Olá amigos,
Hoje lhes trago uma pequena análise teórica acerca de uma poesia da excelente poetisa brasileira Cecilia Meireles. Um trabalho que fiz na faculdade, sob avaliação do meu grande professor de Literatura Angelo Grisoli. Agradeço a ele por ter me proporcionado esta passagem - uma passagem para uma profunda viagem, que se chama poesia. Boa leitura a todos!
"Cecília, és tão forte e tão frágil.
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga: Tu, não, és enxuta”.
Assim o poeta Manuel Bandeira define a poetisa Cecília Meireles (1901-1964). Professora, jornalista e poetisa que partilhou da mesma “era da renovação literária no Brasil” com o autor, sendo ambos considerados modernistas. Como ninguém, Cecília soube delinear a faixa invisível do tempo; tempo que fora, para ela, tão visível, tangível... Tempo este que nunca a ludibriou com suas artimanhas. Cecília sempre esteve consciente de quanto as coisas que fazem parte deste mundo, e particularmente, do seu mundo, são breves, passageiras. A relação comparativa de sua vida com suas obras é inevitável. Uma vida marcada pela solidão, pela melancolia. Porém ela, resignada com tal realidade, se diz privilegiada por ter vivenciado essa solidão, sentido essa angústia. Tudo isso se caracteriza como fatores que a impulsionaram a escrever – ou melhor – descrever através de uma singela musicalidade entrelinhas repletas de significação; sinestesias perfeitas da, como bem diz o crítico literário Afrânio Coutinho, “mais alta figura que já surgiu na poesia feminina brasileira e, sem distinção de sexo, um dos grandes nomes de nossa literatura” (2004; pág. 127).
Neste texto, será realizada uma análise teórica de uma de suas centenas de poesias: “Se estive no mundo” (Canções, 1956).
O que mais me chamou a atenção nesta poesia sem pretensão métrica foi a força do existencialismo que nele se encontra. Quem somos? Para onde vamos? Seremos eternos na posteridade humana? O homem quem realmente define sua essência, como diz o filosofo francês Jean-Paul Sartre?
Antes de prolongar a análise, leiamos a poesia para melhor entender essas questões:
Se estive no mundo
Se estive no mundo
ou fora do mundo...?
Mas que lhe respondo,
se o Arcanjo pergunta,
num tempo profundo?
No mundo passava:
porém muito longe.
Por sonhos e amores
me desintegrava.
O mundo não via:
minha permanência
foi, por toda parte,
fantasmagoria.
Dava, mas não tinha.
E, nessa abundância,
nada me ficava:
nem sei se fui minha.
Se estive no mundo
ou fora do mundo?
-Assim me apresento,
se o Arcanjo pergunta
meu nome profundo.
Analisarei, primeiramente, o primeiro verso da poesia. Seu “eu-lírico” é evidenciado logo no primeiro período: “Se (eu) estive no mundo ou fora do mundo?”. O “eu” oculto reforça a idéia que ela imprime no decorrer da poesia. O Arcanjo lhe pergunta “num tempo profundo”, o que pode ser interpretado como “o seu eu mais oculto, mais profundo – o seu verdadeiro eu”. E será justamente este “eu” quem responderá ao Arcanjo nos versos posteriores.
Antes de prosseguir, vale a pena destacar a presença da divina bíblica citada por Cecília: o Arcanjo. Arcanjo significa, segundo a Teologia, “o anjo principal”. De acordo com o livro do Apocalipse, o último livro da Bíblia, os Arcanjos serão os “"Sagrados Cavaleiros, dos Sete Selos, que serão abertos por Cristo, o Messias, prometido por Moisés, desde o Gênesis". Sendo assim, Meireles poderia estar fazendo uma menção subliminar do Juízo Final, que, segundo a Bíblia, será o julgamento do homem, cujos atos praticados durante sua vida na Terra serão todos levados em consideração. Ora, os três versos posteriores ao primeiro soam como respostas “do eu mais profundo” do “eu-lírico ceciliano”; ela estaria sendo julgada pelo Arcanjo que, baseado na integridade de suas respostas, a condenaria ou não”.
Pelo visto, condenada esta não fora; afinal, mostrara “o seu nome mais profundo”, sem máscaras. Despojara-se das vestes humanas. Entregou-se de alma, repugnou o corpo. Desintegrava-se não pelas dores físicas, mas sim, pelos sonhos e pelos amores. O “mundo”, o de carne e osso e máquinas, não foi capaz de enxergar a sua essência. Sua permanência fora invisível aos olhos destes, fora fantasmagórica.
