. Pensei rápido, uma enxurrada de pensamentos, como a que normalmente se segue a um desejo de solução.

Só uma pessoa poderia me ajudar. Um tal sr. Hans, que era uma espécie de “cônsul” da Alemanha em Nova Friburgo e que conhecia muitas famílias estrangeiras na região.

Já nos conhecíamos. Fui ao escritório dele. Mostrei a carta. Ele se interessou e, assim como eu, comoveu-se. Anotou nome e endereço. Disse que me daria retorno. E deu.

Dias depois, ele me telefonou informando o nome completo de Gertrude e seu novo endereço no Rio. Não fora difícil, disse-me, tinha muitos conhecidos na capital do estado.

Não perdi tempo. Escrevi algumas linhas para o senhor britânico, explicando tudo o que acontecera, pedindo desculpas por ter aberto a carta e dizendo que, finalmente, ela seria entregue em seu destino. Fiz o mesmo com Gertrude.

Dias depois, recebi um telefonema dela. Uma voz de senhora idosa, porém forte, vibrante. Agradeceu imensamente, disse que reencontrara um amigo querido.

Quanto a Irving, após uma carta comovente, fiquei uns dois anos recebendo postais magníficos de Quebec, desde flores esplêndidas a lagos congelados.


E assim termina esta história. Não sou uma pessoa mística, na verdade, acredito em poucas coisas. Sinto, porém, que somos todos elos de uma mesma corrente. E quanto mais elos formamos, mais forte e extensa ela fica. Pelo tempo que passou, Gertrude e Irving não estão mais vivos, mas foram elos soltos que, através dos meus, voltaram a se unir. Elos assim fazem a corrente valer a pena.