segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O homem que queria ser outro - Parte 3 - A unidade


Para aqueles que não sabem, esta postagem é a parte 3 de uma história iniciada há duas semanas. Obrigado, que todos tenham uma ótima leitura!
Olhar oculto. Os olhos de ninguém. Assim era o olhar dela. Perdia-se dentro de si mesma. Era algo seu, só seu. Um egoísmo cruel. Um afastamento incômodo. Uma luta consigo mesma. Algo escuso. Ela olhava para tudo, e para nada ao mesmo tempo. Ela não olhava nos olhos.
Era sempre assim. Por que alguém se recusa a olhar nos olhos de outrem? Um homem que guarda o seu olhar para si acaba se perdendo dentro dos próprios tormentos.
Seu olhar oculto se perdia pela avenida através da janela do carro em movimento. Estava sem rumo, não conseguia enxergar um futuro próximo. Geralmente, olhava para baixo. Para os lados. Para trás. Mas raramente, nos olhos do futuro. Do caos de sua vida não nascia um mundo de soluções.

Morava ela e sua mãe, em um apartamento modesto na Tijuca. O pai havia falecido há dois meses, e a dor da perda ainda latejava em seu peito. A imagem do enterro vira e mexe bagunçava seus pensamentos, desconcentrando-a, e fazendo-a chorar. O choro era invisível. Este ninguém presenciava, nem de longe. O término do namoro foi um acontecimento abrupto. O estado depressivo que lhe atingira com a morte do pai acabou por levar o relacionamento, já abalado, ao fim...

