quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Lembranças

Se eu fechar os olhos consigo ver direitinho. Olha, Dona Cotinha na janela esperando Geraldinho; oh, o Seu Manuel da venda conversando com o Turco... Julinha, não foi ele que deixou a mulher e os filhos lá fora e veio pra cá fugido? Foi. É o que dizem, né. A resposta parece não ter sido dada por ela, uma vez que estava longe. Vejo direitinho a igreja, o cinema, o armarinho, a venda do Almiro Maçon. Eu e Minda andando pela rua da praça, os garotos chutando uma bola de meia, outros brincando de gude. A Minda olhando para o Joaquim; ela é danada, sabe que papai e os meninos não gostam dele; Mané sempre briga quando se encontram. Outro dia Mané e Bertinho deram uma surra bem dada que ele sumiu um bom tempo dali. E a doida da Minda até já pensou em fugir com o safado; importa-me lá.  Olha, Carola de novo de prosa com Valdemar, mas ela gosta de Veveu. A igreja está toda enfeitada para... Julinha, a casa da Dona Bertina não era ao lado do cinema? Ah! O quê? Glorinha acabara de tirar a Júlia de um transe nostálgico. Todas as vezes que as duas se encontravam, falavam da cidadezinha onde passaram a infância. Vida apertada a delas. No entanto, as lembranças tinham um sabor doce, inocente, divertido. Você se recorda da vez em que o Vicentinho da Amélia zombou daquela velha? Julinha demorou um tanto, fez cara de quem nada entendia, pediu que Glorinha repetisse, mas depois, como se tivesse viajado em segundos, deu detalhes do caso. Papai é que foi lá pedir para deixar o menino morrer. Vicentinho debochou da velha que passava pedindo pão. Bastante curvada e desgastada pelo tempo e pela solidão, rosto cansado; você lembra? Eu vi uma vez ou duas, eu acho. A senhora se virou e balançou a mão direita na direção do menino. Daquela hora em diante, Vicentinho passou a comer igual a um desesperado; nada satisfazia o garoto. Sua mãe se apavorou com mudança tão drástica e repentina. Em duas semanas, a casa tranqüila e abastada tornou-se o quintal do inferno. Além de comer o dia todo, o garoto não dormia direito à noite; gritava desesperadamente. Não eram gritos comuns, humanos, mas de agonia, às vezes, bestiais. Estava possuído não se sabia por que ou por quem.
Acontece que o fato não se arrastou por muito tempo, apenas um mês; tempo suficiente para deixar a família transtornada e endividada. Médicos, padres, rezadeiras, curandeiros, grupos de oração entravam e saíam pela porta que nem mais se fechava. Um dia, porém, Vicentinho calou-se. Não comia nem gritava. Fechou os olhos. Enfim, parecia descansar e dar descanso. Em volta da cama do menino, muitos pranteavam; choros e desespero de pais, tios, vizinhos. De repente, espanto geral, o menino abriu os olhos; contudo, antes de esboçarem algo, já novamente tinha partido. A cena repetiu-se durante horas. O menino ia e vinha; ironicamente, uma brincadeira de morto, vivo... Ninguém sabia o que fazer. Até que papai... Julinha, seu pai fazia o quê mesmo? A interrupção de Glorinha fez Julinha respirar, como se descansasse de uma jornada longa e perturbadora. Ela puxou o ar e bebeu um gole de água. A pausa fez bem; lentamente o rosto foi amaciando. Papai era inspetor. Aliás, ele trabalhava na fábrica, lembra? Lá na Vila ele era inspetor. Tudo que acontecia na Vila, iam lá em casa chamar o papai; qualquer hora. Briga de bêbados, roubo de galinha, filha que queria fugir, conselhos, gente estranha no boteco, fiado que não foi pago, namoro proibido; papai resolvia tudo. Também, ele conhecia todo mundo; viu muitos dali nascer, ir para a guerra, ficar órfão, casar. Enterrou muita gente também, assistiu famílias, arranjou pais para os órfãos. Papai era muito bom. E o garoto morreu ou não? Os sobrinhos que estavam ouvindo a história queriam saber do desfecho.
Pois é, recomeçou Julinha. Era uma choradeira só, e o menino morria e vivia; dois dias assim. Então papai entrou e falou com firmeza: “Gente, deixe o menino morrer em paz, ele quer descansar, precisa de sossego. Vamos fazer uma oração todos juntos”. Aí começaram os Padre-Nossos, as Ave-Marias, as Ladainhas; rezaram a tarde toda. Quando já estava anoitecendo, o menino finalmente descansou. Vicentinho foi velado durante a noite e teve um enterro sóbrio pela manhã.
A velha senhora que pedia pão nunca mais foi vista. Você lembra disso, Glorinha? Claro! Vicentinho só morreu em paz depois que Seu Alfredo chegou, foi lá e rezou. E a Amélia, Julinha? Ninguém nunca mais viu. Que situação, não? Ai, ai! Deixa isso pra lá; né bom nem lembrar. Você vai rezar o terço comigo, Glorinha? Vou; hoje começa a novena de Nossa Senhora da Piedade. Então vamos rezar pra eles, né. Assim seja.


3 comentários:

Lohan Lage Pignone disse...

Belo texto do professor Reinaldo Kelmer, autor super especial que nos prestigia com seus textos literários.

Parabéns, Kelmer. Continue lembrando do Autores!

Abraços,
Lohan.

Anônimo disse...

Amei o texto professor, suas lembranças são lindas! Continue a nos
escrever.
Parabéns mais uma vez.

Vitalina Fernandes

Anônimo disse...

Que belo texto professor!!Nos faz viajar em suas Lembranças.Obrigado por mais uma "gota". Parabéns!!!

Eliane Peixoto.