Olá amigos! Hoje resolvi postar uma crônica, a qual já escrevi há um tempo já. Foi um trabalho da faculdade. A primeira crônica que escrevi. Boa leitura a todos!
Naquele momento eu fugia de uma realidade em movimento. O corpo desleixado sobre o assento desconfortável do ônibus, os olhos pregados depois de tanto enxergar naquele dia em que sol resolveu extinguir a espécie das sombras.
Até que os abri, a um sobressalto. Uma freada brusca - adiante, uma fileira interminável de carros. Cheguei a resmungar qualquer coisa, ajeitando-me na poltrona.
Olhava através do vidro da janela, mórbido, certo de que não chegaria em casa a tempo de assistir o filme inédito como havia planejado no dia anterior.
Naquele veículo o silêncio reinava; eram homens e mulheres exauridos após mais uma batalha pelo pão daquele dia. Eu nem tanto, nada mais era do que um estudante de Administração.
A cada metro de movimento minha ansiedade aumentava, meu pulso jovial acelerava. Até que algo lá fora estagnou meus frenéticos sentimentos, causando-me um estupor inexplicável.
Todo santo dia via aquela imagem; vivo e a cores, ao vivo e a cores. Porém nunca a enxerguei como agora o fazia. Uma criança, um menino - dez, onze anos, no máximo – sentado sobre papelões, à calçada, coberto por um jornal que para o leitor já não servia. E o frio que a noite trazia o fazia tremer. Suas vestes em farrapos o tornava uma criança seminua e seu lânguido olhar, afinal, transparecia nudez. Nudez da proteção de um colo materno, da amizade de um pai, do acolhimento de uma sociedade que só via cara, e nunca coração.
Dei-me por comovido, assim de súbito. Ora, logo eu que não derramei uma lágrima sequer no velório de meu pai. Talvez porque nunca tivesse sentido de fato o valor da presença de um pai como naquele instante estava sentindo através daquela criança, que certamente o teve ausente durante toda a vida. O ônibus mal movia-se devido ao intenso engarrafamento, e agora eu já não ansiava mais pelo prosseguir.
Ao lado da criança um vira-lata magricela, sentado a observar tudo que ia, vinha e imobilizava-se a sua frente. Seu olhar, assim como o daquela criança, tocava o coração, cirurgicamente. Haveria o que chamamos de alma por de trás do olhar daquele pobre cão?
Por eles passavam muitas pessoas. Transeuntes apressados. Desnorteados. Embriagados pelo suor. E o menino, em vão, às vezes estendia a mão na esperança de receber ao menos o que lhe pagasse um alimento decente, que lhe tapasse o “buraco no estomago”. Mas há tempos não se vê um bom samaritano neste mundo! Um ainda jogou-lhe uma moeda, atingindo-lhe o rosto.
Mastigava cada segundo daquela imagem. Sentia-me como se algo estivesse sendo transformado em mim, uma lacuna sendo preenchida. E o menino retirou do bolso um pão duro, mordendo-o em seguida. Arrancou um pedaço e serviu o cachorro à boca, que o devorou como se fosse uma carne suculenta. O menino comia calmamente, aproveitando ao máximo aquela que, quem sabe, fosse sua primeira e última refeição do dia...
Vivemos em um país bonito por natureza, nossos bosques tem mais vida, e na vida, mais amores? E aquele menino ao lado de seu cão sentado na calçada de uma rua suja?
O outro lado da rua. O outro lado do Rio. Agora me sentia nauseado. Nojo de tudo e de todos. Repulsa daqueles que o tempo inteiro dizem ser o Rio de Janeiro uma cidade maravilhosa... Maravilhosa para quem, afinal?
Veio-me também uma sensação de impotência. Diante daquela cena chocante, como estava reagindo? Chorar e lamentar não adiantava. Resolvi tomar uma providência, meio fora do comum, impetuosamente. Ergui-me da cadeira a um salto, arrumando, meio que desajeitado, as alças da mochila nos ombros tensos. Sai em disparada pelo corredor daquele ônibus sob olhares inertes, equivocados. Uma senhora fulminou-me com o seu, de tal maneira a pensar que estivesse tão furioso e impaciente defronte àquela situação corriqueira nas ruas de qualquer metrópole, a ponto de abandonar a condução antes mesmo de alcançar meu destino. Contudo, naquele momento, pensei que o nosso destino somos nós mesmos quem fazemos. Esperá-lo acontecer, ser alcançado, se tiver de ser, será – tudo balela – o meu ponto era aquele.