Lia sentava-se ao lado de Julia, que dirigia seu Astra rumo ao hospital onde Ariano estava sob observação.
-Ele voltou de viagem, Julia. – Disse, mirando a dianteira do carro.
-Ele... Ele quem, menina?
-O Adalberto. Meu ex-namorado.
-E daí? Ele está atrás de você?
-Pior que sim. Já me ligou três vezes hoje. Ele não se conforma com o término... Eu o conheço, não vai me deixar em paz.
-Não tem essa! Esse cara tem que tomar o semancol dele e partir pra outra!
-Também não é assim... Ele ainda me ama.
-E quanto a você, dona Lia?
Lia Neide se cala por algum instante, muito confusa.
-Eu não sei o que sinto, ao certo. Não sei o que houve, o que está havendo... Estou me sentindo uma psicopata, incapaz de denominar meus sentimentos.
-Não diga uma coisa dessas. Uma hora você se encontra. Veja, chegamos.
No hospital, as duas entram no quarto de Ariano, que explode de felicidade ao ver Lia Neide. Sua mãe, Arlete, que o fazia companhia, deixa o quarto para que as visitantes se sentissem à vontade. -Meu cronista favorito, o que voce foi aprontar? – Disse Julia, a um sorriso.
-Olá, Ariano. – Cumprimentou Lia, meio que timidamente.
-Lia... Que bom que você veio... – Disse, quase em transe – Ah, e vo, você também, Julia. – Gaguejou, sem graça.
Lia não conteve seu riso meigo.
Ficaram as duas ali, conversando com ele, durante dez minutos. Até que Euclides entra no quarto.
-Nossa, que surpresa boa! Eu tinha até me esquecido que viriam!
-E o jantar, desistiu? – Perguntou Lia.
-Jantar? – Indagou Ariano.
-É, eu ia jantar fora, sabe... Mas desisti. E então, já alegraram muito o nosso paciente?
-Vê se temos cara de palhaças, Euclides. – Intercalou Julia, um pouco áspera.
-Não foi nesse sentido que quis dizer...
Euclides fitou os olhos em Julia, descomposto. Elas continuaram falando, e ele, ali, paralisado, como quem estivesse se deparando com seu maior medo em forma humana.
-Pessoal, o tempo da visita está terminando. Vocês têm mais dez minutos. – Avisou uma enfermeira, pela fresta da porta.
-Obrigada. Lia, Euclides... Será que vocês poderiam me dar licença um minuto? Eu queria falar com o Ariano um assunto de trabalho a sós. – Pediu Julia, polidamente.
-Claro. Vamos tomar um café, Lia?
-É pra já. Ariano, eu já volto pra me despedir, ok?
Lia caminhou até a cama e beijou o rosto de Ariano. A quentura daqueles lábios estalando na face esquerda de Ariano o fez estremecer. Quando ela ergueu o rosto, trocou um olhar flamejante com aquele jovem apaixonado. Aquela troca de olhares a fez se sentir tonta. Era uma mal-estar sem explicação.
-Te espero... Te espero, o tempo que for. – Murmurou ele.
Lia pediu licença e juntamente com Euclides, saiu do quarto. Antes de sair, Euclides lançou um último olhar sobre Julia. Um olhar carregado de suspeita.
Sem demoras, Julia puxou uma cadeira para rente a cama, e nela acomodou-se. Ariano pressentiu uma “bomba”, haja vista o estado apreensivo da redatora.
-Eu só quero te fazer uma pergunta, Ariano Bezerra.
Ele se manteve calado, olhos atentos.
-Você e o Euclides... Vocês são grandes amigos, ou essa relação seria superficial?
-Como?
-Calma... Por favor, me responda.
-Somos quase irmãos.
-Quase irmãos... – Sibilou ela, imaginando a gravidade da situação – Sendo assim, eu suponho que você conte absolutamente tudo para ele. Sobre seus planos profissionais, amorosos...
-É, eu conto. Ele me conta também... Nós confidenciamos segredos, dona Julia. Confiamos um no outro. Ele é o meu melhor amigo. Por que essas perguntas? Está querendo me contar alguma coisa?
-Me desculpe, Ari... Mas... Eu não sei, eu tive uma má impressão desse rapaz desde o dia que ele foi admitido na redação do nosso jornal.
-E por que concordou com a admissão dele?
-Pra não magoar você, Ariano. Claro, o Euclides é talentoso, mas eu levo em conta muitos outros atributos num homem. E quando meu santo não bate... É certo que há uma obscuridade nessa pessoa.
-Impressão sua, dona Julia. Me perdoe, mas é coisa da sua cabeça. O Euclides é um homem íntegro, de boa família, bom caráter. Obscura está sendo sua visão. Talvez queira demiti-lo, reduzir custos. O trabalho dele pode estar sendo ineficaz, na sua opinião. Quer demiti-lo e procura um pretexto desses! Usa a intuição! Isso é crueldade.
-Ariano... Eu não devia ter dito nada a você, estou arrependida. Tem coisas na vida que precisamos aprender sozinhos. Que precisamos enxergar com os próprios olhos, pois caso contrário, não se acredita. Você é uma pessoa muito apaixonada. Em todos os sentidos. O ardor da paixão aflora em sua pele. Confia de olhos fechados em qualquer pessoa. Ama demais as pessoas que não merecem o seu amor.
-Está se referindo a Lia? Você mesma disse que eu tinha chances.
-Sim, não estou dizendo para você desistir. Só estou tentando te dizer que... É preciso saber o momento de parar. Imponha limites aos seus sentimentos. Não saia espalhando todo o amor do mundo ao léu. É só isso que tenho a lhe dizer por enquanto. Gosto muito de você. Você é muito parecido com... – Julia embarga a voz, contristada pela comoção - Com meu filho. Eu já lhe disse isso uma vez.
Julia se levanta da cadeira, secando as lágrimas que brotavam dos olhos.
- Quando eu olho nos seus olhos, Ariano... Eu vejo o meu filho. Eu o vejo, nitidamente. Seus olhos, ah! Tem o mesmo formato, o mesmo brilho que tinha os dele. Me tenha como uma mãezona, que só quer o seu bem. Não me veja como uma patroa, como sua “dona’’. Me veja como uma mãe.
Julia não resiste e vai até Ariano abraçá-lo.
Enquanto isso, na cantina, Euclides e Lia Neide saboreavam suas xícaras de café.
-Pra quem poderia estar jantando em um restaurante japonês, esse café está péssimo. – Gracejou Euclides.
-Ah, você tem razão. Mas eu não podia deixar de visitar o Ariano. Ele... Ele merece ao menos a minha atenção.
-E quanto a mim? O que mereço?
-Você... Não sei. – Sorriu ela, envergonhada, sempre mantendo o olhar esquivo do olhar de seu interlocutor – Merece a minha gratidão. Hoje você me presenteou com uma linda poesia. Mal sabe que dia é hoje...
-É? E que dia é hoje, posso saber?
-Pode. Hoje é meu aniversário.
-Jura??? Que sacana você é! Nem pra dizer... Olha... Então eu te dei um presente no dia certo! – Fingiu enorme surpresa.
-Eu não quis comemorar meu aniversário. Minha vida está bem atribulada, eu nem tenho cabeça pra festa, nada do tipo. Não sei como estou conseguindo trabalhar. – Disse, cabisbaixa.
-O trabalho nos livra do ócio. E claro, quando fazemos o que gostamos, ele nos dá prazer. Esse prazer te ajuda a superar suas dificuldades. Ele distrai você ao invés de acumular mais obstáculos.
-Nossa, você é um poeta mesmo... – Elogiou, encarando-o rapidamente.
-Pois brindemos ao seu dia!
Euclides ergue sua xícara de café. Lia hesita, no entanto, cede ao ato. Os dois brindam.
-Ah!
-Feliz aniversário, Lia. Que você seja muito feliz. Que você encontre o príncipe encantado que merece.
-Há, príncipe encantado? Eles ainda existem?
-Se as princesas ainda existem... Por que não os príncipes? Agora mesmo eu vejo uma princesa em minha frente.
-Obrigada... Está se superando, hein.
-É o meu objetivo. A superação, sempre.
-Superar não é nada fácil. Quanto mais se superar.
Lia toma mais um gole de seu café.
-O que será que a Julia está conversando com o Ariano?
-Não tenho a mínima idéia...
-Vocês duas são bem amigas, não são?
-Sim, ela é uma pessoa maravilhosa. Nos tornamos amigas desde o meu primeiro dia de trabalho como secretária de redação.
O celular de Lia toca.
-Dá licença...

