Neste post teremos, especialmente, um conto do professor Reinaldo Kelmer, que, de vez em vez, nos brinda com seus ótimos contos aqui no Autores S/A. A seguir, o texto do nosso sempre nobre convidado, intitulado "Pista Vazia". Boa leitura a todos.
A vida é, de fato, uma
questão de prisma. Não consigo entender os homens, tampouco me colocar no lugar
deles. Será tão difícil nos compreenderem um pouco? Olham sempre para o próprio
umbigo; seu mundo resume-se aos seus interesses. Já me cansei. Namorei algumas
vezes e não fui rigorosamente seletiva; aliás, deixei sempre meu coração me
guiar, me iludir, me enganar. Fui livre, às vezes, e perdida, na maioria. Sei
que não interessa ao leitor saber detalhes da minha vida, mas acordei com vontade
de falar, de me expor, de abrir o caderno das paixões, para ver se me entendo
mais.
Se não sou propriamente
uma defunta autora, já morri para os sentimentos e, por isso, distante, fico à
vontade para dizer tudo. Não me interessam mais as coisas do coração. Fui tola
muitas vezes quando dava corda às canções, aos poemas, aos filmes românticos.
Via-me nas cenas, nos versos. Caí. Vejam só, meu último relacionamento foi um
soneto mal acabado, com rimas pobres. O sujeitinho era sempre reticente, não
sabia o que desejava da vida, não tinha um objetivo direto, nem mesmo indireto.
No fundo, tudo era indeterminado em nosso relacionamento. Tive dúvida, até
mesmo, do gênero dele. Ainda hoje me pergunto se ele era ou não bitransitivo. Apesar
de um nome grave, Normando era literalmente agudo. Eu hiperbolicamente
apaixonada e ele conciso e ambíguo nos sentimentos. Mas felizmente acabou; pus
um ponto final na relação.
Na adolescência,
conheci um rapaz muito tranquilo e honesto. Participava de um grupo jovem na
igreja do bairro. Conversávamos sobre o mundo, as virtudes da vida, as
tentações; porém, terminávamos em longas ave-marias. Queria conhecer melhor os
prazeres, mas ele me dava sermões de comportamento, e eu escutava longas
ladainhas sobre certo e errado. Desfiz as contas e o deixei. Foi quando conheci
Carlos Fortuna, gerente de um banco, homem bem vestido e altivo.
Impressionei-me de cara. Que postura! Ao contrário de Zé Bento, Carlos sempre
investia, era arrojado, agressivo, sempre em alta. Por mais que tentava ser cautelosa,
acompanhava a movimentação. Um belo dia, resolvi fazer uma surpresa e apanhá-lo
no banco para um namoro no almoço; estava com superávit de saudade. Não o vi e
perguntei a um funcionário pelo gerente Fortuna. Ele me disse que havia saído
para almoçar com uma cliente. Procurei pelos restaurantes vizinhos e o
encontrei numa mesa, juntinho de uma bela cliente, fazendo novos investimentos.
Na hora senti uma desvalorização; tinha ido para o vermelho sem aviso prévio.
Eu que pensava ser nosso relacionamento uma aplicação segura.Fechei a conta.
Pensei não mais amar
ninguém. Nem havia passado da juventude e já não via futuro estruturado,
desenhado e bem planejado. Cogitei até dar chance a Pedro, estudante de
engenharia, jovem promissor e sério que conheci pela internet. Pensei em um
futuro construído em pilares sólidos, estrutura familiar firme. Mas estava
desestabilizada, frágil; nada em minha vida parecia ser concreto, apenas
andaimes inseguros. Hesitei em construir em terreno desconhecido e não tive
coragem de entrar em uma nova empreitada.
Depois de Pedro,
Jorginho também tentou, mas entrei logo de sola e o mandei para escanteio. Não
queria nada com trabalho; sonhava com a seleção, com campeonatos, com títulos.
Não há dúvida de que tinha talento; no entanto, não é fácil ser jogador de
futebol profissional. Ele até conseguiu, mas terminou em um clube de Campinha
Grande, na Paraíba, sem muito sucesso e com pouca grana. Não conseguiu seu pé
de meia, apenas marcas de cirurgias e de pancadas.Quando pendurou a chuteira,
desconhecido e sem alternativa de trabalho, voltou para o Rio. Hoje tem um
botequim lá no bairro onde nos criamos. Ainda bem que não entrei no jogo dele, vi
que era contrato de risco, senão estaria em um boteco cheio de fotos antigas e
recortes de jornal, servindo bebidas e salgadinhos e ouvindo histórias de
futebol.
