Eu estava sentado à soleira de sua porta. Parecia um bêbado imundo e tolo, segurando uma foto dela. A última que restou. Sentia medo de que aquela imagem aos poucos se esvaísse, como toda a “nossa” história. Ela quebrou tudo, não posso entrar em minha casa e rever aqueles objetos estraçalhados.
Fiquei ali sentindo frio, na companhia de uma garrafa de rum já vazia. Segurei aquela fotografia fortemente contra o peito, como se assim pudesse mantê-la junto a mim, mas logo me lembrei do dano que ela me causou e comecei a sentir novamente raiva. Rasguei a foto. Queria que ela me visse rasgar a foto. Queria rasgar o rosto dela. Queria possuí-la, queria amá-la, queria matá-la. Eu tentei lhe dizer, mas justamente isso a fez descontrolar-se. Como pode um ser tão belo ser desprovido de senso de humor? Como pode alguém desmerecer de tal modo o amor de outrem? Eu lhe dediquei meses da minha vida. Ela era a minha escolhida, a minha preferida.
Eu pensei em falar, fazê-la entender a intensidade com que a amava. Tentar lhe explicar que ela era a atriz principal da minha vida, da qual eu mesmo era figurante. Um figurante decadente e bêbado. Minhas palavras não serviriam para nada. Ela me olhava daquele modo esnobe e desdenhador, como se pertencesse a mais alta nobreza. Eu queria encontrar um modo de me encaixar naquelas curvas, de me esparramar sobre aquela pele macia. Mas ela não soube entender a minha necessidade, assim como eu não consigo entender que ela possa se deitar com tantos e me abnegue com tamanha frialdade.
Todos as noites eram assim... Da minha sala eu observava tudo. Sua delgada silhueta, seus cabelos ondulados e o balançar de seus quadris. Eu podia até mesmo sentir seu perfume adocicado. Sei que bebe uma taça de vinho tinto às vinte horas, depois de ter tomado seu banho de quinze minutos. Sei até que não usa cacinha em casa, só quando se apronta para sair. Minha câmera tinha lente objetiva intercambiável, com zoom óptico e 1.2. de abertura. Eu não perdia nada e ajustava o foco a cada movimento interessante. Ficava horas a fio observando aquela sombra curvilínea, era um vício delicioso. Mas quando ela chegava acompanhada, eu desejava que a câmera fosse um rifle M-21, daqueles utilizados por atiradores de elite. Nada podia fazer, só me restava beber para não acreditar no que via e direcionar o foco para uma janela qualquer.
Ela tinha prazer em me trair. Ela apagava a luz para que eu não pudesse testemunhar seu crime e aumentava o volume da música. Eu não conseguia descansar quando de sua janela saía aquela pavorosa melodia francesa. Aquilo era como uma ode à sua vulgaridade e vileza, torturava meus tímpanos. Minha dor era tão profunda quanto à letra daquela música. Meu amor era tão verdadeiro quanto meu pesar. Mas eu tinha de concordar com aquela voz que cantava...
“Les grandes amours sont frêles
Elles vacillent avec le temps
Les grandes amours chancellent
Les grandes amours sont folles
Elles sont folles de leur tourment
Les grandes amours cruelles.”
Eu não pude entender que estranha revolta se apossou daquela mulher, quando ao se refrescar na varanda, ela avistou meu aparato fotográfico. Minha musa desapareceu por alguns minutos e logo depois adentrou minha sala violentamente, quebrando tudo o que encontrou. Minhas câmeras caríssimas, meu estúdio de revelação, meu acervo. Ah, meu acervo... Quanta ingratidão! Haviam centenas de fotografias dela, em diferentes ângulos. Como ela conseguiu destruir tudo tão rapidamente? E para quê? Como alguém invade a casa de uma pessoa com quem jamais conversou e sai quebrando seus pertences? Como um homem feito pode ficar sem reação diante de uma mulher? Como poderei apreciar novamente aquele corpo tão belo, tão perfeito, tão meu...
Sei que vou me refazer. Sei que vou amar novamente. Sei que não será aqui. Mas, por enquanto eu só quero deitar na porta da casa dela e adormecer, ao som da música francesa que insiste em me dizer a verdade:
“Os grandes amores são frágeis
Eles Vacilam com o tempo
Os grandes amores oscilam
Os grandes amores são loucos
São loucos por seu tormento
Os grandes amores são cruéis.”
9 comentários:
"Os grandes amores são cruéis"...
Camila, eu parecia ouvir a melodia desta música todo o tempo, enquanto lia o seu texto. E este trecho não podia ter sido melhor escolhido por vc. Geralmente, o maior e mais puro amor que existe é tortura a quem o concede. De tão imensos, exuberantes dentro do peito, a pessoa que recebe esse amor (digo, deveria receber), não consegue enxergá-lo, acreditá-lo. Soa hipócrita um grande amor nos dias de hoje? Na era do "ficar", do "pegar", e não do conquistar. As pessoas generalizam facilmente, despejando o verdadeiro amor de sua casa, perto do coração.
Seu texto está mto bem construído sob esse ponto de vista, que fala da "desconstrução do amor". Um amor meio que voyeur, meio que obsessivo, mas um amor de verdade. E no fim, ela, como sempre, rasga as fotos, rasga o coração do amante inverterado.
Grande beijo Camila, e parabéns, pelo seu grande texto, o retrato de um amor não declarado e não correspondido, mas de um amor verdadeiro.
O cara é cego ou é voyeur? Que cara de óleo de Peroba, hein? Invadiu o espaço físico e íntimo de sua vítima e ainda reclama que ela invadiu o que não lhe pertencia. Manda ele pra clínica do Dr. Castanho fazer umas análises e montar um grupo artístico dos Malucos beleza na fotografia. Genial, Camila. E ainda esnobando no Français! Poderosa!
Ihhh, ta com saudade da novela, a Andrea kkk Já está até lembrando o Dr. Castanho kkk
Mas o cara se apaixonou pela moça, coitado... Olha, indico um bom filme a todos vcs, que é a cara desse texto da Camila: Retratos de uma obsessão (One hour photo), com o ótimo ator Robin Williams.
Valeu!
Xiii... Eu não vejo novela... Quem é esse tal Dr. Castanho, gente?
Andréa, esses caras são sem-noção... Eles bebem óleo de peroba pra ter a pele mais bonita, kkk! Lohan, acredito que isso não seja amor e sim uma grave patologia. Ela é apenas a bola da vez, a escolhida. Mas é uma sortuda em um aspecto, pois não despertou nele um surto psicótico! Acho que ela vai sentir falta de ser adorada, depois que ele se mudar...
Oi Camila! Valeu pela visita! :-)
E pelo comentário!
Não tô sabendo como colocar o selo no blog... Mas vou pesquisar!
bjocas
Criatividade Brilhante com sempre!!!
Parabéns Camila,fiquei viajando na história.
Felicidades!!!
Camila, já disse mas vou dizer novamente, vale a pena ler o que escreve.
São histórias reais, irreais, que importa? O bom é mergulhar e sentir...
Mais uma vez obrigada pelo presente, amei estar enlaçada com vocês neste trabalho, nesta caminhada. Por onde andar, estarei
acompanhando, com meus passos lentos mas firmes.Beijos
Consegui! Grata! ;-)
Camila e suas imaginações e criações rompendo limites...
Talvez, por isso, Camilíssima.
Beijos!
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