O amor constrói, e destrói. O amor infantiliza um gênio. O amor provoca a ira no exemplo de mansidão. O amor é pai do ciúme, filho revel, sem limites.
Ariano amava Lia.
-O Euclides e a Lia... Se beijando, dentro da minha própria casa...
Sentado no sofá, ele se recuperava do baque. Não quis ser levado para o hospital, já se dizia bem. Foi apenas uma emoção muito forte que não suportara...
-Filho, é melhor não arriscar, vamos ao médico... – Aconselhava Arlete, sua mãe.
-Não, mãe!! Eu não quero mais ir a médico nenhum nessa vida! Eu devia ter caído morto!
Ele ataca o copo d’água contra a parede.
Arlete se aproxima de Ariano e lhe dá um sacolejo nos ombros.
-Olha pra mim! Olha pra tua mãe!
Ressabiado, ele olha.
-Você é o que, um homem ou um rato? Uma criança de cinco anos ou um adulto de vinte? Filho, não diga nunca mais uma bobagem dessas por causa de outra pessoa!
-Mas mãe, é a mulher que eu amo! É a mulher que eu amo beijando o meu traidor, o meu inimigo!
-É a mulher que você ama, sim! Mas ela não é nada sua, a não ser amiga! Conforme-se com isso! Aprenda a lidar com as frustrações do amor. Preferir a morte é a saída? – Esbraveja, descontrolada.
-Acalme-se, Arlete. – Apazigua Walter, colocando a mão sobre o ombro da esposa.
Ariano se levanta e num pranto doloroso, desabafa:
-Ninguém aqui nunca vai entender o que to sentindo nesse momento! Ninguém! Eu fui apunhalado pelas costas por todos aqueles que mais confiei. Eu sempre vou ser enganado, por ser muito bonzinho, muito generoso! Isso é que dá! Eu não agüento mais ser passado pra trás. Eu não agüento mais viver essa vida maldita.
Ariano irrompe sala adentro, enclausurando-se em seu quarto. Bateu a porta e a trancou.
Arlete abraçou Walter.
-Meu amor... Esse dia não merecia terminar dessa forma. O Ariano não merecia isso. O que vamos fazer?
-Pegue leve com ele, Arlete. O Ariano é uma pessoa muito sensível... Eu tenho medo da reação emocional dele. O que vamos fazer... É uma boa pergunta.
-Essa Lia, eu não te disse isso hoje!? Eu disse que vocês não podiam depositar tanta confiança nela, eu disse!
-Fale baixo, Arlete! – Repreende – Eu nunca ia imaginar que uma coisa dessas fosse acontecer... Além do mais, aquela mulher estava totalmente bêbada, não podemos dar créditos à palavra dela.
-Não, ela estava muito ciente do que falou... Pra que ela ia inventar isso?
-Eu vou confirmar isso amanhã. Vou ter com essa menina, a Lia... Ela terá que abrir o jogo comigo.
-Não faça isso, Walter. Finja não saber de nada e tente descobrir se os dois são comparsas!
-Não será necessário fingir. Eu vou colocá-la contra a parede. Mentir ela não pode, afinal, temos uma testemunha.
-E onde está essa Ana Lucia? Ela foi embora sozinha, naquele estado lastimável?!
-Não. Eu mandei um táxi levá-la, amanhã ela busca o carro.
-Fez bem. Eu vou tentar conversar com o Ariano.
Arlete bate à porta do quarto.
-Filho, por favor, responda. Estamos preocupados.
-Me deixe em paz! Sai, sai!
Ariano estava envolto ao lençol branco da cama, tremendo de um frio inexplicável. O coração batia muito rápido, o choro não cessava. Teve vontade de ligar para Lia, e xingá-la, humilhá-la, despejar toda sua raiva, enfim... Ao mesmo tempo, pensava numa maneira de matar Euclides. Nunca pensara em matar um animal sequer. Mas, desta vez... Seu ódio era superior. O amor e o ódio... São irmãos.