No mundo de hoje, o ser humano se divide em tantas facetas para cumprir suas obrigações, ou simplesmente para persuadir as pessoas. Uma mulher como Cecilia seria mãe, esposa, amiga, professora, escritora... Teria ela sido “ela mesma?” E quanto a nós? O homem consegue, hoje, definir sua essência, uma vez que assimila todas essas experiências num só corpo, numa só existência, num só conjunto de pensamentos (a alma para os clássicos). Entretanto, o homem não consegue ser o que de fato o que ele é, ou seja, ele é todas as construções que ergue dentro si ao longo da vida, e não mais o terreno vazio onde erigira toda esta construção. O terreno, o seu “eu mais profundo”, jamais será retomado. Ou não?
Eis uma imagem do genial pintor surrealista Salvador Dali a qual, segundo minha interpretação, pode ser conjugada com tal poesia de Cecilia:
Este espaço parcialmente vazio, predominantemente branco (cor que simboliza a pacificidade do ser), e a figura de uma mulher e sua sombra são os fortes componentes desta tela de Dalí. A solidão aparente, o vazio, propicia o surgimento de sua sombra. Sua sombra representaria, dentro do contexto em voga, o seu “eu mais profundo”, “aquilo que foge do físico”. O espaço vazio, com exceção de uma montanha mais adiante da mulher, se mostra como o terreno o qual mencionei no parágrafo anterior. Eis uma mulher aparentemente cansada, tomada pela melancolia, refugiada em seu “tempo mais profundo”, descobrindo a si mesma através de sua sombra, pois nada melhor do que a solidão para tal “descoberta”. Um espaço que parece ser infinito, bem como a condição da alma, como aponta a maioria das religiões, acaba por completar a idéia da ausência ceciliana do mundo físico.
No conto “A moça tecelã”, da escritora Marina Colasanti, a personagem “desconstrói” tudo o que havia “tecido” para sua vida; e nesta “desconstrução”, ela reencontra a verdadeira felicidade, que é ser “ela mesma” de novo. Creio que atualmente um dos maiores dilemas do ser humano é ser de fato quem ele é. E Cecília Meireles trata este assunto com uma maestria invejável nesta poesia. De tanto conceder, doar-se, e nada receber em troca, ela nem sabe se foi ela mesma. Ela foi o que os outros, o mundo, a cobrou. A abundância de “seres” a impediu de ser em essência. A efemeridade das coisas, mal que assola o mundo contemporâneo, exige que sejamos várias pessoas numa só vida, sempre vivendo em função de terceiros, de um sistema rígido. Tudo muda em períodos curtos de tempo. Nossa essência se perde sem que nos demos conta, e nossa vida se torna mais um objeto da banalidade.
Uma vez perguntada sobre qual seria o seu maior defeito, ao que Cecilia responde:
Uma certa ausência do mundo. Interessante como esta resposta se encaixa perfeitamente a interpretação dada a esta poesia. Segundo Bosi, “por mundo se entende o fluxo das experiências vividas, tudo quanto foi visto, amado e sofrido; paisagens contempladas, entes queridos, situações de prazer ou de dor”. É justamente deste mundo que ela se ausenta para apresentar a si mesma, o seu “eu mais profundo, o seu tempo mais profundo”. Seria este um defeito? Acredito que não. Se esteve no mundo? Sim, Cecília, tu estivestes em teu mundo, em teu tempo. Ignorastes tudo que se caracteriza como concreto, como mundo de experiência e deixou-se levar pelo etéreo. E por essa condição sublime, decerto que o Arcanjo não há de julgar-te errada, e, por conseguinte, não a condenará.
Talvez seja por isso que Cecília disse, certa vez, que o silêncio e a solidão presentes em boa parte de sua vida foram positivos para ela. Somente na solidão podemos escutar, e não apenas ouvir. No silêncio da solidão, podemos desvendar os pontos mais abissais de nosso ser. Resumindo, podemos, de fato, ser quem somos. Para finalizar, ninguém melhor do que o extraordinário filósofo Nietzsche para corroborar esta idéia, dizendo: “a solidão é o caminho que nos conduz para nós mesmos”.
Referências bibliográficas:
Canções, Cecília Meireles, 1956.
Assim falou Zaratustra, Friederich Nietzsche, 1885.
Céu, inferno, Alfredo Bosi, 1988.
A literatura no Brasil, Afrânio Coutinho, 2004.
Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento, Marina Colasanti, 2000.
Livro do Apocalipse, Bíblia Sagrada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário