''-O maior presente vem de dentro da gente... E não das coisas materiais''.
Tenham uma boa leitura! Lohan L. Pignone.
“The Red Car, o carro do momento”
Os olhos pequenos de Zózimo refletiam no vidro polido daquela vitrine. O dizer do cartaz que indicava o produto não o interessava, afinal, ainda não havia mergulhado naquele mundo fantástico das letras. Apenas a imagem era capaz de lhe revolver todos os sentimentos infantis. Seus olhos brilhavam mais do que aquele vermelho escarlate do “carro do momento”. Brilhavam de pureza, desejo, sonho. Pois aquela senhora que caminha do outro lado da rua sonha com uma aposentadoria merecida e um lar cheio de netos.
A mulher balzaquiana que atravessa a rua sonha em engravidar do homem que ama e conseguir um emprego que a valorize como profissional. O jovem que passa apressadamente pela calçada sonha em passar no Vestibular e ser alguém no futuro. E aquela criança, seis anos vividos, diante da vitrine daquela luxuosa loja de bairro nobre, sonhava em ganhar de presente aquele lindo carro de controle remoto no Natal que se aproximava.
-Vem, filho.
De mão dadas ao filho, Maria intervém naquele instante sublime que Zózimo vivia. Zózimo não pronunciou uma palavra. Apenas não queria desgrudar os olhos daquele sonho tão distante. Apesar da idade, podia enxergar perfeitamente a necessidade do dia-a-dia de sua família. E sua família era sua mãe e ele.
Aquele amadurecimento precoce consumia a criança que era. Deixou-se ser levado pela mão calejada da mãe e, ainda com o pescoço virado para trás, viu sair da loja um sorridente menino com uma caixa nas mãos, onde nela havia a figura do “carro do momento”. Ao lado do menino, seu pai, também satisfeito pela felicidade que proporcionara ao filho com aquele presente.
Lá estavam dois sonhos distantes para o inocente Zózimo: “O carro do momento” e um pai.
Subiu o morro com sua mãe e ao perceberem a presença de PMs na área, logo entraram em seu casebre, fecharam as janelas, as cortinas, e silenciaram-se num canto, aguardando o início e o fim de mais uma batalha.
E naquela noite escura Zózimo chorou, baixinho, debaixo da cama que dormia com a mãe. Precisava ser criança ao menos uma vez no dia...
Maria pôde ouvir a tristeza que brotava do coração do pequeno e sentiu uma dor profunda no peito. Quando criança vivenciou as mesmas situações e um dia prometera a si mesmo nunca permitir que seu rebento sofresse tanto quanto ela. Mas o que fazer se para alguns desafortunados a vida insiste em mergulhar no abismo? O que fazer sem um pai para aquele filho? Como fazer sem um emprego fixo?
Não sabia como agir, mas sempre soube como reagir. Reagir aos encalços da vida, às bofetadas que ela lhe acertava à luz do sol. Lutaria esforçosamente assim que raiasse um novo dia. Estava determinada a proporcionar um sorriso radiante no filho, algo que lhe recompensasse todas aquelas lágrimas. Aquele Natal seria o mais feliz da vida dele.
E lá estava a negra Maria, iluminada pelo sol daquela manhã, repleta de esperança, pois do abismo surgiu um mundo. Beijou o rosto do filho e o entregou sob os cuidados da fiel vizinha. Seguiu ladeira abaixo, rumo a mais uma casa de classe média alta na Zona Sul. Completou meio-expediente de faxina e de lá tomou o ônibus para mais um endereço requintado. Lavou, passou e poliu. Sob os olhares exigentes da D. Susana, ela trabalhava, calada e incansavelmente.
Finalizou meio-expediente. Já anoitecia quando Maria voltava, relaxada de tanta exaustão em um banco desconfortável de ônibus, para o seu morro. Apanhou o filho, cheio de saudades. Comprou pão, leite e café. A quantia que sobrou foi guardada em uma gaveta.
Deitou a cabeça no travesseiro pensando no que faria no dia seguinte.