Ela se levanta, e se afasta um pouco da mesa onde estava. Euclides permanece sentado, a observá-la. Praticamente ele a comia com os olhos. Lia cada palavra pronunciada por sua boca. Exalava seu cheiro como quem inspira cocaína derramada sobre uma mesa. Alucinava-se com aquela “droga de mulher”. Uma droga que podia matar.
Enquanto a observava, ia refletindo... “Provavelmente aquela redatora de merda está contando sobre o convite que fiz a Lia... Elas são amigas intimas, a Lia deve ter dito algo para a Julia. O que faço agora... O Ariano vai me encher de perguntas. Vai perder a confiança em mim. Agora só me resta esperar, e ver quais serão as atitudes dele para comigo...’’
Lia parecia discutir com alguém pelo celular.

-Eu não quero que me procure mais! Adeus, Adalberto.
Ela desliga o celular, nervosa.
-Ei, o que houve mocinha?
-Ai, nada... Quer dizer, tudo... Como se não bastasse, mais essa.
-Venha até aqui, desabafe comigo.
Ela se senta, levando as mãos à cabeça.
-Não quer me dizer o que está acontecendo? Olha, se não quiser falar, não vou insistir.
-É o meu ex-namorado – Revelou, com a cabeça apoiada nas mãos, os cotovelos sobre a mesa - Ele voltou de uma viagem de trabalho agora, e está azucrinando a minha cabeça. Ele quer reatar o namoro.
-Mas por que terminaram?
-Nós já vínhamos vivendo alguns problemas. Meu pai morreu, eu fiquei muito isolada. Ele foi capaz de reclamar disso, ao invés de me dar apoio. Foi a gota d’água pra mim. Dei um basta em tudo. Hoje quero ficar sozinha, retomar as rédeas da minha vida, sem interferência de ninguém. Mas ele insiste, ele é obsessivo.
-Você disse que tinham problemas. Ele traiu você?
-Não... Acho que não. Ele é pugilista. E, devido à prática desse esporte, fica violento às vezes.
-Ele não... – Espantado.
-Não, ele nunca bateu em mim. Mas ele já brigou com vários homens por minha causa, na rua. É muito ciumento. Por isso eu temo até pelos meus amigos agora. Se ele me vir com alguém... Não vai se controlar.
-Você precisa seguir sua vida, Lia. Não pode viver a mercê desse cara. Que absurdo!
-Não é assim...
-Como não é assim?
-É mais complicado do que imagina, Euclides...
-Por que voce não me encara? Tem medo de mim?
-Não... – A um sorriso enjoado.
-Diga a verdade.
-Por que eu teria medo de voce? Quem pergunta isso é porque tem sempre um perigo a oferecer. Meu pai sempre dizia isso.
-Está insinuando que sou perigoso?
-Quem não é?
Desta vez, ela o encara novamente, agora por mais tempo. Sua vista fica embaçada. Ela logo esquiva o olhar.
Neste momento, Julia os interrompe, aproximando-se da mesa.
-Olá, acabou o horário de visita. Vamos, Lia?
Lia olhou para Euclides, que inclinara a cabeça, tentando evitar que seus olhos se cruzassem com os olhos argutos de Julia.
-E você, Euclides? Não quer vir conosco? – Preocupou-se Lia.
-Não, eu agradeço. Moro aqui perto, não quero incomodá-las.
-Não será...
-Venha, Lia. – Chamou Julia, enrijecendo o tom de voz.
Lia despediu-se de Euclides com um aceno, o mesmo fez Julia. Euclides permaneceu ali, sentado, vendo elas partirem. Agora estava bem claro para ele o quanto Julia estava estranha...
No dia seguinte, Ariano recebeu alta. Com o tornozelo enfaixado, apoiando-se em uma muleta, ele chega no conforto do lar. A primeira noite em casa após a queda não foi tão boa. Sentiu fortes dores de cabeça. Um enorme desânimo o tomou no domingo. Passou a base de remédios, entediado. Além do mal estado físico, Ariano estava um pouco perturbado com as palavras que Julia lhe dirigira sobre Euclides. Iniciava um texto, e logo rasgava a folha, rejeitando-o imediatamente. Seus pensamentos não fluíam. Estava preocupado com a faculdade também. E com o texto que não “nascia” para terça-feira. Estava angustiado na solidão do seu quarto; solidão que o fazia recordar Lia Neide todo o momento. Era domingo à noite quando Euclides liga para Ariano.
-E então, meu irmão? Como se sente?
-Não estou nos meus melhores dias, confesso...
-E a crônica de terça? A crônica pós-acidente! Já está nos trinques?
-Que nada, amigo... Não sai nada. Estou pensando seriamente em não escrever nada essa semana. Preciso conversar com a Julia.
-Eu estava querendo falar um assunto com você semelhante a esse... Hoje eu decidi abandonar as crônicas esportivas.
-Como?
-Não sei como explicar, mas... Me apaixonei pelo sentido de literariedade que você emprega nas suas crônicas, seus contos. Até sua poesia... Enjoei do esporte. Cansei de acompanhar várias partidas de futebol ao mesmo tempo, corridas automobilísticas... Quero dar asas a minha imaginação; quero investir em uma nova faceta de Euclides dos Santos. O que me diz, hein?
-Então quer dizer que eu o influenciei diretamente pra essa mudança radical? – Perguntou, a um riso abobado.
-É, digamos que sim. Nos últimos três dias li dois livros de poesia: um de Drummond e outro de Fernando Pessoa. Estou alimentando esses gêneros em mim. E está dando bons resultados. Quero arriscar, Ariano. Mas pra isso... Preciso de uma chance.
-Ora, e o que eu posso fazer por você?
-Não sei... Sinto que a Julia não vai muito com a minha cara. Pensei em falar diretamente com o editor-chefe do jornal, o que acha?
-É, pode ser... O que vai solicitar?
-Ao invés de publicar uma crônica esportiva, publico outro gênero textual.
-Mas não é assim que funciona. Os gêneros precisam divergir. Na terça, sou eu quem escreve as crônicas literárias. Na quarta são piadas, na quinta é outro quadro, e por aí se vai. E a segunda? Você poderá arriscar seu emprego com isso, Euclides. Eu acho melhor você não por a cabeça na degola.
-Que seja, Ariano. Eu não vou continuar trabalhando com algo que já não me dá mais prazer.

-Você sempre mudando... Não se fixa em nada. Mal começou a trabalhar no jornal, a escrever suas crônicas esportivas! Olha que ainda chegará a ser ator de novela global. Já lhe disse isso uma vez.
-É, eu sou assim mesmo, Ariano. Isso te incomoda?
-Sim, me incomoda. Te incomoda eu me incomodar com esse seu defeito?
-Não vejo como um defeito. Antes ser assim do que continuar na mesmice, no marasmo.
-Se foi uma indireta pra mim, saiba que estou muito feliz em meu posto. Em time que está ganhando... Aliás, vivo no marasmo mais bem acatado pela crítica brasileira.
-Eu não conhecia esse seu lado prepotente, Ariano.
-Prefiro ser assim a ser um proclamador de falsas modéstias. Eu sou bom no que faço. Afirmar isso é ser prepotente?
-Desculpa, mas vou desligar. Esse papo já está me dando náusea. Passe bem, a-m-i-g-o.
Euclides desligou. Ariano permaneceu com o celular colado no ouvido por mais dois minutos, imóvel. Chocado. Foi escorregando o telefone pelo rosto. As lágrimas vieram acompanhando o aparelho. Este havia sido o primeiro embate considerado grave entre aqueles dois amigos. Quase irmãos. Quase um.
A alvorada da segunda-feira foi marcada pelo corre-corre na casa de Ariano. Ele desmaiou em seu quarto, e no chão permaneceu durante horas, provavelmente toda a madrugada. Socorrido pelos pais, Ariano foi novamente internado. Seria submetido a uma bateria de exames detalhada.


