(Por Sidarta Cavalcante*)
— Você não acha
que já falou demais do coração?
— Não sei. É
possível. Por quê?
— Porque já está
ficando saturado, não acha?
— Não creio. Corações,
enquanto batem, não se saciam.
— Isso não é
verdade. Não pode ser verdade.
— Por que não?
— Ora, não posso
acreditar que não existam pessoas realizadas nesta vida.
— Acho que
existem pessoas se realizando, mas realizadas mesmo, só com a morte.
— Como assim?
— Explico. É o
seguinte: corações não batem à toa.
— ...
— ...
— Só isso?
— Sim.
— Essa é sua
explicação?
— É.
— Nunca ouvi uma
bobagem tão grande na minha vida.
— De fato. Todo
coração aparenta mesmo ser bobo.
— Você não tem
jeito mesmo, né? Devia ser mais racional.
— E sou. Preciso
organizar esse turbilhão de vozes que vêm do coração para escrever.
— Não sei.
Desconfio de sua racionalidade.
— Sem problema.
Eu também não confio nela.
— E no que você
confia, então? No coração?
— Difícil dizer.
Eu confio em alguma coisa.
— Ué... Você não
confia no seu coração?
— O coração tem
a função de apontar uma direção, um norte. Ele é fruto do desejo, das vontades
da alma. Mas ele não sabe para onde vai o caminho indicado. O coração aponta a
direção, mas não conhece o objetivo.
— E isso
significa o quê?
— Significa que,
muitas vezes, você pode se apegar a uma coisa que o coração lhe apontou, mas na
verdade aquilo pode ser somente um ponto de referência. Para indicar um
caminho, um coração pode dizer: “Tá vendo aquela pessoa? Vai por ali.”
— Então a pessoa
só serviu como ponto de referência para que você buscasse aquele determinado
caminho?
— Aí é que está.
O que estou querendo dizer é que, enquanto o ego acredita que o coração está
apontando para aquela determinada pessoa, na verdade ele está apontando um
caminho que só pode ser visualizado através daquela determinada pessoa. O ego
se confunde e se apega.
— Mas e se
aquela determinada pessoa for parte do caminho?
— O caminho é
sempre individual, por mais duro que possa parecer. É claro que você pode criar
um laço amoroso com aquela determinada pessoa, e esta relação ser bastante
frutífera e “que seja eterna enquanto dure”. Mas estou tratando aqui de
destino. E destino não tem nada a ver com casamento ou alma gêmea.
— E o que é o
destino, Mr. Heart?
— Destino é realizar
o que se tem dentro, é ser quem se é de verdade, é transformar tudo o que é
potência humana em realidade.
— E como saber se
cumpri o meu destino?
— Você saberá
quando estiver prestes a morrer, ou quem sabe depois da morte, se acredita na
continuidade da vida. Destino é simplesmente um fim, a chegada num determinado
objetivo. Se você faz uma viagem, você sabe se chegou a seu destino quando se
reconhece naquele lugar. Esta é uma boa metáfora: a vida como uma viagem. Você
teve um ponto de partida, que foi como, onde, quando e através de quem você
nasceu. Sobre isso você sabe. Já sobre seu destino, o único dado que dispõe é
que um dia você vai morrer. Nada mais. Se você olhar para toda a sua vida como
a narrativa de um romance, verá que o encadeamento dos fatos, do passado até
hoje, parece seguir uma lógica especial, como se tudo estivesse conectado com
um propósito. Como eu disse, o coração aponta a direção, mas não conhece o
objetivo.
— Mas a alma
sabe...
— Desconfio que
a alma saiba. Por isso tento ficar atento quando ela fala, não só através do
coração, mas nos grandes acontecimentos da vida.
—
E quais são os grandes acontecimentos da vida?
— São aqueles que
não são possíveis descrever com facilidade, por serem únicos, singulares. São
aqueles carregados de significado, de afeto, de beleza, e nos dão sustentação,
ou então nos retiram o chão. São acontecimentos que geralmente alteram a
configuração do sentido existencial. Eles são tão carregados de energia que têm
poderes transformadores sobre nós.
— E como a alma
“sabe” desses acontecimentos externos?
— Talvez não
seja bem um “saber”, mas um responder junto quando acontece. É como se o que
está acontecendo dentro está, também, ocorrendo simbolicamente fora. Dois ou
mais eventos ligados de forma significativa e não causal. Isso é
sincronicidade. Mas nem todo grande acontecimento é sincrônico. Quer dizer,
sempre é, mas nem sempre é percebido como sendo.
— Agora você
complicou as coisas.
— E quem disse
que a vida humana é simples? O homem é o bicho mais complexo da criação.
— O mais
complexo e mais infeliz da cadeia evolucionista.
— E talvez por
isso, também o mais fascinante.
2 comentários:
Um diálogo que resume as dúvidas, a filosofia, a vida.
Grande Sidarta, grande retorno!
Abração,
Lohan
Sidarta nos presenteando com um diálogo que poderia ser, na verdade, um embate entre eu e mim mesma, porque não? Quem nunca questionou os caminhos escolhidos por seu próprio coração? Quem nunca tentou racionalizar sobre a fragilidade da paixão? Uma viagem profunda, um convite à análise. Excelente!!!
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