E lá estava Maria, mais um dia, cozinhando um simples almoço para ela e o filho. Saiu em busca da labuta. Ofereceu-se à D. Alice para lhe adiantar alguns remendos. D. Alice costurava as roupas dos moradores daquela comunidade. Maria fazia de tudo um pouco.
-Muito necessitada, Maria?
-Necessitada em realizar o sonho do meu filho.
Naquele dia economizou mais um bocado. Já era noite quando sua vizinha foi lhe avisar de um telefonema. Para a grata surpresa de Maria, D. Susana havia apreciado seu trabalho no dia anterior e resolveu contratá-la como sua empregada definitiva. Maria recebeu esta notícia com lágrima nos olhos. Receberia ao final de todo mês um salário mínimo e isso era o bastante para começar a alavancar sua vida.
Amanheceu um novo dia e Maria já estava preparada para inaugurar uma nova fase de sua vida, a qual ela punha muita fé.
D. Susana tratava-se de uma patroa rigorosa, perfeccionista. Seu bom senso no que dizia respeito a limpeza e higiene jamais desaprovariam os esmerados serviços de Maria.
Naquela tarde, D. Susana tecia um lindo par de sapatinhos azuis, sentada em sua confortável cadeira de balanço.
Maria limpava os vidros da janela de seu quarto, tornando-os cintilantes à luz do sol vespertino. A mesma luz iluminava o trabalho minucioso de D. Susana.
-Você tem filho? – Indagou intempestivamente a velha senhora, sem cessar a tarefa.
-Sim, tenho sim senhora. Um menino.
-Como se chama?
-Zózimo. – Respondeu com orgulho.
-Bonito nome o do seu filho.
-Ah, brigada... É o nome de meu falecido pai.
-Já o meu neto será chamado Lucas. Dois meses... Não vejo a hora de sua chegada a este mundo. Seu primeiro par de sapatos será este.
Maria sorriu.
-É ótimo sentir a presença de uma criança. – Continuou D. Susana – Ao olhar para ela nos sentimos mais velhos e, ao mesmo tempo, nos sentimos rejuvenescidos. Meu filho cresceu rápido demais. Não aproveitou muito os sapatinhos que teci para ele, há.
Maria gostava de ouvir os devaneios de D. Susana. Apesar de aparentar austeridade, era uma velhinha simpática.
-Maria, por favor, apanhe meu estojo de agulhas dentro da primeira gaveta da minha cômoda.
-Sim senhora.
Ao abrir a primeira gaveta, deparou-se com um lindo colar de pérolas em seu interior. Seus olhos encheram-se de luz, despertando e si um imenso desejo. Pensou em tocá-lo, mas logo desistiu daquela idéia. Como queria usá-lo em seu pescoço... Talvez fosse rainha até subir o morro, quando decerto seria assaltada. Um vago pensamento torturou-lhe o caráter naquele instante. Um instante. Roubá-lo significaria um esplêndido Natal para seu filho. Poderia comprar todo o estoque do “Red Car” e ainda prepararia um farto banquete, com todas as delícias que os ricos deleitavam-se nas novelas, as quais acompanhava pela sua tv de 14’polegadas.
-Eu me enganei, Maria. Está na segunda gaveta!
D. Susana a desligou do transe. Maria fechou rapidamente a gaveta e abriu a próxima. Lá estava o que procurava. Respirou fundo e seguiu com o dia, que se findava no horizonte, trazendo a noite estrelada, que era contemplada de uma janela apodrecida por Zózimo.
-Vem dormir, Zózimo! – Ordenou Maria, do quarto.
Zózimo imaginava estradas feitas de estrelas. Estradas por onde percorreria o trenó do Papai-Noel. Tentava compreender o porque dele nunca ter visitado sua humilde casa, assim como a de muitas outras crianças daquela comunidade.
Neste instante, cruza o céu uma rajada de luz, acompanhada de um estrondo.
-Zózimo!! – Berrou Maria, desesperada.
Ela pula da cama e corre para apanhar o filho.
-Eu já disse pra não espiar da janela essa hora, Zózimo! Não vai me obedecer?