Ariano realizava uma tomografia computadorizada enquanto seus pais, Arlete e Walter, consultavam a opinião de um médico, no corredor do hospital.
-Veja bem, ele sofreu uma pancada na cabeça. Pode ser que tenha causado alguma lesão grave, ou não.
-Doutor, mas o senhor não tem idéia do que possa ser? – Indagou o pai, um homem alto e truculento. Entretanto, seus aspectos físicos não condiziam com seu estado espiritual de ser. Era bastante pacífico, voz mansa.
-Existem suspeitas, mas seria precipitado afirmar qualquer coisa.
-Que suspeita, doutor? Diga! – Clamou a mãe.
-É melhor que aguardemos os resultados dos exames. Por favor, acalmem-se. Me dêem licença, eu preciso verificar o paciente.
O médico entrou na sala onde Ariano era submetido à tomografia.
Horas depois, Ariano estava repousado novamente em uma cama hospitalar. O médico, por prevenção, ordenou que o deixassem sob observação até que saíssem os resultados dos exames.
-Mãe... Ligue para a Julia e avise o que aconteceu... – Pediu Ariano, esmorecido sobre a cama.
-Está bem, meu filho. Agora não se preocupe com isso. Sua saúde é o que importa.
Meia hora depois, Julia desligava o telefone do seu escritório, com uma expressão preocupadíssima.
-Coitado do Ariano... Deus queira que não seja grave.
Um homem baixo e careca bate a sua porta. Era o senhor Haroldo Fonseca, editor-chefe do jornal.
-Entre. – Permitiu ela, arrumando lepidamente algumas folhas sobre a mesa.
-Como vai, Julia? – Saudou, com seu tom de voz severo.
-Vou bem, Sr. Haroldo. Que bons ventos o trazem aqui?
-Acabo de receber esta solicitação via fax.
O pequeno grande homem entrega uma folha nas mãos de Julia, que, ainda um pouco zonza com a notícia que recebera, tateia a mesa a procura dos seus óculos enquanto tenta ler algo. Ela põe seus óculos.
-Mas o que é isso? – Diz, ao finalizar a leitura - Uma carta de demissão?
-É, eu também diria que sim. Não acha estranho? Esse rapaz, o...
-Euclides dos Santos.
-Isso. Ele não foi admitido há um mês no jornal e quer mudar de setor? Ele acha o que? Que e o “Boca do Povo” é a casa da mãe Joana?
-Ele deveria ter me consultado antes... Muito estranho.
-Com certeza! Ignorou sua autoridade! Ele diz aqui que se “enveredou” pelos caminhos da literariedade, e que, além disso, se envolveu numa confusão entre os colegas do setor. Eu não soube de confusão alguma, você está a par de algo?
-Não, não houve confusão! Isso é desculpa. Mas... Por que essa mudança repentina? Por que justamente pro setor onde o Ariano trabalha... – Indagou-se, pensativa.
-Agora... Ainda não lhe disse tudo.
-Como? – Sobressaltada.
-Além dessa solicitação, ele me enviou também, por e-mail, uma crônica de sua autoria. Pra provar que sabe escrever este gênero tão bem quanto o esportivo...
-E?
-E está fantástica. Eu a encaminhei para seu e-mail. Este rapaz, apesar da audácia, conseguiu ganhar minha admiração. Ele agiu de uma maneira minuciosa, segura... Como se tivesse a certeza de que fosse aceita a sua solicitação.
-Ele premeditou tudo... Inclusive, no final do texto, ele ameaça a deixar o jornal caso seu pedido não seja aceito! Quem ele pensa que é para chantageá-lo?
-Calma, Julia. Eu também pensei assim, logo que li. Mas eu não posso deixar escapar do meu jornal um grande autor como ele.
Mas e daí, isso não diz nada, senhor. Ou se esqueceu que é o Ariano Bezerra responsável pelas crônicas literárias semanais do jornal?
-Sim, o talento do Ariano também é inegável. Eu andei pensando numa maneira de encaixá-lo na semana também. O que acha?
-Mas e as crônicas esportivas?
-Ah, eu contrato outro quem a escreva. É mais fácil encontrar um jornalista esportivo do que um crítico literário, com a competência de Euclides e Ariano. Estamos prestes a revelar mais um grande talento, Julia. Ele vai despontar. Vamos receber mais propostas.
-Por favor, o senhor está sendo precipitado na minha opinião... Está pensando nas propostas? Mas e se ele não der certo?
-Ele dará certo, eu tenho certeza! Não quero desperdiçar este talento no setor esportivo.
-O senhor entrou em grande contradição. No inicio, criticou a ousadia de Euclides. Agora, cai nas graças dele. Não estou te reconhecendo.