Ana Lucia chegou em casa derrubando um vaso de flores. Régis, que já estava deitado, escuta o barulho vindo da sala. Ele confere a hora no relógio de pulso sobre a escrivaninha.
-Onze e meia da noite...
Ele desce a escada e flagra a mulher esparramada no sofá da sala, babando pelo canto da boca. Ele se dirige até ela.
-Ana, Ana – Chama, bulindo seu braço.
-Oi... Oi meu amor.
Ela se aproxima de Régis para beijá-lo, mas ele recua.
-Que bafo horroroso. Ana... Você encheu a cara novamente.
-Ainnnn, até você!!...
-Até eu? Como assim, até eu? Eu sou o seu marido. Você deve me escutar, ta me entendendo?
-Não venha com sermão!
Ela se levanta, cambaleando.
-Vamos tomar um banho frio.
-Deus me livre! Eu vou beber mais um skinho...
-Ana, venha cá.
Régis a segue e agarra em seu braço.
-Você se tornou uma alcoólatra! Sabe o que eu fiz com todos os seus uísques? Foram por ralo abaixo. Todos. Nesta casa, a partir de hoje, não entra uma gota de bebida alcoólica sequer!
-Não acredito, você não podia, não podia ter feito isso!!
Ana dispara a dar tapas em Regis, que a controla.
-Pare!! Para com isso!! Ou serei obrigado a te internar! Vem comigo!
O delegado a pega nos braços e sobe com ela, levando-a para a suíte. Lá, ele a coloca sob o chuveiro, com a roupa do corpo. Ele liga o chuveiro. Ela se debatia.
-Cale a boca e tome essa ducha! Olha pra você, Ana. Uma mulher da sua idade, cometendo um vexame desses... Que exemplo você quer ser pro teu filho, hein? Me diz, porra!
-Para de gritar comigo!! – Ela tapa os ouvidos.
Ele a sacoleja.
-Olha pra mim: eu já aturo muito problema na minha vida, ouviu bem? Se você continuar a ficar nesse estado deplorável... Eu vou embora com o Pietro. Vou pra nunca mais voltar.
-Você não tem o direito!!
-Não existe juiz capaz de permitir a guarda de uma criança concedida a uma mãe... Uma mãe alcoólatra. Infelizmente, Ana... Essa é a sua realidade. Você precisa de ajuda, e eu estou disposto a te ajudar, desde que... Desde que você comece a se ajudar primeiro. Pense nisso...
Régis se retira do banheiro. Ana fica ali, caída de joelhos. As águas desciam ralo abaixo, misturadas às lágrimas de Ana. As águas... Águas do oceano, revoltas, que batiam contra as pedras da Gávea que contribuíam para a formação daquela imensa obra de arte: o céu claro, iluminado pelos raios virgens da manhã nascente; o azul do mar, e o chiado característico do quebrar das ondas nas pedras, na areia...
Ariano observava aquela paisagem de maneira pacífica. Seu corpo estava quebrantado, fragilizado. Abriu os braços e sentiu a brisa matutina arrepiá-lo por inteiro. Respirou-a profundamente. Fechou os olhos. Ao abri-los, caminhou mais dois passos à frente. Agora estava a um passo da queda. Estava na beira do precipício... Estava a beira da morte. Queria senti-la, queria sabê-la. Seria ela mais proveitosa que a vida? A vida que levava? Seria ela menos injusta? Ou não seria ele quem estava sendo injusto com a vida que tinha?
-Ei, mocinho. Não acha que está muito na beirada da pedra?
Aquela voz feminina, firme, ressoou docemente nos ouvidos de Ariano, que despertou do transe a um sobressalto. Não havia ninguém ali, senão ele, há poucos minutos.
-Eu sei que os domingos costumam serem chatos, mas... Este nem começou direito. São só seis e meia da manhã.
