Insípidas avenidas que me conduzem a lugar qualquer algum. Vejo pastos amarelados com gado magro e muitas cercas me separam do riacho que segue seu curso sem muita velocidade. Mais adiante borracheiros e um ferro velho. Parece que todos eles adoram fincar-se à beira da estrada. Talvez queiram parecer menos tristes, pretos, enferrujados e solitários. Talvez queiram se unir para nutrir o mosquito que ganha asas e espalha desolação nos dias quentes de verão.
Talvez....sem que por isso sejam maus ou tenham segundas intenções.
Se bem que não me interessam. Não tenho carro. Saio pelas rodovias de bicicleta e a sensação de realidade é bem maior e bem melhor do que o poder segundos per capita, que me inspiram os automóveis. Faro de reflexão de pauta, intuição da notícia que possa estar no ar, sem distrações que não sejam o bafo de ar quente que oscila em temperatura, à medida em que pedalo e tensiono os músculos das pernas.
Apenas os postes permanecem iguais: sempre apagados. Chega o momento em que eles somem do meu ângulo visual e deleito-me com a descida cheia de curvas e fotografias digitais: instantes em que o vento ameniza o calor do esforço da subida anterior e que torna o meu veículo em potente nave espacial, onde não preciso mais mover os pés e deixo os braços abertos como o king of the world!
Equilíbrio de pássaro que plaina suas asas abertas sem parar de voar. A paisagem modifica-se a cada segundo. As árvores se misturam num delirante cortinado verde em tons degradée. Fecho os olhos e me imagino pousando em cimas das folhas em galhos altos, como nuvens que abrigam anjos sonolentos que buscam um travesseiro para se entreter e dormir....
A estrada agora é cheia de altos e baixos, declives e atalhos. A maioria destes obstáculos no percurso, me causam simpatia; sugerem a possibilidade de se finalizar em aconchego, o desafio ultrapassado em quilômetros mal sabidos e não contados.
As avenidas, no entanto, continuam insípidas e me fazem lembrar de um compromisso social que nem sei se quero cumprir: o ter que retornar.
Meu espírito não se deixa abater por isso . Vivo o meu real sem ilusões sobre a troca de personagem; a vida é feita de sonhos e de imagens nítidas onde se encontram os postes e os borracheiros de plantão. Por isso, vislumbrar a ribanceira distante me causa a náusea do barro de onde viemos e que um dia, com a minha presença, servirá de adubo para o capim que matará a fome do mesmo gado magro que pasta.
Assim me desloco e me viro do avesso: sou o que quero em cada divagação fugaz em cima do meu transporte binário.
O real é o que crio - o que me rodeia quando não fonte de inspiração, são figurantes sem voz ativa ou causadores de uma morte prematura.
Voo enquanto pedalo e posso ver ao longe os três porquinhos, e zombo dos motoristas que se julgam invencíveis - asquerosos insetos, que podem até voar, mas não podem atingir as mesmas distâncias que eu, com a minha nave movida a pedais.
Se aproxima o instante da volta. Sinto-o não como a obrigação que me cabe, mas sob a forma de cansaço que que me retorce os músculos. Não posso combater por mais tempo o esforço demasiado a que submeti minhas pernas. Superei meus limites até o possível variável. Agora tenho que voltar, descansar e aquecer. Preciso cuidar com carinho, do que me move: a mecânica do corpo e o combustível maleável da alma, pois no fundo, sei que ainda falta muito para morrer.
8 comentários:
Ótimo texto, Andréa. Nos acostumamos tanto com a facilidade dos carros, com a rapidez com que nos conduzem aos nossos destinos, que desaprendemos a observar a beleza que margeia os nossos caminhos diários. Ficamos preguiçosos e não exercitamos o corpo e a mente como se convém. Este texto traz uma dica sobre aproveitar melhor a beleza da natureza, aproveitar mais a capacidade de nosso próprio corpo e principalmente, aproveitar melhor a vida, enquanto há tempo.
Andrea, que belo texto. A cada palavra eu fui descobrindo uma nova estrada, como se vc percorresse, sobre seu veículo binário, um mundo filosófico repleto de curvas e objeções. Afinal, vejo que fo isso que seu texto me transmitiu.
E também me lembrou muito uma reportagem que assisti hj, num programa chamado Estudio i, na Globonews. Uma ciclista brasileira, chamada Daniela Genovesi, venceu a prova mais difícil do ciclismo mundial, a Race Across America. Ela cruzou os Eua, de costa a costa, em 11 dias, 17 horas e oito minutos. Ela pedalou nada mais nada menos do que vinte horas por dia. Uma guerreira sobre sua bicicleta, que desbravou as estradas da vida sem medo. Ela disse uma frase mais ou menos assim: ''o ser humano me surpreendeu. Na metade do percurso minhas pernas já não respondiam direito. Mas a vontade e a garra me tornaram resistente, e consegui.''
''Não posso combater por mais tempo o esforço demasiado a que submeti minhas pernas. Superei meus limites até o possível variável.'' Esse trecho eu dedico a campeã brasileira. Ela superou seus limites.