-Eu confesso que fiquei aborrecido a princípio, mas ele soube como me convencer. Nesta semana, vamos analisar como faremos. Eu pedi que o chamasse até aqui. Precisamos conversar, sem que seja assunto da pauta.
Euclides bate a porta. Julia faz um esgar ao ouvi-lo pedir licença.
-Entre, rapaz.
-Recebeu o meu fax, senhor?
-Claro. É exatamente por isso que mandei lhe chamar. Antes de mais nada, quero repreendê-lo por não ter previamente comunicado a dona Julia a sua atitude, a sua insatisfação.
-Quero me desculpar, dona Julia. Não queria aborrecê-la com este assunto, preferi pegar um “atalho”.
-Estou sendo paga para isso também, Euclides. Da próxima vez... Se houver a próxima vez... Não hesite em me procurar.
-Meu amigo, por que essa mudança? – Perguntou o editor-chefe.
-O cenário esportivo já não me fascina como antes. Não me sinto “em casa” mais, entende. Pensei muito em pedir demissão, envergonhado com essa situação toda. Seria mais justo e ético. No entanto, eu amo este jornal. Amo este ambiente, esse corre-corre, essa ocupação. Precisava optar, e, então, tive essa idéia. Em mudar o estilo de minhas publicações. Ao mesmo tempo em que eu trabalharia satisfeito, eu permaneceria neste jornal que me acolheu com tanto carinho.
O discurso de Euclides causou arrepio em Haroldo, que, por sua vez, já não conseguia formular mais nenhuma idéia que desafiasse a integridade profissional daquele jovem a sua frente. Todavia, Julia manteve-se ereta, irredutível. Mas sua opinião seria logo descartada, diante da autoridade superior de Haroldo.
-Imagino que esta insatisfação tenha sido originada de uma certa confusão... Não é o que você cita aqui, em seu texto? O que se faz com alguém que participa de uma confusão dentro da redação de um jornal?
-Eu fui envolvido, senhora. Uma bobagem, uma discussão de idéias entre nós. Já não sou bem quisto lá, isso é verdade. Mas isso não é o fator principal da minha insatisfação.
-Rapaz, eu confesso que estou admirado pelo seu talento. Li a sua crônica. Como aborda bem a política! Esta crônica te salvou. Caso contrário, esta carta seria a razão de sua demissão.
-Eu fico feliz por ter apreciado o meu trabalho, senhor. E então, o que será resolvido?
-Até amanhã eu acerto tudo. Na quarta-feira já começamos a anunciar no jornal a nova coluna. E semana que vem, será a sua estréia. Ou melhor, sua reestréia.
Haroldo sorria, e batia a mão amigavelmente nas costas de Euclides, que se inflava de vaidade.
-E quanto a Ariano? Não desejo ocupar seu cargo...
-Você já deve saber que ele foi internado de novo, não sabe, Euclides? – Insinuou Julia.
-Não, eu não sei! O que houve?
-Ele sentiu fortes dores de cabeça, desmaiou nessa madrugada... Pode ser algo grave na cabeça.
-Isso significa que amanhã não teremos Ariano Bezerra! – Pasmou-se Haroldo.
-Ele não está em condições para escrever. O que faremos?
-Está muito em cima... E a coluna do Ariano é a mais lida e comentada do nosso jornal... Putz, estamos ferrados. – Lamentou Haroldo, oscilando pela sala.
-O povo irá entender. Publique um comunicado, dizendo o que aconteceu com ele.
-Ou não...
Haroldo se aquieta, e olha para Euclides.
-Eu acabo de ter uma idéia... Euclides, eu tenho consciência de que seria inapropriado colocá-lo na publicação de amanhã, pois o povo anseia pela coluna do Bezerra, e ficariam bastante irritados ao ver que o texto é de sua autoria.
-O que está pensando em fazer... – Disse Julia, temendo muito pelo o que o editor ia decretar naquele instante.
-Vamos publicar a crônica de Euclides em nome de Ariano Bezerra.
Julia quase caiu da cadeira, perplexa.
-Como???
-É isso, dona Julia. Está decidido. As escritas deles são semelhantes. Ninguém irá sequer suspeitar. Na semana que vem, Ariano já estará recuperado, e Euclides terá seu dia exclusivo. O que me diz, Euclides?
Euclides estava estático. Pálido. Ele sorriu, e, como se tivesse acabado de ingerir uma dose tripla de contentamento; como se esta alegria e satisfação fossem os ingredientes que faltavam na receita de sua vida; como se agora sim, se sentisse um homem completo. Ele respondeu:
-Eu concordo, senhor. Eu serei Ariano por um dia – Ele ri, embasbacado – E Ariano será eu, por um dia. Seremos um só.