A voz se aproximara. Tinha ar juvenil, porém, seguro o bastante para se fazer parecer adulto.
-Está falando comigo? – Indaga Ariano, sem se virar.
-Não tem mais ninguém aqui. Pelo menos por enquanto. Não demora meus amigos estão na área. E você? Está esperando algum amigo ou... É um sonâmbulo que ama a natureza?
-Eu não amo mais nada. Nem a mim mesmo.
A morena de cabelos negros e olhos castanhos reluzentes estava a pouca distancia de Ariano.
-Ela te largou quando?
-Como? Você não sabe da minha vida, menina! Quer dar o fora?
-Está revoltado. Quer se jogar da Pedra da Gávea. Até que você é um cara criativo. Poderia ter porrado com o carro num poste, ou simplesmente ingerir uma quantidade enorme de chumbinho ou anfetaminas, até ter uma overdose. Mas não... Sua morte merece, no mínimo, um requinte de beleza.
-Está sendo irônica, está brincando com minha situação! Quem é você?
Pela primeira vez, ele se vira para ela. Se olharam por algum tempo, silentes. Ela respondeu:
-Eu sou Rebeca. Uma mulher que ama a si mesma antes de mais nada.
-Eu conheço o seu joguinho... Quer que eu saia daqui, tem medo que eu me jogue daqui, não tem?
-Eu, medo? Por que eu teria medo? Eu nem te conheço, cara. Quem devia ter medo é você. Durante a queda, você estará vivo. Pode bater fortemente com a cabeça, ou qualquer outro membro do seu corpo numa dessas pedras pontiagudas antes de cair no chão mais duro que existe nesta condição: o mar.
Imagine se a morte te evitar e você agonizar naquelas águas bravias e geladas? Imagine o arrependimento. Imagine o quanto será tarde demais.
-Eu não quero imaginar nada disso.
-Já imaginou. Já visualizou. Pense no que já viveu, cara, e se morrer dessa forma... Será realmente uma morte merecida pra tu.
Ariano parou naquele instante para refletir. Rebeca cruzou os braços, com a certeza de que fora bem sucedida em sua tentativa.
-Você é psicóloga ou o que, garota?
-Ah, ela riu, Deus me livre. Eu já aprendi muito com a vida. Todos nós aprendemos, cara, todo santo dia. Seja lá o que tenha acontecido a você pra tu ter essa reação... Considere como um aprendizado, sacou?
Ariano mira novamente seu horizonte.
-Ela não me largou. Nem começamos a namorar, na verdade. Ela... Ela é só minha amiga. Quer dizer... Era. Ela se uniu ao meu maior traidor. O meu inimigo. Ela... Ela já foi motivo para o meu viver. Hoje... É o contrário.
Rebeca se aproximou mais um pouco.
-Se não valeu a pena viver por ela... Morrer então...
Ariano sentiu vontade de sorrir ao ouvir aquela frase pronunciada por uma mulher tão bela, e tão simples... Mas não sorriu. Virou-se para ela novamente.
-Vem, vamos sentar ali, trocar umas idéias. Quem sabe você não me diz seu nome?
Ariano sorriu, e chorou, sem perceber. Naquele misto de sentimentos, ele se deu conta de onde estava, e do que estava preste a fazer. Recuou.
Frente a frente com Rebeca, ele buscava palavras para dizer o que sentia.
-Pronto. Fez a boa ação do seu dia. Salvou um idiota de vinte anos do suicídio.
-Eu não gosto de boas ações. Ação pra mim já basta. Vambora tomar alguma coisa.
Ela estendeu a mão para Ariano, que, sem hesitar, a segurou.
Seus pais estavam desesperados.
-Já liguei pra todos, ele sumiu. – Decretou Walter.
-Minha Nossa Senhora! Ele saiu com o carro, pra onde esse menino foi a essa hora!! Daquele jeito!
