(Por Ana Beatriz Manier)
Tenho algumas
lembranças de infância que me remetem a livros. Uma bem tenra, de dois
personagens raposas de roupa e chapéu. O que faziam? Em que livro moravam? Não
sei. Lembro apenas de sua imagem e de pronunciar seus nomes alto e lentamente,
com o orgulho de quem já lia, apesar da dificuldade de quem ainda traduzia
sílabas.
Aos dez anos, vivi as
aventuras de uma personagem menina que, com olhos curiosos e infantis, extraia
vida até de muros lascados e terrenos baldios. Depois joguei com Polyanna o seu
jogo do contente, uni dedos com Tristão e segui o príncipe que me fazia olhar
para o céu à procura de estrelas que sorrissem.
Livros estiveram
presentes ao longo da minha infância, encurtando horas de dias arrastados e
ampliando os limites das paredes que me protegiam do vento gelado do Sul. Me
foram dados como presentes, lidos em voz alta por minha mãe, até eu ter idade
para me apoderar deles. Não me foram impostos, eram amigos que eu gostava de
ter, companheiros inesquecíveis.
Mais tarde, alguns
viraram fardo nas leituras obrigatórias da escola, que me empurrava clássicos
nacionais com autoridade militar, quando o que me interessava eram o susto e o
medo de Horror de Amityville e os mistérios de Agatha Christie.
A sutileza de Machado e a profundidade de Clarice viriam depois.
Hoje, tantos livros
mais tarde, vivendo de literatura, estudando, traduzindo e escrevendo,
acompanho com curiosidade opiniões sobre o que ela representa para cada um e me
surpreendo com algumas delas, em especial as que a ligam à salvação.
“Li porque ficava muito
sozinho e não tinha o que fazer, a literatura era minha tábua de salvação”,
disse-me um amigo escritor, ao se referir a sua infância.
“Os
livros me deram respostas, me salvaram do desespero”, repetiu minha mãe ao
longo da vida, nos intervalos de suas crises de depressão.
A palavra salvação −
com o perdão de quem a usa para falar de literatura − para mim, que sempre se
distraiu com livros, me parece um tanto pesada demais. Vejo a literatura como
algo a mais na vida, como a possibilidade de nos aventurarmos por novas searas
e de voltarmos às já conhecidas com um olhar diferente. O olhar do outro.
Vejo-a como uma forma preciosa de diversão que nos permite viajar pelo
imaginário e nele encontrar prazer. Mas nunca, jamais, a vi como substituta de
ausências em outros campos de atuação. Algo perigoso, se pensarmos bem.
Meu amigo, tão carente
de pais presentes e de outras crianças, encontrou companhia nos livros, mas não
salvação, continua lutando a luta diária, se superando, ora vencendo ora
perdendo, em constante combate e experimentação. Minha mãe não se salvou; os
livros, sua fonte quase exclusiva de conforto, prometeram ganhos que não se tem
só com eles.
Coloque o peso da
salvação na literatura, recorra a ela transbordando de expectativas à procura
da solução para os seus problemas, e se frustrará a cada recaída. A resposta
não está ali. “Trouxeste a chave, leitor?”.
“A literatura não
salva, mas adia o inevitável. E nos distrai durante o nosso percurso. Eu
procuro fazer algo que gosto enquanto não me esfarelo”, disse André de Leones,
num debate na FLIP de 2012.
“Nenhum romance ou
conto, nem a soma do que li me humanizou ou me induziu a ser uma pessoa
melhor”, posiciona-se André Resende, escritor e editor, acrescentando mais à
frente que os livros, num dado momento, o induziram a uma arrogância que só a
psicanálise resolveu.
Livros fazem parte do
percurso vital do qual nos fala Leones, adiando a indesejada ao nos ocupar e
distrair. Nem sempre são companheiros maravilhosos, como diz Resende, podendo
às vezes nos levar a posturas que merecerão ser reformadas ou desconstruídas.
Mas com certeza, nos ajudam a pensar, exercer a crítica, a procurar
a chave dentro de nós. Livros podem muito.
E por poderem tanto e
fazerem tanto, tenho ainda dentro de mim a criança que mal vê as horas passarem
com a literatura e que adora comentar e debater o que lê. Tenho amigos que
fazem o mesmo e, assim, vamos crescendo, construindo, reformando e acima de
tudo, nos distraindo nessa vida, a meu ver, não passível de salvação.
2 comentários:
Muito bom, Ana. Ora, do que a literatura salvaria? A literatura faz se perder, se emaranhar cada vez mais interrogações, posicionamentos... se perdição é salvação, talvez por isso costuma-se conceder este mérito a ela.
Um olhar leve sobre a literatura.
Excelente texto, Ana Beatriz!
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