Ele estava em frente a mim e isso eu podia sentir com uma certeza quase real. A pele pálida, os cabelos desalinhados de um modo perfeito, sem pretensão de sê-lo, os olhos enigmáticos e brilhantes como gudes, o perfume deliciosamente incomum, as roupas escuras contrastando com a pele, aquele sorriso singular, que eu conhecia tão bem. Aquele sorriso que ao se abrir, parecia colocar estrelas no céu, não importava como a noite estivesse.
Olhei ao redor e não reconheci o lugar onde estávamos, era bastante reservado, não havia ninguém por perto, parecia um mirante escondido em meio à mata, um platô ou algo assim, afastado da cidade. Mas e a música que eu ouvia, de onde vinha? Não sei. Como também não soube identificar na hora que música era, apesar de bastante familiar. Assim como a música incidental tocando baixo, sem incomodar, tudo mais parecia absurdo, a começar pelo modo como ele me olhava, parecendo esperar que eu dissesse algo revelador e, no entanto, tudo que eu tinha era um leque infinito de perguntas.
- Onde estamos? - essa era a primeira delas, que proferi sem hesitar.
- Este é apenas um lugar onde podemos ficar a sós, sem que ninguém interfira em nossa conversa. Isso não é bom?
- Sim, sem dúvida. Espero por isso já a algum tempo.
Ele sorriu, me desconcentrando de qualquer postura mais rude.
- Qualquer lugar que você conheça poderia atrair certos inconvenientes ao nosso momento, a memória às vezes atrapalha demais...
- Não entendo. - resmunguei, olhando para a cidade ao longe.
- O que você não entende, meu amor? - perguntou num tom de voz apreensivo e ao mesmo tempo consolador, enquanto passava os braços em torno da minha cintura, levando meu corpo pra mais próximo dele.
- Sei que isso é um sonho, sei que você não é real, mas não entendo como isso tudo acontece ou o porquê disso acontecer.
- O que quer dizer com sabe que eu não sou real? Ainda duvida que eu exista? - Perguntou, levemente irritado, apertando um pouco os olhos.
- Me expressei mal, desculpe. Quis dizer que embora você seja absurdamente real e presente em minha vida, sei que você só existe em meus sonhos. Isso é cruel e dói muito, de verdade - disse isso cabisbaixa e contendo uma emoção que insistia em surgir.
- Dói mais em mim, acredite.
- Não vejo como isso pode ser doloroso pra você, sinceramente.
- Seu ceticismo me assusta, sabia? - Ele parecia decepcionado e irritado, afastou-se de mim e virou-se de costas, como quem pensa em algo e não tem certeza se deve falar. Ficou contemplando a cidade em silêncio.
- Não é ceticismo, entenda, não há mais lugar pra isso a essa altura dos acontecimentos. Talvez seja apenas... saudade.
- Quando você acorda, qual é a sua rotina? - perguntou impaciente, me fazendo pensar que tinha mudado de assunto.
- O que? Ah, escovar os dentes, tomar banho, café da manhã, trabalhar. Normal, vida normal.
- Coisas normais... Você acorda todos os dias e faz centenas de coisas sem precisar de mim, você existe perfeitamente, longe de mim. - de repente ele ficou ofegante e aumentando o tom de voz consideravelmente perguntou - E eu, o que sou sem você?
Não consegui responder, estava confusa.
- Tudo o que posso fazer é esperar que você adormeça, essa é a minha vida. Estou com você a maior parte do tempo, mas não tenho permissão para interagir contigo quando está acordada, no máximo através de canções, poesias e coisas sem aparente sentido. Cada despertar seu é como uma navalha rasgando minha carne aos poucos, e isso sim, dói de verdade. Conhece saudade maior do que aquela que sentimos por quem nos faz existir?
Permaneci calada, completamente absorta naquelas palavras tão cheias de amor e raiva. Rompi o silêncio com outra pergunta
- Você é um anjo? Anjo da guarda, que vigia meus passos silenciosamente... ou você é um anjo mal, um demônio que aprisionou meu amor incondicional no plano dos sonhos? - ao contrário do que eu esperava, parece que quebrei o gelo, fazendo-o sorrir novamente.
- Anjo? É um nome a ser considerado... mas infelizmente não posso impedir que você tome decisões, portanto não posso protegê-la completamente. Agora... demônio? De onde tirou isso? - riu, balançando a cabeça em sinal de negação - Por acaso algumas vez estivemos juntos em algum pesadelo?