-Fomos relapsos, Arlete. Não devíamos tê-lo deixado ir dormir daquela forma, sem insistir numa conversa, ou sem esclarecer melhor os fatos.
-Agora que me diz isso, Walter?! Agora só Deus sabe aonde ele foi parar! Ele deixou o celular em casa!
-Ele pode ter ido atrás do Euclides. Na casa da Lia, ninguém atende. Estão dormindo, com certeza.
-Atrás do Euclides... Walter, aonde esse menino mora?
-Até onde eu sei, ele saiu da casa dos pais. Agora... Ninguém sabe do seu atual paradeiro. A Julia também suspeita disso, e disse que irá ajudar no que for preciso para achá-lo. Eu vou atrás dele.
-Mas... Vai, como assim?
-Você fica em casa, caso ele telefone ou volte. Eu vou rodar, ele pode estar perto.
-Sim, vai então.
Lá se foi Walter.
Ariano e Rebeca estavam sentados à mesa de um quiosque, ambos tomando um copo de suco.
-Ta mais relex?
-Sim, to... Eu não ia me atirar daquela pedra, Rebeca.
-Não era o que parecia...
-Não, eu... Eu só queria sentir adrenalina. Sentir a morte bem de perto. Me sentir... Me sentir mais homem, mais poderoso. Tudo isso porque eu preciso matar uma pessoa antes. O meu inimigo.
-Não faça isso. Sua vida vai acabar. Você... Você parece ser um cara bacana pra ficar atrás das grades. Você quis ser sentir mais homem e cometeu um ato super infantil. Um descuido ali, e babau.
-Obrigado por ter me salvado dessa. Reconheço que foi arriscado, que perdi um pouco a cabeça... To muito confuso...
-Passe a amar quem te ama. Pronto, everything is solved.
-Todos dizem que sou um cara bacana. Mas não agem como se eu fosse. A maioria sempre quis me ferrar, me ver mal.
-Inveja, só pode ser. Ser bom no mundo de hoje é dose, honey.
-Gosto do seu linguajar. E do seu sorriso. Além disso... Você tem cheiro de mar.
-Uau, gostei dessa! Valeu... Surfista é assim mesmo.
-Ah, logo vi...
-E vôo também. Asa delta.
-Nossa... É uma esportista de primeira.
-O esporte me libertou de muitos abismos... Pode ser uma boa pra tu também, que tal?
-Não, nem pensar. Nunca fui bom em nada de esporte.
-Sei... Ta esperando o que pra me dizer seu nome e o que faz, hã?
-Ah, desculpe, eu... Eu me chamo Ariano. Sou jornalista.
-Hum, que massa! – Comemorou – Pena que ler é meu castigo, se não...
-Ah, fala sério...
-Ariano... Nome claro, transparente...
-Rebeca, nome forte, ousado.
-Ah, essa foi boa! – Sorri.
-Bem, é melhor eu ir. Meus pais já devem ter notado minha ausência a essa altura, e eu deixei meu celular em casa...
-Cara, tu é maluco! Eles já devem ter chamado até o corpo de bombeiros!
Os dois caem na gargalhada.
-Eu rindo num momento desses... Só você mesmo. Apareceu na minha vida na hora certa.
-E você na hora errada. Eu ia meditar, sabia?
-Ah, meditar?! Por que não se juntou a mim então à beira do precipício?
-Porque quero atingir meu nirvana, e não o fundo do mar com minha cara.
Riem novamente. Recomposto, Ariano se levanta, bem como Rebeca.
-Não quero ler seu nome nas paginas policiais, sacou?
-Você odeia ler.
Rebeca sentiu-se atraída pelo sarcasmo daquele jovem aturdido.
-Ok... Se um dia precisar de mim, ou, sei lá, simplesmente quiser me ver, ser salvo, desabafar... Apareça por aqui.
-É a sua casa...
-Não. É a minha vida.
