quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os últimos passos


É pouco o tempo e são poucas as coisas que me restam. Tenho uma dessas doenças incuráveis que matam sem muito alarde. Não há cura, nem tratamento. Também não haveria dor. Viria de repente, como uma bala perdida, um apagão. Essa sentença de morte daria um bom enredo para um filme, se minha vida tivesse algum significado, alguma graça.
O médico, na minha frente, parece constrangido tentando expressar alguma compaixão. Consigo apenas perceber sua impaciência para eu deixar a sala.                                                                        
- Tá bom. Fazer o quê, né? – Eu digo, por não ter mais nada o que dizer, nem o que fazer. Sempre me considerei uma pessoa prática.
Levanto-me, cumprimento-o e saio da sala. Quando a porta do consultório se fecha atrás de mim, percebo que tenho uma liberdade infinita: se eu iria morrer, poderia fazer o que quisesse. Poderia realizar todos os meus últimos desejos. Só então percebo que não tinha nenhum. Meu único desejo era almoçar, já passava de meio dia e eu estava com fome.
            Saí do consultório e fui ao mercado. Ainda ia ter que preparar o almoço.  Resolvi comprar camarões, camarões graúdos. Uma mulher ao meu lado assusta-se com o preço e exclama.
- Os camarões estão pela hora da morte!
“Então são perfeitos para a ocasião.” - penso comigo mesmo e sorrio discretamente da minha piada de humor negro.
            Morava num pequeno apartamento, herança dos meus pais. Não tinha irmãos. Só primos, muitos, espalhados pelo Brasil, alguns até no exterior. Depois que meus pais morreram, praticamente perdi o contato com todos.
Muito tempo depois do almoço, o cheiro de camarão ainda insistia em permanecer por toda a casa. Lembrei-me de minha mãe, ela adorava camarão. Mas só fazia nas ocasiões especiais, que eram tão poucas. Minha mãe era uma mulher de poucas palavras, séria, diligente. Meu pai morrera cedo, lembrava-me pouco dele, quase nada. De repente, me dei conta que eram poucas as minhas lembranças marcantes.
            Resolvi procurar uma caixa com fotografias. Lembro-me de ter visto minha mãe lidando com ela um pouco antes de morrer. Encontrei-as no fundo de um armário, dentro de uma caixa, amarradas com uma fita. Um lugar quase secreto, escondido. As fotos não eram muitas. Algumas pessoas eu não conseguia reconhecer mais. Minha memória era péssima e as fotos antigas. Outras me fizeram lembrar de um tempo em que acho fui feliz. Embora não pudesse perceber com nitidez, as fotos estavam muito desbotadas.
Numa das tais fotografias eu tinha 14, 15 anos. Estava de terno e sorria de braços dados com uma prima linda, minha primeira paixão. Era sua festa de debutante. Como era mesmo o nome dela? Bruna, isso, tão linda. Tanto tempo. Quanto tempo? 20, 25 anos. Teria se casado? Aquela festa fora incrível, pelo menos para mim. Eu que sempre fui tão tímido, e preferia ficar pelos cantos do salão, dancei. Dancei como um profissional. Todos me admiraram. Recordo dos tapinhas nas costas, dos elogios. Nunca mais eu dancei assim. Nunca mais eu dancei. Nunca mais eu bebi como eu bebera aquela noite. Meu primeiro pilequinho. Acho que foi a primeira vez que ingeri bebida alcoólica. Nunca fui de beber. Sentira-me poderoso, leve. Agora, com os olhos fechados, a memória me faz recordar aquele baile com cores muito mais nítidas do que as daquelas fotos. As fotografias não conseguiam ser fiéis à minha emoção. Vejo-me rodopiando na valsa, depois dançando Rock. Rock! Logo eu que morria de vergonha de tudo. As pessoas aplaudindo. Acho que aquela era a memória mais feliz da minha vida.
Resolvo que preciso rever esses parentes distantes, antes que tudo se apague. Quero reviver. Viver o que resta. Vasculho a velha agenda da minha mãe. Faço algumas tímidas e nervosas ligações para alguns parentes distantes e para outros tantos conhecidos. Descubro algumas vagas e reticentes informações. Fico sabendo que ainda vivem na mesma pequena cidade serrana do interior do Estado.