Zózimo permaneceu mudo, inclinando a cabeça em sinal de obediência. Foi levado para o quarto junto da mãe, onde repousaria seu corpo e sua cabecinha cheia de porquês. Antes de pegar no sono profundo, deduziu que talvez fosse perigoso atravessar as estradas do céu de uma favela. O Papai-Noel não podia ser achado por uma bala perdida...
Ao estar coando o café daquela manhã, Maria foi surpreendida por Zózimo, que a perguntou:
-Este ano o Papai-Noel vem me visitar, mãe?
Maria sentiu aquela ingênua pergunta tocar seu coração. Aproximou-se dele, afagou-lhe os cabelos e respondeu:
-Vai, filho. Pode confiar na mãe, viu?
Zózimo sorriu. Maria, quando criança, sempre aguardou a vinda do Papai-Noel. Escrevia-lhe cartas e mais cartas, e, no máximo, o que recebia era uma boneca de pano ou uma bola de plástico. Sua esperança foi transformando-se em ódio. Já não podia mais ouvir falarem em Papai-Noel, pois aquele bom velhinho era um homem injusto. Tantas crianças sendo agraciadas com bicicletas, patins, lindas roupas... Então, mais tarde, o ódio transformou-se em resignação.
Não queria que Zózimo a odiasse assim como ela odiou seus pais, mesmo que na inocência. Precisava, a qualquer custo, tornar aquela lenda uma realidade.
Chegou na casa de D. Susana, disposta para mais um dia de luta.
-Está demitida.
Aquela gélida recepção de D.Susana foi um baque. Maria sentiu uma passageira vertigem.
-Demitida...
-Devia fazer pior, sua... Ladra. Devia denunciá-la a polícia!
Maria reagiu.
-Como pode me chamar de ladra? Eu não roubei nada!
-Cale-se, eu não admito que jure falsa inocência! Eu sei que foi você quem roubou o meu colar de pérolas.
-O seu colar? ...
-Não seja cínica. Ontem eu fiz aquilo propositalmente, pois queria que visse o colar naquela gaveta. Eu pude notar sua reação ao deparar-se com uma jóia mais valiosa que sua própria vida! Digamos que tenha sido um teste de honestidade, no qual você foi reprovada.
-Eu não roubei, eu não admito que a senhora me acuse assim!
-Quem foi então, hein? O vento o levou? Chega! Eu não quero mais que ponha os pés aqui dentro. Saiba que a livrarei de uma queixa. Decerto já repassou o material para as mãos de algum traficante do seu morro, não quero levar essa demanda adiante. Tinha que ser favelada. Tinha que ser...
D. Susana pausou, olhando uma lágrima de inocência ou arrependimento escorrer pela face de Maria.
-Preta. – Respondeu Maria, secando a lágrima.
-Não era isso que...
-Era sim! Eu sofro na pele esse preconceito desde que me conheço por gente. Então não me venha me dizer que não era!
-Maria, eu não tenho provas, portanto eu não a denunciarei.
-Eu também não vou te denunciar não, sabe por que? Porque eu não quero que seu neto precise ir até a cadeia pra conhecer a avó racista que ele tem. Agora dá licença, eu não passo nem mais um minuto aqui.
Maria é seguida por D. Susana até a porta.
-Espere! Se eu fosse racista, não confiaria em você para trabalhar em minha casa!
Maria, já fora de casa, responde:
-A senhora nunca confiou em mim.
No ônibus, Maria não conteve seu pranto. Chorou durante todo o trajeto. Como é duro viver. Ser bom não basta. Precisamos ser açoitados na vida, testados.
Subiu o morro sem dar conversa a ninguém, em pleno desânimo. Com os olhos vermelhos chegou em casa. Lá estava Zózimo, assistindo tv.
-A tia Julia disse que já voltava e não veio, mãe. – Disse o menino, referindo-se a vizinha.
Maria não pronunciou uma palavra. Adentrou em seu quarto e fechou a porta. Zózimo percebeu que havia algo errado. Foi ele bater à porta.
-Me deixa sozinha, filho. Me deixa...
-Mas você tá triste, mãe.
-A vida é triste. – Decretou ela.
