Eu estava com a bunda metida na privada, meio de banda, como se naquela posição não fosse me contaminar com as bactérias do mundo. Estava em um banheiro do SESC, preparando o meu psicológico para a aula inaugural de hidro. Ainda ecoava na mente a voz roufenha do doutor Gerúndio, com aquela boca ressequida de quem fuma mais do que engole saliva, me dando uma bela de uma enquadrada com meu exame de sangue entre os dedos amarelos de nicotina. "Um rapaz novo desse, que que isso" e foi aí que sacramentou minha saída: "tem que fazer acupuntura. Ou hidroginástica. Pra dar jeito aí, rapaz". É a danação marcar consulta com médico de família. O mesmo cara que salvou meu bisavô, que tirou a fimose do meu avô e que foi crucial na sobrevivência de minha mãe ao dizer que ela tinha coqueluche quando a família jurava que era espinha de peixe agarrada na goela. Um sabe-se lá a idade, quiçá o cara que deu nome aos verbos indo endo ando, e os pulmões já nas cordas do ringue. Recusei a acupuntura. Não nasci pra ficarem me enfiando agulha na carne, essa merda me lembra vodu. Literalmente, uma furada. Se eu tinha que escolher, que fosse então a piscina. Ao menos aliviaria os efeitos de um verão carioca intenso.
Ainda que a
contragosto, claro. Esse negócio de hidroginástica só não dá mais velho do que no
coral do meu bairro. Mal cheguei ao parque aquático e uma vovozinha andando
meio torto enfiada em seu maiô bege veio se aproximando de mim, perguntando se
eu era o novo fisioterapeuta. Disfarcei dizendo qualquer coisa inaudível e meio
que já ia me escondendo atrás de uns arbustos quando um senhor de bigode,
cabelo, pelos do corpo e sunga branca veio puxar assunto, perguntando o que eu
fazia ali ao invés de estar ajudando meu pai (?). Perguntei se ele conhecia meu
pai e ele com uma lúcida grosseria me mandou na lata um “como não ia conhecer meu
neto?”, e continuou resmungando qualquer asneira, se distanciando de mim. Comecei
a sentir um troço quente e azedo no peito, deviam ser as batatas fritas fazendo
hidroginástica no meu suco gástrico. Antes que eu pudesse sair à francesa, eis
que me apareceu o professor, com sua regata personalizada e uma sunga branca.
Quando ele tirou os óculos escuros, revelou-se para mim a identidade daquele
que ficaria orquestrando um estalar de vértebras coletivo dentro da piscina:
Calvin da Silva. Como esquecer um nome desses, que mais parece uma cópia brasileira
fétida de um perfume famoso da gringa. Aliás, como ignorar uma lenda, que além
de ser nadador profissional, personal trainer, coach de ovos e
modelo de cuecas box, é também o atual da minha ex. Com a cabeça atordoada, amarrei
a toalha na cintura pra disfarçar meu ínfimo volume perto daquele fenômeno da
natureza e escapei dali com turbo nas canelas. Essa tensão toda me deu vontade
de cagar. E lá estava eu no privado, o suor já escorrendo, matutando mil coisas
enquanto meu esfíncter fazia cu doce e não abria a guarda. Ouvi um barulho do
outro lado da porta e a voz em regozijo de um cara. "Ah, que mijada boa,
ah". Era um gemido de tesão de dar inveja em ator pornô. E o ruído grosso
da urina vertendo-se no mictório, um jato típico de bexiga lotada até o tampo.
O cara estava alforriando os rins. E sua vida, naqueles segundos, foi só aquele
prazer. Eu ali quase praticando um ato cívico; ele civilizando um ato. A minha
cabeça ligada no 220 de boletos pra pagar e no tempo que eu estava
desperdiçando por alguma razão. E o cara deixando jorrar o mijo e o instante
como se mais nada existisse. Até que finalmente meu tolete afundou tímido e
silente, sem nem sequer dar um respingo no saco. Saí e lá estava ele lavando as
mãos e acertando as sobrancelhas defronte ao espelho. Era um idoso de sunga
preta, quase totalmente calvo. Quando fiquei lado a lado com ele à pia, a
surpresa. “Dr. Gerúndio?” e minhas mãos ali paradas sob a torneira. A água foi
desativada e continuei ali, meio abismado, olhando para aquele ser decrépito e
sorridente. Ao contrário do que instantaneamente cogitei, ele se lembrou de mim
e até mesmo do meu tratamento. “Opa, rapaz. Então você escolheu a
hidroginástica”. Concordei com um “é” vacilante e perguntei se ele também
estava indo fazer. O médico soltou uma risada alta e um chiado no peito que
mais parecia uma TV analógica sem antena, e respondeu na maior cara dura: “Eu
lá preciso fazer esta merda? Eu tô ali, na outra piscina, com a minha branquinha.
Até a próxima consulta”. Bateu no meu ombro e saiu. Joguei uma água no rosto,
ainda sem crer naquela situação bizarra. Quando saí do banheiro, vi o Dr.