CONTINUA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA...

17 comentários:

Andréa Amaral disse...

Lohan querido, você realmente tem o dom de criar. Cada capítulo que passa, eu percebo o quanto a sua história se desenvolve e o quanto a sua imaginação vai longe. Acréscimo de personagens, pensamentos , situações... todos já ganharam vida, como num romance. Acho que este blog está ficando pequeno para comportar a sua história. Já virou livro. Daqueles que a gente começa e não quer parar até acabar a última página.Parabéns.

Ivelise Zanim disse...

Realmente Lohan, voce está se superando a cada capítulo!!!!
O que podemos claramente hoje ver e sentir, é a sagacidade do Euclides, em cada dia mais se apropriar da IDENTIDADE e da VIDA de Ariano, e isso ele está realizando custe o que custar.... Pessoas desta personalidade conflitiva, nào medem esforços ou seja o que for preciso para alcançar seus objetivos doentios, e para tanto sào capazes de coisas inescrupulosas, como as que estamos vendo por parte deste personagem Euclides...
Ja por outro lado, existem pessoas como Ariano, tào ingenuamente desprovidas de malícia, que chegam ser fora de moda, nesses dias tào maliciosos q vivemos....Mas existem....
Ficamos no aguardo do desfecho desta estória fascinante!!! Abs!!!

Anônimo disse...

essa Lia é uma pessoa fria? E o q ela tem de bom? E o Euclides gosta dela?

Lohan disse...

Obrigado Andrea e Ivelise! A história está se desenvolvendo muito, realmente. E vem muito mais pela frente ainda! Espero não desapontar meus queridos leitores com a continuidade dela.
Qnto ao ''anonimo'', rs, o que eu diria... Interessante sua pergunta... A Lia não é uma pessoa fria. Ela é uma mulher, de vinte e um anos, que está passando por uma situação crítica em sua vida; ela está confusa. Uma pessoa de bom coração, que esconde algum segredo no fundo do seu olhar... Vai ver é por isso que não olha nos olhos do outro...
Quanto aos sentimentos de Euclides, é complicado dizer alguma coisa, até msm eu, o autor, rs. Se ele a ama ou não... Eu creio que ele seja capaz de amá-la. Creio que o conflito entre ele e Ariano pode se intensificar por conta da existência de Lia. Ambos querem desvelar o que ele esconde em seu ''olhar oculto''. E posso adiantar uma coisa: Euclides não medirá esforços para esta conquista. Ele será capaz de TUDO. Quanto ao valor da conquista, é que está o mistério. O que ele estaria almejando? Uma afronta a Ariano? Um ''querer ser Ariano'' até mesmo no campo amoroso - amando a mesma mulher? Ou ele de fato a ama, independente de Ariano?
Fico muito feliz em poder interagir dessa forma, com o leitor. Eu mesmo vou descobrindo certos aspectos em minha história, os quais ainda não havia atentado. Mesmo que ''oculta'' no anonimato, eu agradeço sua participação. A sua primeira participação, eu acredito...rs
Que venham mais comentários repletos de sugestões e perguntas! Obrigado!

Anônimo disse...

Para mim Lia não é fria, ela não quer é se envolver, pelos motivos que o autor nos mostrou. Uma pessoa fria não é capaz de amar, e no meu ponto de vista Lia tem um bom coração. E como dizia o Machado: Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar". Posso está enganada, pois não sou o autor, rs. Ah, e meus parabéns para o Lohan.

Lohan disse...

Obrigado, a outro ''Anonimo''. Meu Deus, gente, deixem seus nomes! rsrs
Mas não é preciso, rs, Pior que eu já saquei quem são, os dois, rs. Seus nomes teriam início com a letrinha ''E''? rs Será que acertei?
Mas de qualquer maneira, adorei este último comentário. Obrigado, E... Ah, não posso falar. Mas saiba q seu comentário retratou bem o que quis dizer anteriormente. Mas preste atenção numa coisa... Naqueles que amam de verdade. Nem todos amam de verdade.
Bjs e obrigado pela sua prenseça aqui.