Andrea, parabéns pelo seu texto que, claro, diz muito mais do que minhas meras palavras disseram, mas que me fizeram, acima de tudo, lembrar desse acontecimento incrível. Bjs!
Obrigada amigos, pelos comentários gentis.E quero dizer ao Lohan, que a arte possui esta magia incontestável de perdurar no tempo, nos possibiltando intertextualizar situações, pessoas, lugares, instrumentos e ferramentas...por incrível que pareça, este texto eu escrevi em 1990, em uma época em que eu nem sonhava direito em ter um carro, sendo a bicicleta, além de um meio de transporte, uma parte do meu estilo de vida. Até hoje eu amo pedalar. Claro, que modifiquei e acrescentei algumas coisas, mas a essência está aí e coincidentemente serviu para que vc fizesse uma ponte com alguém e algo que aconteceu por agora. Muito legal e parabéns à nossa campeã. Gostaria de saber o que ela enxerga pelas estradas.Bjs
Olá Andrea!!!
Sempre espero chegar também o seu dia para ter uma verdadeira aula de como escrever bem(um dia eu aprendo),que linguagem bonita e leve que você nos oferece.
Sou muito feliz de poder aprender com você.
Felicidades!!!
Obrigada pelas palavras, João. Quando aceitei ingressar neste blog, foi pensando em poder compartilhar experiências com todos vcs:autores,leitores, amigos.Pois é desta troca que podemos aprender uns com os outros. Eu me coloco nesta posição todos os dias da minha vida - a posição de aprendiz, e posso dizer que vocês me ensinam o tempo todo tbm. Aprendo a ler, a escrever , a pensar e principalmente, a ouvir.Uma ação muito difícil de ser executada, por isso que muitas coisas são mal interpretadas por muitos. Quando escrevemos, estamos falando no mutismo e o som das nossas vozes são as letras que se unem nas páginas que eram brancas. Quem lê, assume o papel do ouvinte que dispensa a voz e internaliza esta escuta através da visão.
Puxa, um belo texto, guria. Tens mesmo talento! Gostei do teu jeito de descrever, de conduzir a crônica das tuas observações - observações estas despretensiosas e fecundas, como quem sabe extrair dos detalhes do cotidiano um sumo saboroso. Parabéns!
Obrigada, novo visitante. Adoro pessoas diferentes visitando o blog e deixando suas impressões para que possamos enxergar com os olhos de quem lê, aquilo que nós mesmos não conseguimos observar. Seus comentários são importantes para mim. E neste caso, como se trata de um elogio, serve para que eu exija de mim mesma a tarefa de me superar no próximo texto, como um desafio. Volte sempre.
Andréa,
Esta é a terceira vez que leio o teu texto. Achei que só devia comentar quando estivesse inteiramente à vontade, e só agora, na tranquilidade do domingo no meu quarto arejado, consegui penetrar nas águas tão profundas de tuas palavras.
Digo também que fui afetado só agora porque há poucos instantes, lendo "A arte de viver", de Epicteto, estava meditando sobre minha relação com a tecnologia, principalmente da quantidade de tempo que passo na internet (não queira saber o quanto).
É claro que a bicicleta também é uma tecnologia, mas diferente do automóvel, ela proporciona uma relação com o ambiente que o carro não faz por nós.
Para começar, como você brilhantemente frisa no texto, a velocidade é bem reduzida, permitindo um alcance mais prolongado do olhar e uma interação maior...
O "vento amenizante" do pedalar é diferente do ar condicionado (ou ventilador) artificial do dirigir um automóvel. Este pode até ter piloto automático, mas não se compara às descidas quase "espaciais", onde se pode descansar os pés e soltar os braços para o mundo.
Há tempo de elevar-se, percebendo nos detalhes das folhagens como a natureza é sábia e bela. É que toda subida é difícil e exige esforço, mas vale a pena quando se visualiza um horizonte de "aconchego" do final.
Querida Andréa, você tem toda razão quando diz:
"O real é o que crio - o que me rodeia quando não fonte de inspiração, são figurantes sem voz ativa ou causadores de uma morte prematura."
Uma frase que, por si só, já daria uma palestra. É a gente quem cria, mesmo, a realidade.
E num mundo dominado pela informática, pela inovação, pela tecnologia (que são coisas boas) devemos nos questionar quem usa quem nesse processo todo.
Precisamos criar intervalos de tempo para um maior contato com a natureza. Resgatar a nossa capacidade de enxergar longe (por que será que há tantos doentes da vista neste mundo?), de ver horizontes, de se identificar com o outro que está perto, seja um ser humano, um animal ou vegetal.
Precisamos de "bicicletas" que nos façam reconectar à espaçonave Terra. Para sempre que voltarmos à civilização, possemos ajudar a criar uma nova realidade em nosso microespaço, cada um, cada uma se sentindo como verdadeiros tripulantes, e nunca apenas passageiros deste Planeta.
Parabéns e obrigado por me afetar desta forma.
Beijos,
Sidarta
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