Finalmente o crepúsculo. Esta
hora de sombras indecisas que se despedem da luz. Eu me pergunto para que
tantas manhãs de claridade se é para o ocaso que sempre nos arrastam as tardes.
Já não escuto o pássaro que
canta na janela do meu quarto. Ele se cala com medo de tanta noite. Tudo o que
me resta é o presente, esta hora acinzentada. E eu não gosto do cinza. Nem do presente,
esse gatuno oportunista, desconcertante. Que deixa intactos os cristais, a
prataria, os quadros, o piano de cauda. E carrega os sentidos. E as pessoas. Quer-nos
a todos mortos.
Mas por que estou aqui falando
de mim? Como se fosse minha vontade colher dó e lágrimas. Não! Chega de piedade
fabricada à esmola! É inútil. Além do mais, não há por que prantear o meu
outono se a mim sempre agradaram as folhas amarelas e o vento cometido em rajadas
de posse. Agradam-me as rugas do meu rosto que se esvai em anos. Eu as meço apenas
em lembranças. Há esplendor plantado nestes sulcos, nestas linhas irregulares.
O que não há é tempo para os
detalhes. Vocês aí, nesse teatro semiescuro, mal se concentrando em esperar a minha
ida. Querendo a urgência do defunto vivo. Abutres! Criaturas arrogantes que se acreditam
diferentes de mim! Pois vou lhes contar um segredo: quando chegar a sua hora,
farão exatamente como eu. O mesmo apego ao passado, as mesmas lembranças. O
mesmo corpo ainda sentindo desejo. A mesma espera por uma cama quente, por um
arrepio, por um sexo que alivie qualquer dor. Vocês farão exatamente como eu! Vão se agarrar
a esse olhar para dentro, para trás, de forma a não verem no relógio do tempo
que não há mais tempo.
O que vocês não sabem é como
fazer. Ainda. Mas eu posso lhes mostrar como não se entristecer quando a plateia
se esvazia. E tentarei fazer das suas almas, como fiz com a minha, um lugar de
coxias e cortinas. E lhes direi que o passado é a única certeza que nos deve
mover. Porque nele não há mais a ansiedade da mudança. E lhes direi que fujam
do presente. Porque a realidade é equívoco.
Enfim, quando os panos de
boca subirem pela última vez, eu lhes direi que não se inquietem com o silêncio
dos aplausos que se foram. É hora de colher algazarra na memória. É hora de
solidão. Nosso melhor papel.
3 comentários:
Cinthia, bela página de prosa poética. Vicência.
Obrigada pela leitura, Vicência!
Mais um belo texto, Cinthia. Parabens e Feliz Pascoa.
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