- Não. Pelo contrário, você aparece sempre para me tranquilizar, por mais insólito e louco que o sonho possa parecer, você traz uma paz que me acompanha mesmo depois de acordada.
- Não sou maligno como um demônio, apesar de mil vezes ter desejado tê-la só pra mim, num gesto egocêntrico e desvairado e muito embora já tenha tentado me materializar, por puro ciúme. Também não sou puro como os anjos míticos, não sou um bom exemplo para figurar historinhas infantis, nós dois já cometemos pecados algumas vezes, não se esqueça desse detalhe - disse num tom irônico e com um sorriso belíssimo de canto de boca.
- Então o que você é, de fato? - perguntei num tom desafiador, mas sutil.
- Ainda não posso te contar... Mas sou o que você quiser que eu seja, contanto que eu seja seu.
Ele sempre desarma minha guarda como quem tira doce de criança, por fim eu já sorria, completamente derretida.
Novamente ele abraçou minha cintura, senti a paz se reestabelecendo. Passei meu dedo indicador de leve sobre o rosto lindo dele, contornando cada detalhe.
- Como é possível que eu nunca o tenha visto materializado diante de mim e que, no entanto, eu possa conhecer seus traços com tamanha precisão... eu poderia entalhar, de olhos fechados, seu rosto numa pedra - disse isso olhando em seus olhos.
A música nos conduziu numa espécie de dança, de corpos, de mentes, de almas. Estávamos em um ritmo muito mais lento do que a melodia exigia. De narizes e lábios encostados de leve, balançamos suavemente, sem tirar os pés do lugar. Nossos corpos colados, minha pele arrepiada, e meu coração, que parecia um tambor dentro do peito. Ele me beijou a testa, engoliu em seco, e num tom de voz muito baixo, disse o que eu não queria acreditar...
- Já está amanhecendo, você precisa ir.
- Não, não pode ser. - olhei para o céu e vi que ainda era noite - não, não está amanhecendo ainda...
- Você sabe que tem que se guiar pelo tempo cronológico, no seu quarto já é quase manhã - disse sorrindo, mas com um olhar triste.
- Tenho medo de voltar, de nunca mais vê-lo, nunca sei quando será a última vez.
- Eu já disse que sou aquilo que você quiser que eu seja. Enquanto você me buscar, eu estarei aqui.
- Então eu desejo que você seja real, é só isso que eu desejo... por favor, seja real - disse, já desesperada.
Antes que ele pudesse responder, acordei com o rádio-relógio tocando uma música e piscando 6:00 em algarismos vermelhos. Constatei que estava sozinha novamente, que o sonho tinha acabado e que a única resposta que eu teria, seria a canção que ecoava em meu quarto e que, finalmente eu conseguia reconhecer...
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5 comentários:
Os sonhos de amor são o que há de melhor, não é? Parece até que você leu um pouco os meus pensamentos escrevendo sobre este tema, pois a noite que passou eu abracei e beijei muito uma pessoa em meu sonho... impossível na realidade, mas real naquele instante.
Camilíssima!!!!! Que delícia a essa hora da noite ler algo tão legal acompanhado de uma música perfeita!!! Sinceramente,não queria que esse conto acabasse. Incrível essa capacidade de expressar nas letras algo tão simples e importante que às vezes é tão maravilhoso que não queremos que acabe nunca, e sim...prolongar; e ficamos bem o dia inteiro.
Bjssss...
eu não estava errado sobre o texto... é um dos seus melhores! beijos
Camila,
As vezes me faltam palavras para definir o que sinto quando leio seus textos,só sei dizer com certeza é que seu talento é fascinante,sua criatividade e poder de argumentação me impressionam.
Um dia vou ver seus textos publicados nas melhores livrarias do Mundo e na noite de autógrafos eu quero estar na fila.
Parabéns!!!
Sou seu fã!!!
Emocionante... Essa música, no final, chegou a me marejar os olhos. Tudo tão pleno, suavamente pleno... Sublime, esta é a palavra.
Eu ainda acho que os sonhos são vidas que vivemos em outras dimensões; tudo o que desejamos neste plano é ''humanamente'' impossível de ser concretizado. Temos pouco tempo para tanto sonho. Mas, para que este enorme problema-enigma da vida seja resolvido, é que existem as outras dimensões. Vivemos nelas, e sabemos disso. Temos esta consciência. Só que nosso instinto animal, o do toque, do beijo, do sexo, da dança... O real, enfim... Nosso instinto não permite que nos conformemos com esta vida noutra dimensão.
Quem sabe um dia não a vivamos, e sonhamos com esta que hoje vivemos?
Bjs emocionados, Camila.
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