-Eu volto, quem sabe... Mais uma vez, eu... Eu te agradeço.
Ariano aproxima seu rosto ao de Rebeca. Os dois se olham profundamente e... Se abraçam.
-Até a próxima vez.
-Até...
Ariano deixa o local. Rebeca o vê partir, sentindo no corpo resquícios do calor do abraço de Ariano. Um calor aconchegante, que desejava morar naquele corpo por todo o sempre.
Ariano chega em casa. Sua mãe o recebe com um forte abraço.
-Meu filho, você não podia ter feito isso...
-Desculpa, mãe. Me desculpe, eu... Eu precisava sair um pouco. Me desculpe...
Euclides assistia à tv comendo sucrilhos. Ele lembrava a discussão que teve com Lia na noite anterior...
-Essa menina tem que ser minha... E será.
Ele deixa a vasilha de cereais e vai até o quarto vestir uma roupa adequada. Ia sair.
Tomou um táxi, pediu que tocasse para o...
-Morro do Vidigal, por favor.
Faltavam quinze minutos para o meio-dia. O sol estava de rachar.
Após percorrer um bom pedaço, o taxista estaciona o carro na subida do morro.
-Não passo daqui não, senhor.
-Tudo bem. Aqui está ótimo.
-Tome cuidado aí em cima. Com essa pinta de playboy sei não.
-Eles é que devem tomar cuidado comigo. Toma aqui. Fica com o troco.
Euclides entregou uma quantia em dinheiro ao taxista e saiu, sem mais delongas.
Antes de subir, contemplou o panorama do morro. Os barracos, as crianças correndo uma atrás das outras simulando um tiroteio, homens armados circulando pelos arredores.
Subiu. Na verdade, suas pernas estavam um pouco tremulas. Alguns jovens que por ali rondavam lhe dirigiam olhares esquivos, desconfiados... A mão próxima à cintura... Até que um deles o abordou com uma certa arrogância.
-Ta perdido aqui, neguinho?
Euclides respira fundo. O suor lhe desceu em maior quantidade.
-Não. Estou indo visitar o meu parceiro, Clóvis Aranha.
O moleque sem camisa o olhou de cima em baixo. A arma podia ser vista presa à bainha da bermuda.
-Eu te levo até lá.
Euclides sentiu-se aliviado e o seguiu.
Poucos metros depois, o moleque bateu à porta de um barraco.
-Aranha!
Clóvis apareceu em seguida, mascando um chiclete. Era negro, forte, careca, e tinha a barba mal feita.
-O que manda, menor?
-Visitinha de domingo.
O moleque aponta para Euclides. Clóvis sorri com o chiclete se movendo dentre os dentes amarelados.
-Tranqüilo. É meu chapa. Entra aí, dos Santos.
Euclides agradeceu ao moleque, que passou lhe mirando com um semblante de poucos amigos.
Cumprimentou a Clóvis.
-Então se lembra de mim. – Diz Euclides.
-Como me esquecer... Entra.
Entraram. A casa tinha um odor insuportável de peixe. Estava desarrumada. Guimbas de cigarro pelo chão. A televisão ligada, num jogo de futebol europeu. Euclides passou pela cozinha, e observou uma mulher preparando um peixe para o almoço.
-Bora com esse rango, Maria! Temos visita!
Seguiram para a sala. Clóvis se jogou no sofá.
-Senta, tu não paga não.
Euclides lançou um olhar para o sofá com um certo asco. Nada higiênico... Sentou-se. Clóvis puxou um cigarro da carteira e o acendeu.
-Fuma?
-Não, obrigado.
-Tu não mudou nada pelo visto... Esse teu jeitão de homem certinho, esses olhos que observam até o pouso de uma mosca a metros de tu... Sua retidão me fascina, Euclides. – Ri, irônico.
-Temos algo em comum, Clóvis. Nunca fomos bons exemplos pra esse mundo. Por isso te procurei.