Camila disse...

Lohan, essa história é mesmo viciante. Também estou admirada com a sua capacidade de criação. Estes novos personagens estão dando muita vida ao desenrolar da história. Fico agradecida em poder ler, aqui no Autores, esses textos que, com certeza, dariam um ótimo livro... Você não só sabe desenvolver o enredo, como também consegue delimitar onde parar. Nos deixa em suspense, ansiosos pelo próximo 'episódio' dessa trama tão rica. Agora estou ficando com medo de Euclides, de verdade.
Beijos e aguardo ansiosa pelo desfecho. Bjs!

Camila disse...

Ah, esqueci de falar: essa última frase "Seremos um só." arrepiou minha espinha...

Lohan disse...

kkk Calma Camila! Tadinho, o Euclides nem é tão ruim assim. Ele ainda está bonzinho!
O vilão está em construção.
Pretendo incluir mais personagens importantes, uns dois, talvez. E se até então há um ''ar de previsiblidade'', vcs não perdem por esperar o que virá aí...rs
Bjs, Camilíssima! Ta me dando uma vontade de matar alguém nessa história rsrs...

Roberto disse...

De todos,esse foi o que me deixou mais nervoso e ansioso pelo o que vai acontecer....hehehehe

Sidarta disse...

Lohan, faço minhas as palavras da Andréa e da Camila. Quem sabe esteja nascendo aqui seu primeiro livro, e nós somos os privilegiados de lê-lo em primeira mão.

Confesso que me senti um pouco Euclides, rs, com inveja de sua capacidade narrativa, tão rica de detalhes.

Adorei especialmente as linhas:

"... Exalava seu cheiro como quem inspira cocaína derramada sobre uma mesa. Alucinava-se com aquela “droga de mulher”. Uma droga que podia matar..."

Talvez aí uma chave para o desenvolvimento dessa trama, com a qual você está sabendo tão bem prender nossa atenção.

Se é possível uma inveja saudável, daquelas de admiração, aprendizado e desejo de sucesso, então eu invejo você.

Abraço!

Lohan disse...

Valeu Roberto (Ah, deixou mesmo o Bambu?), rs, e Sidarta!
Se está nascendo um livro... Hum, pode ser que sim, hein...
Essa frase que vc destacou é bem legal mesmo, Sidarta. Eu escrevo, ''alucinado'' pela inspiração, sem me dar conta até. Qndo vejo, digo: Caramba, não é que ficou maneiro? rsrs
Mas eu estava relendo o inicio agora, e percebi uma mudança no inicio! Uma parte foi cortada! Será que foi após a edição que a Camila fez no blog???
Vou ver se consigo recolocá-la...
Abraços!

Lohan disse...

Oi Sidarta, consegui recolocar, a introdução. Caso vc nao tenha lido...
Abraços!

Camila disse...

Desculpa, Lohan... Acho que fiz m... mesmo!!! Foi mal... me manda a parte que está faltando por email, ok? Bjs!

Lohan disse...

Camila, já consegui colocar!
Que nada, isso acontece nos melhores blogs, hahaha.
Bjão!

Daniela disse...

Oi Lohan...

Sou a irmã sacal da Paula hehehe

Gostei muito do poema e deste seu texto. Ainda não li os outros, mas pretendo me aventurar para conhecer...

Você escreve bem e pelo jeito exerce grandes influências sobre o prazer pela escrita na minha irmã...

Bom te conhecer!
Abraços, Dani!

Lohan disse...

Oi Daniela! Ótimo te conhecer também, que boa surpresa!
Olha, eu te devo mil desculpas pelo irmã sacal, rsrs, mas saiba q foi mais pra rimar, ok? A Paulinha já tinha me dito que te adora muito, está longe de ser o estereótipo daquelas irmãs que, de fato, são sacais rsrs.
Fico mto feliz pela sua iniciativa em se aventurar nos meus textos! Essa história q vc comentou já é uma continuidade. Comece da parte 1, vc vai gostar bastante. E claro, todos os textos deste blog merecem ser lidos, vc não perderá nada, acredite.
Exerço mta influencia, é?? rsrs Caramba! Agora fiquei até lisonjeado! rsrs
Bjão, Daniela, espero ve-la outras vezes por aqui no blog!