quinta-feira, 28 de abril de 2011

A virgem de Boa Viagem



     Maria Virginia das Dores. Assim foi nomeada. Ironicamente nascera sob a influência do dia das bruxas, em 31 de outubro de 1910, embora seus pais ou ela própria sequer soubessem que esta data fosse celebrada como tal. Coincidência ou não, uma cigana de passagem pelos arredores neste mesmo dia, em 1932, lhe sugeriu que para que não sofresse as dores de sua virgindade guardada a sete chaves, tentasse trocar em cartório a data do seu nascimento. Trazia azar ao seu destino. Quem sabe invertendo os números, a sorte lhe sorrisse de volta? Afinal, as bruxas gostavam do 13...


     Das Dores não queria saber dessas crendices. Fazendo o sinal da cruz por três vezes, decidiu se confessar ao padre e pagar penitência por ter dado ouvidos à uma feiticeira descalça e cheia de ouro nos dentes que lhe pregou aquela peça por ter sucumbido a curiosidade de saber se iria demorar para casar.
     Desde pequenina sua vida poderia ser resumida em não mais do que poucas linhas. Nascera e fora criada em um pequeno casebre em Boa Viagem. Única filha mulher entre quatro homens, viveu cercada por imposições, pingos nos is, cabresto curto, quase uma coleira colada na orelha. Saía aos domingos com os pais e os irmãos para assistir a missa. Além desse dia esperado, ia até o povoado à pé comprar uma coisa ou outra que fosse indispensável para algum prato que a mãe estivesse preparando caso um de seus irmãos não pudesse ir no seu lugar. Aprendeu a ler e a escrever  para  cantar o hinário e nas suas mãos puras apenas um exemplar da Bíblia Sagrada para folhear.  Seus dias eram iguais, monótonos. Não suportava aquela vida na roça, o cheiro de café coado, aquela umidade interminável que lhe causava uma coceira sem fim dentro dos ouvidos, espirros infinitos e ardência nos olhos.


     A mãe lhe dizia que aquele era seu destino. Cozinhar para os pais e os irmãos até o dia que eles se casassem, e aí sim, deixassem que ela arrumasse um marido para construir sua própria família. Fora isso, tinha que se conformar em cuidar dos seus. Mulheres não tinham voz, nem vez.
     De quando em quando conversava um pouco com outras moças na saída da igreja. Conversas breves, sempre espreitadas pelos olhares castradores dos irmãos; cães de guarda que observavam se ela olhava para além das faces femininas. Os rapazes de sua idade não ousavam pedir sua mão em namoro. Era sabido no vilarejo que seu nome fora escolhido a dedo para que fosse freira um dia. Mas, o destino quis que seus pais mudassem de ideia quando souberam por alguns forasteiros e vendedores que pernoitavam em Boa Viagem, que algumas freiras foram excomungadas e linchadas na capital por terem aparecido grávidas e por terem encontrado covas clandestinas no terreno ao lado do convento. Sabia disso ouvindo por detrás da porta a conversa escandalizada entre sussurros. Naquele dia, sua única esperança de sair daquele lugar e conhecer algo diferente se esvaneceu entre o cheiro de café fresco, que passou a detestar.



     Aos vinte e dois anos, Maria começou a sentir umas quenturas estranhas no corpo logo depois dos dias em que se findava o sangramento. As pontas dos seios queimavam feito fel e até mesmo o tecido da camisola lhe causava arrepios que se misturavam com um calor intenso que se espalhava por entre o meio das coxas. Um dia, assistiu um dos seus irmãos beijando sua esposa e acariciando-lhe a coxa por debaixo da saia. Seu coração disparou, a saliva aumentou em sua boca e sentiu a respiração ofegante. Até o cruzamento entre cachorros lhe causava aquela sensação. Será que aquilo era doença? O que a cigana quis dizer sobre as dores de sua virgindade? Aliás, o que era ser mulher? A negrinha assanhada que trabalhava no casarão do coronel Aguiar, um dia lhe disse que ser mulher era gostoso por demais da conta, mas que ela precisava arrumar um homem para entender. Queria saber mais, perguntar para ela como é que era, mas de imediato se arrependeu dos seus pensamentos e resolveu se confessar com o padre sobre esses pensamentos, sobre a cigana. Pediu permissão à mãe para ir até a pequena igreja no pé da montanha perto do cemitério, no centro da vila que ficava a uns cinco quilômetros de sua casa. A mãe resolveu consentir. Era cedo, os irmãos e o pai estavam no meio de mais um dia de trabalho e além disso, ir à igreja era bom. Não havia nada demais.




    Das Dores continuava pensando no seu encontro com a cigana uma semana atrás e um aperto estranho no seu coração fez com que quisesse se apressar para chegar ao seu destino. O dia amanhecera bonito, de um azul anil, mas aquela hora o tempo se amuou e começou a nublar. Não demoraria para começar a chover.
    A moça chegou até a porta da igreja que de tão pequena, mais parecia uma capela. A porta da frente parecia estar trancada, então ela decidiu ir para os fundos, que daria para uma pequena cozinha. O padre devia estar tomando café com leite naquele horário. Não passava das treze horas.