-Eu to mudado, meu chapa. Minha mulher ta grávida. Eu to trabalhando.
-Cocaína ou crack?
-Larguei essa porra... – Ele dá uma tragada – Meu trabalho é honesto.
-Acredita em redenção?
-Eu não quero me redimir de porra nenhuma. Só quero comprar o leite do meu filho com dinheiro limpo.
-Não existe dinheiro limpo, Clóvis. Dinheiro é sujo de origem.
-Como aquele que me pagou pra cumprir aquele servicinho pra tu, lembra?
-Sim. As colas nas provas de Português e Lingüística não foram suficientes. Precisei assaltar a bolsa dos meus pais.
-O que você pediu não foi nada... O lance foi o que te motivou... Disso eu nunca esqueço, véio.
-Esqueça, Clóvis. Pior do que eu fiz foi a sua burrada. Com uma bolsa de estudos na mão, tu se entregou pro mundo das drogas.
-Universidade... Tentações. A vida inteira eu morei no morro, e na Universidade, aquele lugar cheio de playboyzinho e puta, eu me perdi. Comecei a faturar com droga. Conseguia aqui, vendia lá. Lucrava em cima daquele bando de otários chincheiros, que assim como eu, não valorizavam um minuto sequer da oportunidade de ta dentro de uma faculdade federal. Eu me arrependo por toda essa burrada.
-Ainda escreve? Você tinha uma boa redação.
-Se eu fosse um cara certo na faculdade, tu ia fazer comigo que nem fez com aquele nerd, não ia? Ia mandar me dar uma surra por eu ser bom. Ia me expulsar da faculdade. Não ia suportar a idéia de eu tirar notas maiores que a sua. De eu ter mais amigos que tu. Não ia?
-Talvez. Olha, eu não quero ficar relembrando isso... Eu quero te pedir uma ajuda.
-Não quer relembrar... Mas lembrou dos velhos tempos pra vir até aqui... Quem tu quer mandar pra UTI agora?
-Ninguém. Desta vez eu só preciso seqüestrar uma pessoa.
-Ah, ri, só isso que precisa? Ta louco? Tu não se cansa de fazer maldade?
A mulher, da cozinha, ouvia alguns pontos da conversa.
-Clóvis, eu percebo que mudou, que tenta apagar teu passado negro... Mas eu só tenho você como... Como amigo pra me ajudar nessa.
-Não me leve a mal, meu chapa. Mas desta vez... Eu to fora. Esquece esse lance de seqüestro. Pra que isso?
-Porque eu preciso! Essa pessoa, essa pessoa... Eu só quero dar um susto nela, é isso! Ela fez uma merda comigo, eu só quero dar um susto. Não vou machucá-la, até porque... Eu a amo.
-É mulher? – Abismado.
-E daí? Mulher, homem. Mulher é até mais fácil...
-Cara, sai dessa.
-Vem cá, tu virou evangélico? Cadê a bíblia debaixo do braço?
Clóvis se levanta e se coloca diante de Euclides, com um semblante irritado. Euclides se arrepende imediatamente de ter perdido as estribeiras com aquele homem truculento.
-Retire o que disse, seu filho da puta.
Euclides engole a seco, e, trêmulo, ele obedece:
-Me desculpe. Eu me excedi, fiquei nervoso, cara. Foi mal. Olha, eu vou embora. Foi um erro eu ter te procurado. Darei outro jeito, já que não pode me ajudar... Uma pena.
Euclides se levanta e encara Clóvis, ainda inquieto. Estende a mão para Clóvis, que não retribui o gesto.
-Eu não vou te ajudar porque como já disse, não quero mais sujar minhas mãos com dinheiro podre. Mas também não vou te deixar na mão, em consideração pelos velhos tempos... Conheço um cara. Um cara que ta necessitado e que mexe com isso. Mas ele não fará isso sozinho. No mínimo, terá que ter a ajuda de mais alguém. Serviço caro, morou?
-Entendi, claro. Tenho como pagar. Pago o que for preciso. Me leve até esse cara, Clóvis.
Clóvis o estudou por alguns segundos com o olhar atento.
-Tu não presta, dos Santos. Vem comigo...
Ana Lucia estava sentada na mesa da cozinha, tomando uma xícara de café forte. Havia acordado há pouco tempo. Régis chega do parque com o filho. Pietro corre até a cozinha e dá um abraço em sua mãe.
-Mãe!
-Oi, meu amor... Nossa, como ta suado! Vai correndo pro banheiro, vai!
-Eu e papai disputamos corrida, eu ganhei dele!
-Ah, sério?! – Sorri Ana.
-Sério!
-Agora vai lá, seu fedido. Vai.
O garoto corre para o banheiro, serelepe. Régis se dirige à esposa. Ela o olha com vergonha. Lembrava-se de tudo que aconteceu na noite passada.
-Curando a ressaca? – Ele diz, enquanto enchia um copo d’ água gelada.
-É... Amor, me perdoa.
Ela se levanta, indo até o marido. Neste momento, o telefone toca. Ana Lucia vai atender.
-Quem fala?
-Ana, sou eu, Ariano.
-Oi... – Responde, como se já soubesse o que vinha pela frente...
Ela vai para um canto mais afastado da sala, para que Regis não a ouvisse.
-Você ta bem, Ari? Ontem eu te fiz passar muito mal. Eu me lembro de tudo.
-Bem eu não estou, Ana. Se soubesse o ódio que to sentindo... É bom saber que se lembra de tudo. Preciso que me confirme tudo o que me disse.
-Você pode passar mal de novo.
-Não, eu não irei. Fala, Ana.
-Eu vi os dois se beijando. A Lia tentou bater no Euclides ao perceber que eu os flagrei. Fez uma cena. Mas o beijo foi real. Ariano, os dois são suspeitos de assassinato e estão tendo um caso. Afaste-se deles e não faça nenhuma besteira. A polícia vai dar conta deles.
-A Lia não podia ter feito isso comigo. Não mesmo.
-Não entre em contato com eles. Se eles souberem que você sabe do beijo, podem armar algo contra você. É perigoso!
-O que é perigoso para ele, Ana? – Interrompe Régis, aparecendo de repente ao lado dela.
Ana leva um susto.
-Ariano, eu tenho que desligar agora. Fique bem, ta? Beijos.
Ela desliga.
-Eu ouvi uma parte da conversa.
-Não respeitou minha privacidade, Régis.
-Agora tem segredos comigo?
-Não. Eu... Eu ia te contar isso.
-Isso o que?
-O que eu presenciei ontem no aniversário. Eu flagrei o Euclides e a Lia, os dois principais suspeitos por terem matado o Adalberto, se beijando.
Régis fica boquiaberto.
-Meu Deus, Ana! Você tem certeza do que está dizendo? Você... Minha nossa, isso promove uma reviravolta no caso. Eles podem formar um complô...
Régis oscila pela sala.
-Eu vou colocá-los cara a cara. Lia e Euclides. Eles terão que me esclarecer tudo. Tudo.
Domingo à noite. Arlete assistia a tv na sala. Ariano estava no quarto digitando um texto. Excluíra a foto de Lia Neide de seu computador, em meio a lágrimas.
Walter, que havia saído de carro há meia hora, chega em casa. E não chega sozinho...
Arlete entra no quatro de Ariano e, meio sem jeito, diz:
-Filho... Tem uma pessoa na sala que deseja falar com você.
-Uma pessoa? Não pode me dizer quem é?
-Estamos te esperando.
Ela sai. Curioso, Ariano salva seu texto e vai até a sala. Ao chegar lá, se depara com...
-Lia Neide.