Gerúndio pulando n’água tal qual um adolescente cheio de gás e, em seguida,
vindo até a beira da piscina pedir um beijinho de sua... branquinha. Branquinha
com uma linda marca de biquíni; uma jovem loira de fartos atributos se inclinando
para dar uma bitoca naquela boca ressequida que eu já contei para vocês. Uma coisa
me encasquetou: essa loira não me era estranha. Quando ela voltou para a espreguiçadeira,
descubro quem é a musa do Dr. Gerúndio: a minha prima Aline. Deus do céu, ele
fez o pré-natal da mãe dela. Velha e boa prima... adorava brincar de médico
comigo. Acho que levou essa brincadeira a sério demais. Médico de família, eu
disse, é danação. Aquilo tudo parecia um erro na Matrix. Saí do clube meio sem
rumo, pensando no quanto envelhecer no tempo certo pode ser bacana. Peguei um busão
e me sentei no último assento vago: um preferencial.
Naquele
momento, alguma coisa me ocorreu de que eu era para estar ali e que aquele
lugar estava reservado a mim. Ao meu lado uma septuagenária de blusa de alcinha
rosa e sem sutiã jogava Candy Crush pelo smartphone.
Depois
disso não me lembro de mais nada.
Só
sei que acordei todo mijado, com a senhorinha do Candy Crush me
cutucando. O ônibus estava parado no ponto final. Fiquei tão desconcertado, na
hora eu cheguei a falar qualquer coisa com ela, que eu tinha incontinência
urinária, e ela, toda compadecida, me passou o número do geriatra dela. Sabe,
no fim das contas eu acho que foi um sinal. Eu apaguei, passei do ponto e não cheguei
ao SESC. Esse negócio de hidro não é pra mim mesmo.
–
Matheus... cê tá me zoando, não tá?
–
Como assim, zoando? Te juro. Eu lembro de tudo, real. Eu devo ter sonhado isso
tudo em, sei lá, 15 minutos de sono ou menos.
–
Pode parando, Matheus. Sério... bora conversar como gente adulta, pode ser?
–
Que isso, Amanda, que que tá pegando? Já sei, você não gostou da parada da
minha prima. Mas é passado, e na real, a gente nem brincava direito de médico,
saca, era tipo palitinho de picolé na linguinha, essas paradas.
–
Não tô falando disso. Larga de ser babaca. Você descobriu tudo e veio cheio de
rodeios, inventando historinha de sonho. Cara, já que sabe da porra toda, por
que não mandar logo um papo reto? Seja homem pra encarar o teu B.O!
–
Desculpa, mas eu to entendendo bulhufas.
–
O Calvin! É disso que to falando. Diz aí, como que você soube?
–
Calvin? Ah, tá. O Calvin da Silva, que nome hilário, né? Eu devo ter visto um outdoor
desse maluco já de dentro do ônibus e meio que ele surgiu no meu sonho. Sei
lá, acho que nem Freud explica.
Amanda
dá uma bofetada em Matheus.
–
Que porra é essa, Amanda?
–
Eu odeio esse teu cinismo, eu odeio tanta coisa em você! Arrgh!
–
Até ontem você disse que me amava mais do que mousse de maracujá!
–
Eu nem gosto tanto assim de mousse de maracujá. Na real, odeio coisas que me
dão sono. Tipo você!
–
Tá, mas como assim odeia tanta coisa em mim? Poderia me dar exemplos?
–
Ah, cê quer exemplos? Pois senta que lá vem textão! Odeio quando entra no
banheiro quando to escovando os dentes, odeio quando você lê jornal em voz
alta, odeio quando te vejo lendo jornal porque ninguém mais compra essa
porcaria de folha suja, odeio quando você toma sopa com aquele barulhinho irritante
e ainda diz que é chique, odeio quando apara seus pentelhos com a minha
tesourinha de unha, odeio quando você coloca disco da Xuxa ao contrário na sua
vitrola pra caçar satanás, odeio, ah, eu odeio a sola rachada do seu pé que me
arranha quase toda noite, odeio uma porrada de coisas, odeio te odiar e me
sentir culpada todo dia por isso, odeio me sentir uma bruxa, odeio ter que te
trair com um cara super gostoso que usa uma coleção sexy de cueca box enquanto você
vive andando pela casa de samba-canção alargada. Odeio ter que te dizer tudo
isso assim, mas... você me conhece. Eu acho.
–
Pois é, eu... eu achava que sim. A três minutos atrás eu achava que conhecia
mais você do que você própria
–
Só porque você sabe de cor a minha matrícula do Ensino Médio que fiz há 11 anos?
Isso não quer dizer nada.
–
Por que não terminou comigo, Amanda? Seria tão mais simples. Precisava acumular
tanto ódio no coração? Precisava ter me trocado por esse coach de ovos?
–
É coach nutricional que se fala!
–
Mas ele só fala de ovos nos vídeos dele! Imagina o quanto esse cara não deve
peidar.