A vida seguiu e,
finalmente, pensei: agora vai.Comecei a trabalhar em uma montadora de carros e
tive condição de buscar meu sonho: a faculdade de Direito. Os primeiros anos
foram muito bons. Trabalhava com dedicação e me empenhava nos estudos. Os
resultados eram sempre positivos no trabalho e na faculdade. Finalmente havia
me encontrado na vida; uma realização plena. Estava satisfeita. Contudo, as
flechadas do cupido insistem em desestabilizar as pessoas. Por que insistimos
em sentir falta de alguém ao nosso lado? Poderia ser uma amiga, alguém da
família; mas não. É a tal da carência? Da própria existência humana? Foram
feitos um para o outro homem e mulher? O que interessa é que senti a ponta
afiada da flecha me tocar. Pior de tudo, duplamente. Vocês me dirão: não se
serve a dois senhores ao mesmo tempo. No entanto, um completava o outro.
Entenderão o que digo.
Comecei a estagiar no
fórum da cidade. Foi quando Luís ingressou com a ação de amar. Seu olhar era
firme na convicção de pedir. Sabia fazer isso muito bem. Quando, pela primeira
vez, paramos para conversar, ele me convenceu com um argumento muito bem
articulado de que havíamos nascido um para o outro. Não demorou muito para que
me persuadisse a almoçar com ele e, logo depois, no final de semana, estávamos
juntos em um hotel no litoral sul do Rio de Janeiro. Sem contestação,
finalmente me encontrei amparada, num relacionamento justo. Foi assim durante
os primeiros meses. Luís era um homem muito ocupado. Trabalhava muito no fórum
e levava vários processos para casa. Às vezes, viajava, dizia ele, para
resolver outros processos. Uma petição aqui, um contrato ali, uma audiência lá.
Assim as causas iam se resolvendo e se desdobrando. A justiça, por vezes, é
cega. Luís foi me deixando, foi prorrogando nossa ação amorosa. Justamente nas
brechas deixadas pela lei do homem, entram as interpretações. E foi assim. Justino
trabalhava comigo e frequentemente levava para ele as ordens de serviço. Era um
mecânico forte, alegre e franco. Não era muito polido, mas não chegava a ser
grosseiro. Olhava-me com admiração, mas respeitava. Usava uma aliança grossa na
mão esquerda. Um dia, porém, ele me olhou de baixo para cima, de cima para
baixo e me disse: “Dona, a senhora é muito bonita e atraente, mas acho que não
está recebendo o trato que merece”. Assustei-me e afastei-me imediatamente. O
curioso é que não repudiei o comentário, apenas refleti.
Passei alguns dias
pedindo a outra funcionária que levasse as ordens de serviço, pois não queria
contato. Depois de alguns dias, voltei eu mesma para levá-las. Seu Justino, o
senhor é casado? Sou sim, senhora. Tenho dois filhos. Por que o senhor me disse
aquilo naquele dia? Dona, percebo de longe quando uma mulher não é bem amada. E
a senhora merece ser. É só me dar chance. Saí dali mais pensativa ainda e,
confesso, excitada. Conversamos mais duas vezes e, naquela semana, saímos mais
cedo e nos encontramos juntos em um motel de terceira categoria dos arredores.
De fato, a pegada de Justino era firme. Segurava-me e apertava-me tal como eu o
vi fazendo no trabalho. Era para ele uma máquina que precisava de ajuste.
Sentia o sangue correr quente em minhas veias como óleo lubrificando os
motores. Fazia tempo que não fazia uma revisão completa. Valeu o check-up. Saí
refeita e satisfeita pelo serviço daquele mecânico.
Assim, vivi duplamente
durante seis meses. Amava meu doutor, apesar de pouca atenção, mas adorava a
retífica semanal. Conforto e satisfação me completavam. Até que um dia Justino
foi demitido e nunca mais o vi. A monotonia tomou conta de mim e resolvi uma
separação amigável com Luís. Além disso, o estágio terminara , estava formada e
precisava caminhar só. Luís me ajudara bastante com conhecimento e indicações. Foi
um estágio vantajoso. Chegamos a um acordo e encerramos a causa.