Ela, Dona Beatriz e Julia. As três estavam a sua frente. Lia tinha o olhar mortificado, uma aparência lânguida.
-Ariano... Eu preciso que acredite em mim. – Rogou ela.
-Quem trouxe vocês aqui? Hein? Foi você pai? Foi?!
-Fui eu. Ariano, é melhor que tudo se resolva através do diálogo.
-Diálogo? Ela não é confiável! Eles são comparsas! Estamos correndo perigo confiando nela!
Arlete cruzou os braços, inquieta. No fundo, concordava com o filho, porém optou por se manter calada.
-Ela é minha cliente, e sua amiga. Ela nos deve explicações.
-Ela me deve tanta coisa, pai.
-Minha filha não te deve nada, Ariano. A Lia não tem culpa que você a ama. – Defende Beatriz.
O ponto fraco de Ariano foi atingido. Um silêncio recaiu sobre todos.
-Não, ela não tem culpa. Você tem culpa, por tê-la colocado no mundo.
Todos ficaram admirados com tal declaração.
-Ariano, ouça o que a Lia tem a dizer. – Aconselha Julia.
-Tudo o que ela tem a me dizer eu já sei. O que vai inventar? Que ele te beijou a força? E se ninguém tivesse visto? Você teria contado a alguém?
-Sim, mas... Ontem eu fiquei muito nervosa, além do mais, se eu te contasse, você ia se descontrolar com o Euclides.
-Mentira, Lia! Você gosta daquele canalha, vocês estão juntos nesse crime! Se bobear, querem acabar comigo também.
-Ele me beijou a força, eu tentei impedi-lo... Depois ele fingiu, fez um teatro sórdido na frente da Ana. Não vai acreditar na minha palavra?
-Infelizmente, Lia... É muito difícil confiar em você desta vez. Vou entregar os fatos nas mãos da polícia. A verdade virá.
-Vai dizer isso à polícia? – Espanta-se Dona Beatriz.
-O próprio Euclides pode dizer em seu depoimento, amanhã – Calcula Walter – Ele vai querer dividir a culpa, ou jogá-la totalmente nas costas da Lia.
-É uma pena que não acredite em mim, Ariano. É assim que me ama? É esse o seu amor verdadeiro?
-Ariano, por favor! Você é um garoto inteligentíssimo! Já sabe do que o Euclides é capaz! Está na cara que ele armou isso pra cima da Lia. Vai ver ele até sabia que seria flagrado. – Exalta-se a jornalista Julia.
Ariano oscila pela sala, confuso.
-Se meu filho passar mal de novo por causa de vocês, eu não respondo por mim, entenderam?! – Pronuncia-se Arlete.
-Ariano, precisamos nos unir. Somos as vítimas. E você é a chave desse jogo. Precisamos que fique do nosso lado, aconteça o que acontecer. – Prossegue Julia.
Ariano lança um olhar triste para Lia.
-Ele te beijou...
-É esse o problema, Ariano?... Está com ciúmes, acima de tudo. – Deduz Lia.
-Não é ciúme! É raiva... É raiva!
Ele soca a estante.
-Vamos reservar toda essa raiva para descontar nele. O Euclides merece pagar por tudo. É isso que ele quer. Que nós briguemos entre si.
-Julia, ele vai pagar. Eu vou pegá-lo.
-Filho, o que está pensando em fazer? – Perguntou Walter, em tom de repreensão.
-Matá-lo.
Todos se entreolham, assustados com aquelas palavras vestidas de ódio e rancor.
3 comentários:
Afff!
Não nasci para ler um conto de uma semana para a outra... Morro de curiosidade. kkk
Beijos,
Claudia
Eita! O Euclides é tão estressante que até o Ariano está se tornando cínico e agressivo por causa dele. Morre logo, Euclides....
Eita! O Euclides é tão estressante que até o Ariano está se tornando cínico e agressivo por causa dele. Morre logo, Euclides....
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