            A cidade era pequena, não mais que 5 mil habitantes, não seria difícil localizá-los.
            Um dos meus poucos bens era o meu carro, um velho e fiel Corcel, muito bem conservado. Gostava dele como quem gosta de uma pessoa. Aliás, ele era a única pessoa de quem eu gostava.
            A cidade ficava a umas três horas de viagem. Não foi difícil, na primeira volta ao redor da pracinha, reconheci a casa do meu tio. Estava um pouco diferente, parecia maior, havia mais um andar. Nervoso, toquei a campainha. Meu coração saltava. Logo uma mulher baixa, atarracada, pele morena e enrugada pelo sol veio abrir a porta.
- Sim? – Perguntou com sotaque nordestino
Minha boca estava seca, não conseguia me lembrar o nome do meu tio, nem da minha tia. Fiquei alguns segundos encarando a mulher na minha frente sem saber o que dizer.
- Sim? – Perguntou de novo, dessa vez, com jeito desconfiado.
Lembrei-me de repente do nome do meu tio.
- Ah, por favor, eu poderia falar com seu Manoel.
- Manoel Vargas?
- Isso!
- Mora mais aqui não.
- Se mudou?
- Não, morreu.
Mais uma vez fico sem saber o que dizer. Resolvo ir direto ao assunto pelo qual estava ali.
- A Bianca ainda mora na cidade.
- Mora aqui não, mora aí em riba.
- Ela está?
- Sei não, eu trabalho para D. Emília, que mora cá embaixo.
Isso, Emília, esse era o nome da minha tia.
- Possa falar com ela?
- Com ela quem?
- Com a D. Emília.
- O senhor é quem?
- Sou o Nélson, sobrinho dela.
- Peraí, um minutinho.
Ela me deixa esperando na porta e ainda a ouço resmungar. “Que sobrinho é esse que nem sabe que o tio morreu.”
Uma senhora gordinha, cabeça branca, óculos de lentes grossas surge na porta arrastando os chinelos. Ela me examina de cima a baixo, parece não me reconhecer.
- Você é o Nélson de onde?
- Do Rio de Janeiro, filho da Guilhermina e do Pedro.
A mulher abre um sorriso e seu rosto se ilumina.
- Ah, claro, mas você não mudou nada. Continua magrinho! Entra, entra.
A casa tem a mesma decoração da última vez que estivera ali. O mesmo papagaio no poleiro rodopia de um lado para o outro, à minha passagem. Parece me reconhecer depois de tanto tempo. A mobília de madeira escura e maciça com os paninhos brancos rendados, os sofás floridos, até o cheiro do lustrador de móveis era o mesmo. Emociono-me com tudo, com cada detalhe. Nem sabia que coisas tão pequenas podiam emocionar tanto. Nem sabia que eu podia me emocionar tanto.
            Eu e a senhora de cabelos brancos conversamos longamente. Ela me faz muitas perguntas que eu não sabia responder direito. Ela me falou de muitas pessoas das quais não me lembrava mais. Finalmente, com o coração na mão, tenho coragem de perguntar sobre a Bruna.
- Ela mora bem aqui em cima. Oh, Bruna! Oh, Bruna! – Grita minha tia com sua voz rouca de velha.
A seguir aos gritos da minha tia ouço passos na escada e o som do meu coração aos pulos.
De repente, na sala surge Bruna. A mesma Bruna de 20, 25 anos atrás. A mesma menina pela qual me apaixonei. Como era possível? Pensei que seria ali a hora do meu apagão, da minha bala perdida.
- Essa é a Samantha, minha neta, filha da Bruna, não parece com a mãe quando era nova?
- Muito, elas são praticamente a mesma pessoa.
- Oi, tio. – Cumprimenta a menina.
Eu ainda não havia reparado: Junto à Samantha havia uma mulher gorda, cabelos tingidos de loiro, com as raízes brancas expostas. Roupas apertadas. Um jeito vulgar. Olheiras cansadas, papadas sob o queixo. Sorridente, foi logo me cumprimentando.
- Nélson? Eu nem acredito, que milagre é esse, rapaz?
Só pela voz, eu reconheci que aquela mulher era minha Bruna. Não restava quase nada da menina debutante das tais fotografias.
- Passava por aqui, a trabalho, resolvi parar...
Não sabia muito que falar, detestava mentir. Mas não poderia dizer: resolvi passar aqui antes de morrer. A sorte que a minha prima continuava a mesma tagarela de sempre.
 - Acho que você não vem aqui desde os meus 15 anos!
A menina olhou para Bruna como se não acreditasse que um dia a mãe pudesse ter tido 15 anos.