    Chamou o padre em voz alta, bateu palmas e nada. Esperou um pouco, mas sem obter resultados. Decidiu então seguir a direção de uma brisa fria que lhe assoprou no rosto uma vontade de caminhar entre as sepulturas do cemitério que ficava a alguns metros além do quintal da igreja.



      Após ultrapassar a cerca branca e passar por algumas lápides cinzentas, Das Dores começou a seguir uma trilha que a conduziria até uma capela com pouco mais de dois metros de altura, erguida para que fiéis e parentes das almas que ali repousavam pudessem fazer seus pedidos e orações. Talvez o padre estivesse lá. A portinhola estava aberta e  a medida que se aproximava, gemidos baixos se tornavam maiores e persistentes; gemidos estranhos que não se pareciam com gemidos de dor, mas com algo que ela não sabia ao certo identificar. Resolveu entrar e qual não foi a sua surpresa ao se deparar com o padre sem batina, apenas de camiseta branca, rebolando seus quadris dentro da negrinha sentada de pernas abertas em cima da mesa de cimento, onde vários caixões repousavam antes de serem depositados em definitivo em suas covas. Como que por impulso ela soltou um gritinho estridente de espanto e curiosidade, o que fez com que os gemidos fossem interrompidos e ambos a olhassem com um misto de medo, espanto e confusão.


     Antes que pudesse se recompor e tirar a mão dos lábios, o padre em dois passos a segurou pelo pulso que prendeu com a força de um leão. Começou a puxar o braço e pediu que ele a soltasse. O padre sabia que ela não poderia sair dali após o que havia presenciado. Tinha que pensar rápido, agir rápido. Puxou o corpo dela com violência, de costas para o seu, enquanto lhe tapava a boca com uma das mãos para que não gritasse. Decidiu que a solução seria sufocá-la. Depois pensaria no que fazer.
    Após sentir o corpo mole da moça escorregando entre seus braços, ordenou que a negrinha o ajudasse a levá-la até uma carroça que se encontrava à disposição do padre naquele dia. Era suposto que ele viajasse até a cidade e o coronel sempre deixava que o padre fizesse uso de uma das três que possuía. O coronel devia-lhe favores por fazer vistas grossas a suas falcatruas, seus assassinatos, sua exploração. Em compensação, o vigário tinha acesso a certas mordomias, incluindo os cuidados da negrinha que satisfazia suas necessidades de homem pecador. E se ela abrisse a boca...ah, se arrependeria amargamente.


    Enquanto conduzia a carroça pela estrada deserta, o padre tentava ordenar seus pensamentos nervosos. Decidiu que o melhor seria deixar o corpo na beira de um riacho que ficava no meio do caminho entre a casa da moça e a igreja. Pensariam que a moça havia se afogado. Rapidamente chegaram ao atalho estreito que conduzia ao rio. Pegou o corpo desmaiado em seus braços, enquanto a negrinha vigiava a estrada deserta. O padre colocou o corpo no chão, retirou o calçado e a batina e arrastou o corpo para dentro da água até chegar na metade dos joelhos. Enquanto afogava Das Dores, pedia misericórdia à Deus pelo mandamento quebrado, mas não podia vacilar. A moça se debateu muito antes de morrer, e na sua mente, veio a lembrança da cigana... do aviso... de sua virgindade e de um homem que ela jamais viu.



    E assim começou a circular na região que Maria Virgínia era santa. Morreu virgem, predestinação causada pelo nome, pureza intocada e batizada nas águas da morte precoce. E assim estava escrito na lápide que Naldo lia e relia muitas décadas mais tarde, até o dia em que resolvera resgatar o corpo daquele túmulo, para que sua Maria tivesse o tratamento que jamais alguém pôde lhe dar.

5 comentários:

Lohan disse...

''...para que sua Maria tivesse o tratamento que jamais alguém pôde lhe dar.''

Como assim?? rs.
Necrofilia? Nossa, isso está ficando cada vez mais interessante, profundo... Como no primeiro conto, você emprega um teor bastante sinistro nas entrelinhas, algo que condiz mesmo com a história.

Andrea, adorei a causa mortis da Virginia, que soco bem dado no estômago dos puritanos! E isso ocorria mais comumente do que se imagina... (e ocorre).

Por favor, continue esse enredo! O que Naldo necrófilo fará com Virgínia, a virgem?

Bjs!

Andréa Amaral disse...

O meu "eu lírico" não gosta da normalidade dos seres, Lohan. Por isso, se eu continuar esta saga do Nilton, muitas surpresas, esquisitices e afins estarão por vir. Um beijo.

Ana Beatriz Manier disse...

Hahaha, o Nilton sabe que está sendo "muso" inspirador?

Andréa Amaral disse...

Ato falho, amiga. Na verdade, quis dizer Naldo. Sorry. Bem parecido, não acha?

Lohan Lage Pignone disse...

rsrs, o Nilton ia gostar, Ana.