Urgi ao motorista para que permitisse minha saída. O negro, barba mal feita, calvo, transpirando litros d’água pelo corpo afora, pediu-me paciência. Antes que pudesse retorqui-lo, arrancou com o ônibus pelo vão que se estendera repentinamente na estrada. Segurei-me numa das hastes metálicas, evitando uma queda iminente. Freou já alguns bons metros adiante, agora estacionado entre um fusca amarelo, anos oitenta, e um caminhão, o qual carregava uma carga proeminente. Clamei novamente, cheguei a inventar que estava passando muito mal. Ele assentiu com um “ta” contrariado e acionou as portas, que se abriram para minha lépida passagem.
Agora seria necessário regressar ao local exato em que o menino agonizava em sua miséria, não esquecendo do cão. Passo a passo, sôfrego, seguia pela calçada; a estrada congestionada, pessoas buzinando descontroladamente. Atravessei a pista, desvencilhando-me daquela aglomeração motorizada – alcancei a calçada em que estava a criança.
O coração dilacerado, os olhos atônitos a procura do menino. Caminhei mais um bocado, “é aqui” - pensei. O menino já não estava ali, muito menos seu fiel companheiro. Apenas um pedaço de papelão. Vasculhei toda a área em busca daquele que me fizera amadurecer em minutos a humanidade que existe em mim há dezenove anos.
Frustrado por perder a condução, o menino, o cachorro, sentei-me à beira da calçada, sequei o suor da testa com o dorso e tentei desvendar o porquê de tudo aquilo. Vai ver aquele menino nunca existiu. Tudo não passou de uma ilusão, no máximo, uma alucinação, um sonho. Ou então eu quem não existia; agora, existo.
Naquele momento eu fugia de uma realidade em movimento. O corpo desleixado sobre o assento desconfortável do ônibus, os olhos pregados depois de tanto enxergar naquele dia em que sol resolveu extinguir a espécie das sombras.
Até que os abri, a um sobressalto. Uma freada brusca - adiante, uma fileira interminável de carros. Cheguei a resmungar qualquer coisa, ajeitando-me na poltrona.
Olhava através do vidro da janela, mórbido, certo de que não chegaria em casa a tempo de assistir o filme inédito como havia planejado no dia anterior.
Naquele veículo o silêncio reinava; eram homens e mulheres exauridos após mais uma batalha pelo pão daquele dia. Eu nem tanto, nada mais era do que um estudante de Administração.
A cada metro de movimento minha ansiedade aumentava, meu pulso jovial acelerava. Até que algo lá fora estagnou meus frenéticos sentimentos, causando-me um estupor inexplicável.
Todo santo dia via aquela imagem; vivo e a cores, ao vivo e a cores. Porém nunca a enxerguei como agora o fazia. Uma criança, um menino - dez, onze anos, no máximo – sentado sobre papelões, à calçada, coberto por um jornal que para o leitor já não servia. E o frio que a noite trazia o fazia tremer. Suas vestes em farrapos o tornava uma criança seminua e seu lânguido olhar, afinal, transparecia nudez. Nudez da proteção de um colo materno, da amizade de um pai, do acolhimento de uma sociedade que só via cara, e nunca coração.
Dei-me por comovido, assim de súbito. Ora, logo eu que não derramei uma lágrima sequer no velório de meu pai. Talvez porque nunca tivesse sentido de fato o valor da presença de um pai como naquele instante estava sentindo através daquela criança, que certamente o teve ausente durante toda a vida. O ônibus mal movia-se devido ao intenso engarrafamento, e agora eu já não ansiava mais pelo prosseguir.
Ao lado da criança um vira-lata magricela, sentado a observar tudo que ia, vinha e imobilizava-se a sua frente. Seu olhar, assim como o daquela criança, tocava o coração, cirurgicamente. Haveria o que chamamos de alma por de trás do olhar daquele pobre cão?
Por eles passavam muitas pessoas. Transeuntes apressados. Desnorteados. Embriagados pelo suor. E o menino, em vão, às vezes estendia a mão na esperança de receber ao menos o que lhe pagasse um alimento decente, que lhe tapasse o “buraco no estomago”. Mas há tempos não se vê um bom samaritano neste mundo! Um ainda jogou-lhe uma moeda, atingindo-lhe o rosto.