- Aquela foi uma festa inesquecível. Você lembra? – A mulher de cabelos tingidos ri com gosto. Eu me sinto contagiado por toda aquela alegria. Naquele momento, a minha morte iminente não importava mais.
- Claro que eu lembro! Como poderia esquecer? – Todo aquele excesso de peso, a ação do tempo, nada importava mais. Eu agora a via como a menina dos meus sonhos.
- Você se lembra de como você dançou? – Bruna agora ria às gargalhadas.
- Claro que eu lembro, é só do que eu me lembro!
- Até eu lembro, você foi a sensação da festa! – Dona Emília parecia contagiada por toda aquela animação.
A empregada, que acabava de entrar com uma bandeja de quitutes, também parecia conhecer minha fama.
- Ah, então foi esse que eu vi na fita dançando? Ixê, Maria. Por isso que eu achei que conhecia esse homem.
- A fita! Vou lá em casa pegar a fita.
Logo Bruna voltou com a fita. Uma pequena platéia se formou em frente à TV. Eu mal podia esperar para rever o show que me havia feito o destaque da festa. Com o controle remoto em punho, Bruna avançou para parte em que eu dançava. E o que eu vi foi um adolescente desengonçado, completamente tonto, caindo por cima da aniversariante e tropeçando, e novamente caindo, várias vezes, até ser arrancado de perto dela. A seguir, estou de joelho, segurando a barra do vestido e implorando para dançar. A aniversariante desaparece. A valsa é seguida por um rock. De repente, me vejo sozinho no centro de uma roda, formada por quase todos os convidados. Eu danço o novo ritmo como se meu corpo não tivesse ossos. Sou empurrado de um lado para o outro, por todos, como um joão-bobo. Rebolo como um maníaco enfurecido, incentivado por muitas palmas. Um close mostra minhas feições desfiguradas pela bebida, uma boca semi-aberta babando, um sorriso demente, um olhar perdido. Não havia nada mais patético. Sou salvo por minha mãe que entra e me afasta para longe do alcance da câmera.
- Não é hilário? – Minha prima ria sem poder conter as lágrimas.
- Ai, tio, o senhor arrasou. – Samantha diverte-se.
- A gente de vez em quando coloca essa fita, só para rir. – Disse Bruna tirando a fita do vídeo cassete.
- Rir de mim, no caso. - E o médico disse que não haveria dor na minha morte.
- Ah, mas foi hilário, Nélson. Eu já paguei micos piores. Você nem imagina.
- Eu que o diga, uma vez eu fui tirar essa garota...
- Mãe, não conta, olha a Samantha aí!
- Ah, conta, vó!
Eles tinham tantas lembranças alegres. Eu não tinha mais nenhuma. Não me restava mais nada. E talvez não houvesse tempo para tentar encontrar alguma outra recordação feliz, talvez eu não quisesse. Mas será que ainda havia outras no meio daquelas fotos escassas, perdidas na minha memória desbotada?   Levantei-me bruscamente.
- Tenho que ir.
- Ah, fica para jantar. - Pediu minha tia.
- Não posso, tenho pouco tempo. – Talvez minha única verdade daquela noite.
- Olha, mês que vem é o aniversário de 15 anos da Samantha, venha, hein, você está intimado. – E me entregou o convite de debutante de filha. - E não se esqueça, hein, são dois para cá, dois pra lá!
Ao fechar a porta, ainda pude ouvir o som abafado das gargalhadas das mulheres na sala.
Saí, sem destino. Guiava pelas estradas tortuosas em grande velocidade. Pensei em antecipar tudo. Tão pouco tempo, que diferença faria? Mas também pensei no meu fiel Corcel, ele não merecia. Nunca havia me deixado na mão. O único. Porém, era tarde demais, numa curva mais fechada, o meu velho amigo precipitou-se num abismo. Era como se adivinhasse minha dor. No porta-luvas do carro, a última coisa que vi foi o convite de 15 anos e pensei: “Será que teria dado tempo de eu aprender a dançar?...”
Autor: Marco Tozzato

2 comentários:

Andréa Amaral disse...

Ando meio sem inspiração para comentar, mas quero dizer que este texto ficou incrivelmente confesssional, criativo, lúdico, desesperançoso e fatal. O final me fez relembrar a última cena de "Thelma e Louise". Parabéns.

Lohan Lage Pignone disse...

Confessional, também achei, Andrea. E de um ar saudosista muito bem delineado.

Valeu, Marco!