Desse modo, errante
fui-me construindo. Casos e descasos, encontros e despedidas, paixões e
agruras; na verdade, mais dissabores do que sabores. Entre tantas, conheci
Cunha, sargento da polícia. Era uma das suas, não a preferida nem a desprezada,
mas uma delas. Quando me queria, me procurava, insistia, ameaçava; depois,
voltava à grosseria, ao descaso. Isso não era privilégio meu, pois todas tinham
o mesmo tratamento. Para conquistar, se controlava e até tentava um
comportamento polido e culto, depois controlava as ações e as manobras eram de
acordo com o interesse e a necessidade. Era uma espécie de tática, espírito
policial. Sentia-me presa não por vontade, mas por um misto de medo e fetiche. Por
fim, senti ter cumprido minha pena e libertei-me.
Às vezes buscava o
oposto para curar-me. Quis alguém delicado, carinhoso, dedicado. Não foi
difícil encontrar, homens estão aí aos montes. Pierre era isso. Demorou semanas
na conquista, e outras tantas para a intimidade. Levava-me ao cinema para
filmes clássicos; depois íamos a restaurantes finos. Nunca me deixou dividir a
despesa. Apreciava bons pratos e boa música. Em sua casa, preparava pratos
delicados e deliciosos, sempre com música ao fundo. Prezava pelo tempero exato.
Cozinhar era invenção e magia; bastava saber combinar as poções. Dizia sempre
que preferia pecar pela falta de sal ao excesso. Mas quem é que não gosta de
algo picante vez ou outra? Senti falta de um tempero mais forte, de uma dose
extra de pimenta, de um molho ao vinho tinto. Deixei-o num jantar perfeito ao
som choroso deNina Simone: “I put a spell on you”.
Agora, vocês já sabem,
fechei-me para organizar minha vida. Desejo paz e tranquilidade, para decidir
meu caminho. Não disse sim nem não ao Lucas; não dei esperança, mas disse-lhe
que as portas do coração estão encostadas. Ele, cardiologista, disse saber abri-las;
possui chaves. Não quero mais batidas descompassadas que só trazem dores de
cabeça. Quero me curar de vez. As paixões me trouxeram efêmeros prazeres e
gastrite constante. Noites alegres e noites de insônia. Enchi-me de remédios
inúteis. Agora me vem um especialista em saúde, para mexer com minha cabeça e
com meu corpo de novo. Ainda é cedo para
qualquer decisão, mas o médico parece manter a mente sadia em seu corpo sadio;
tem espírito saudável. Não consegui ainda examiná-lo a fundo, pois nos encontramos
apenas três vezes, teclamos algumas palavras e nos falamos pouco ao telefone.
Só uma anamnese dirá ou esconderá quem somos. É muito difícil um raio X da
vida.
E por falar nisso, na semana passada, quando viajei para realizar um curso em São
Paulo, conheci Ícaro Soares, um aeroviário muito interessante. Fui bem tratada;
pareceu-me um pouso seguro. Pois é, o
que fazer? Fico esperando a vida decolar de vez, mas ainda sou pista vazia. Na
verdade, não sei se sou a pista que espera ou a nave que procura.No confuso
tráfego aéreo, busco um céu de brigadeiro e uma rota segura. Para onde voar?
Qual meu destino? Com quem? A viagem é incerta; porém, para garantir, já marquei
minha consulta e já fiz meu check-in.
Rio, 08/09/2012.
Reinaldo Kelmer
4 comentários:
Este texto parece uma pedra bruta esculpida pelas mãos de Michelangelo.
Gostoso de ler, de visualizar, de sentir. Sem muito fru fru ou mirabolantes construções linguísticas e intelectualóides, bem do jeito que eu gosto. Arrasou, mestre! Aliás, andas muito sumido, hein? Saudades...um beijão.
Kelmer, belo texto.Cheio de imagens, de intertextualidades, de belo trato com as palavras e, acima de tudo, de extrema perspicácia e sensibilidade.
Continue.
Este é sem dúvidas um dos melhores textos que já li, parabéns Reinaldo. Um abraço.
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