–
Dizem que cheirar pum faz viver mais, eu amo quando ele faz isso por mim. É uma
forma de declarar o amor dele.
–
Você sempre reclama dos meus.
–
É que eu não queria ter o pesadelo de viver cem anos ao seu lado.
–
Nossa, que forte. Depois dessa acho que meus gases ficarão traumatizados.
–
Se você já sabia, podia ter acabado com tudo. Ficou dando corda na minha traição
por quê? Planejava invadir o motel e matar a gente?
–
Bem que eu reparava as cutículas nas unhas... você nunca foi pintar as unhas. Como
eu não me liguei nisso antes?
–
Que ridículo! Você reparava as cutículas das minhas unhas?
–
Não é isso que vocês, mulheres, exigem sempre? Que reparem em vocês quando cortam
um dedo de cabelo, quando pintam a unha do mindinho, quando fazem o quinto
buraco na orelha? Então eu segui a cartilha!
–
Só se foi a cartilha do péssimo namorado! Você não soube enxergar a minha
infelicidade, cara. Tudo só gira ao seu redor, e ainda por cima parece um
velho!
–
Tá, mas o que você tem contra os mais velhos?
–
Eu não quis namorar meu avô, é tipo isso. Sabe, Matheus, foi bom ter acontecido
isso. Foi ótimo! Pelo menos agora não preciso ficar mais esperando um timing
correto pra te contar toda a verdade. Papai do céu já te contou em sonho e agora
você pode ir embora do meu apartamento, por favor.
–
Espera, mas esse é meu apartamento.
–
Você tem a casa da sua avó, eu não tenho ninguém nessa cidade, eu sou sozinha,
cara! Será que nem em um término de relacionamento você consegue ter o mínimo
de consideração?
–
Tá, mas a minha avó tem uma tartaruga centenária, você sabe que eu tenho pavor,
eu tenho herpetofobia.
–
Quem é que no mundo pode ter medo de um bicho que nem correr corre?
–
São os mais sorrateiros! Quem é que ganha a corrida no fim, se lembra? É a tartaruga,
não a lebre. Fora que um bicho de cem anos já viu muita coisa na vida, sabe Deus
o que se passa na cabeça deles. Podem ser capazes de tudo. Me arrepio só de
pensar.
–
Matheus, apenas suma da minha frente! Vai! Outra hora você volta e pega suas
coisas. Só some da minha reta!
Matheus
sai, desolado. Desce de escada porque o elevador está com defeito. No caminho,
depara com ele, o modelo Calvin da Silva. Ele está subindo as escadas...
–
Isso só pode ser sacanagem.
–
Opa, boa tarde. Poderia me dar licença?
Matheus
bloqueia a passagem de Calvin.
–
Então é você que está desfilando de cueca box no meu apartamento, né, seu comedor
de ovos?
–
E sem cueca também. Algum problema com meus ovos?
–
Não vão pegar um motelzinho hoje?
–
Não. Hoje a gente resolveu dar uma economizada, guardar pro fim de semana. Você
não era pra estar na hidro?
–
Eu acho que vou virar réu primário.
Matheus
avança em Calvin. O nadador o agarra pela camisa e os dois caem rolando pelos
degraus. Calvin consegue imobilizar Matheus e inicia uma sessão de socos.
–
Não quebra o meu dente, eu acabei de fazer clareamento!
–
Acho que chegou o seu ponto!
–
O quê?
–
Acho que chegou o seu ponto! – gritava o fortão, enquanto socava as fuças do
namorado traído.
Matheus
fica desacordado e acorda, num baita susto, ofegante.
–
O que foi isso, onde eu tô, que porra é essa, meu Deus?
–
Ei, calma, rapaz! Você só estava sonhando. Acho que chegou o seu ponto. Corre! –
alertou a velha do Candy Crush.
Ainda
meio desnorteado, Matheus sai aos tropeços pelo corredor do ônibus e consegue
sair. A claridade do sol ofuscando os olhos, o barulho do trânsito parece ter
triplicado. Já atinando melhor, ele caminha umas duas quadras, para em uma lanchonete
e pede batatas fritas pra viagem. Lambuzando-se de gordura com batata, chega ao
SESC. Vai ao banheiro, coloca a sunga, guarda suas vestimentas. Chega ao parque
aquático, se sentindo um peixe fora d’água e que talvez não queira estar dentro
d’água. Uma senhora de maiô bege, num caminhar meio de banda, se aproxima dele.
–
Boa tarde, moço. Você que é o nosso novo fisioterapeuta?
Matheus
balbucia alguma coisa e sente o baque de um déja vu. Olhando ao redor,
reconhece as pessoas.
–
Ah, não. Será que eu to sonhando ainda?
Matheus
hesita, anda até a beira da piscina e mira seu reflexo na água.
–
Bem, só tem um jeito pra descobrir.
Um
mergulho.
Passam-se
segundos, minutos... o tempo voando. O tempo.
Passa-se,
no fundo das águas, a eternidade de um sonho.