Mastigava cada segundo daquela imagem. Sentia-me como se algo estivesse sendo transformado em mim, uma lacuna sendo preenchida. E o menino retirou do bolso um pão duro, mordendo-o em seguida. Arrancou um pedaço e serviu o cachorro à boca, que o devorou como se fosse uma carne suculenta. O menino comia calmamente, aproveitando ao máximo aquela que, quem sabe, fosse sua primeira e última refeição do dia...
Vivemos em um país bonito por natureza, nossos bosques tem mais vida, e na vida, mais amores? E aquele menino ao lado de seu cão sentado na calçada de uma rua suja?
O outro lado da rua. O outro lado do Rio. Agora me sentia nauseado. Nojo de tudo e de todos. Repulsa daqueles que o tempo inteiro dizem ser o Rio de Janeiro uma cidade maravilhosa... Maravilhosa para quem, afinal?
Veio-me também uma sensação de impotência. Diante daquela cena chocante, como estava reagindo? Chorar e lamentar não adiantava. Resolvi tomar uma providência, meio fora do comum, impetuosamente. Ergui-me da cadeira a um salto, arrumando, meio que desajeitado, as alças da mochila nos ombros tensos. Sai em disparada pelo corredor daquele ônibus sob olhares inertes, equivocados. Uma senhora fulminou-me com o seu, de tal maneira a pensar que estivesse tão furioso e impaciente defronte àquela situação corriqueira nas ruas de qualquer metrópole, a ponto de abandonar a condução antes mesmo de alcançar meu destino. Contudo, naquele momento, pensei que o nosso destino somos nós mesmos quem fazemos. Esperá-lo acontecer, ser alcançado, se tiver de ser, será – tudo balela – o meu ponto era aquele.
Urgi ao motorista para que permitisse minha saída. O negro, barba mal feita, calvo, transpirando litros d’água pelo corpo afora, pediu-me paciência. Antes que pudesse retorqui-lo, arrancou com o ônibus pelo vão que se estendera repentinamente na estrada. Segurei-me numa das hastes metálicas, evitando uma queda iminente. Freou já alguns bons metros adiante, agora estacionado entre um fusca amarelo, anos oitenta, e um caminhão, o qual carregava uma carga proeminente. Clamei novamente, cheguei a inventar que estava passando muito mal. Ele assentiu com um “ta” contrariado e acionou as portas, que se abriram para minha lépida passagem.
Agora seria necessário regressar ao local exato em que o menino agonizava em sua miséria, não esquecendo do cão. Passo a passo, sôfrego, seguia pela calçada; a estrada congestionada, pessoas buzinando descontroladamente. Atravessei a pista, desvencilhando-me daquela aglomeração motorizada – alcancei a calçada em que estava a criança.
O coração dilacerado, os olhos atônitos a procura do menino. Caminhei mais um bocado, “é aqui” - pensei. O menino já não estava ali, muito menos seu fiel companheiro. Apenas um pedaço de papelão. Vasculhei toda a área em busca daquele que me fizera amadurecer em minutos a humanidade que existe em mim há dezenove anos.
Frustrado por perder a condução, o menino, o cachorro, sentei-me à beira da calçada, sequei o suor da testa com o dorso e tentei desvendar o porquê de tudo aquilo. Vai ver aquele menino nunca existiu. Tudo não passou de uma ilusão, no máximo, uma alucinação, um sonho. Ou então eu quem não existia; agora, existo.
4 comentários:
Parabéns Lohan!
A sua crônica nada mais que uma realidade existente em nosso país!
Enxergar com os olhos d'alma é tarefa das mais difíceis.Por isso poucos se tornam santos...há mais expectros neste mundo do que gente cujo espírito sente na carne a dor do outro. Adorei este final.Ele sintetizou em uma frase o que acontece com cada pessoa viva neste planeta, pelo menos uma vez na vida - seja por culpa ou consciência.Sua escríta é intensa, realista e jornalística.Great job, my friend.
Parabéns Lohan, excelente texto, retrata a miséria que algumas pessoas passam e a tristeza que isso ocasiona.
Obrigado amigos, este texto, assim como ao narrador, me fez existir de certa forma tbm.
Até a próxima!
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