Ficou sentada, com o olhar fito na parede descascada, durante meia-hora. Não derramou uma lágrima mais. Depois se dirigiu até a cômoda, abriu uma das gavetas e dela apanhou uma caixinha. Tornou a sentar-se na cama. Abriu a caixinha e pegou, com as mãos trêmulas, o que ela encerrava.
-Tudo é para o meu filho. – Murmurou, secamente.
Véspera de Natal. Maria levantou-se cedo. Lançou um olhar terno para o pequeno, que ainda dormia profundamente. Arrumou-se com modéstia, avisou a vizinha que estava de saída e desceu ladeira, admirando alguns enfeites natalinos que pendiam nas portas das casas e nos postes. Muitos também já estavam de pé naquela manhã nublada. Logo mais seria celebrada a grande festa. Era preciso preparar o banquete, arrumar a casa para os convidados, comprar os presentes que faltavam...
Maria tomou o ônibus, que por sinal não estava tão lotado como nos outros dias. Sentou-se ao lado de uma mulher acanhada, de pele clara e olhos fundos. O suor corria-lhe pela pele. Secou a testa com o dorso e suspirou.
-Sente-se bem, moça? Se quiser pode sentar aqui, pra janela... – Disse a mulher ao seu lado no assento.
Maria volveu-se para a mulher e respondeu que estava bem, grata pela sua preocupação.
-Este calor aumenta cada dia mais, não acha? Será esse aquecimento global? – Continuou a mulher, puxando assunto.
-Só pode...
-Ah... – Gemeu - Estou indo comprar o presente do meu filho. Esse mês foi tão puxado que nem tempo eu tive pra fazer compra de Natal, sabe. E como o dinheiro também é contado, só vai dar pra comprar uma lembrança pro meu menino. Mas o presente dele é obrigatório. Ele diz que é o ultimo brinquedo que deseja brincar antes de morrer... Mas ele não vai morrer. – Disse, com os olhos marejantes.
Maria foi surpreendida por aquele verbo tão temido: morrer.
-Mas morrer por causa de que?
-Agora ele está preso numa cama de hospital, descansando após uma dura sessão de quimioterapia. Ele tem câncer.
Maria sentiu uma pontada de dó em seu peito. Câncer... Que palavra medonha, feia. Criança não combinava com isso. Tudo relacionado à criança era colorido, alegre e bonito.
-Se eu pudesse compraria toda a cura do mundo para ele, mas... Pelo menos ele merece ter um Natal feliz.
-Se Deus quiser, e Ele quer, vocês terão um Natal milagroso.
-Deus... Onde estará Deus neste momento? – Blasfemou a sofredora mãe.
Silenciaram-se para um instante de reflexão.
-Prazer, meu nome é Rosana.
-Eu sou Maria.
As duas conversaram durante um bom tempo enquanto o ônibus seguia seu trajeto. Desceram juntas, no mesmo ponto. Juntas rumaram até uma loja de brinquedos. Alcançaram a calçada e, subitamente, viram-se envolvidas em uma balbúrdia. Sirene da polícia, gritaria. A perseguição estendia-se. O ladrão se viu cercado. Acuado, ele agarra uma pessoa pelo braço e a ameaça com uma arma na cabeça.
-Se chegarem perto, eu mato essa mulher! – Ameaçou o jovem e desorientado rapaz.
Rosana caiu em desespero nas mãos daquele rapaz. Era a refém. Maria afastou-se, tão chocada quanto a vítima. A policia aproximava-se devagar. Tentou negociar, em vão. O rapaz exigiu um carro, grana; o tempo passava, Rosana já não agüentava mais. O rapaz sussurrou no ouvido dela que a mataria. Instintivamente, pensando em seu filho, ela lhe acerta um golpe brusco, livrando-se de suas mãos. Ao correr em direção a policia, ela ouve um estalo que colocaria um ponto final na história de sua vida. O tiro atingiu-lhe em cheio, atravessando-lhe o tórax. Sem titubear, a policia disparou contra o rapaz, matando-o. Rosana caiu agonizante na calçada. Maria correu até ela, em meio a grande massa. Alguns policiais tentaram afastá-la de qualquer maneira, mas Maria ainda teve tempo de ouvi-la murmurar, com um tênue riso nos lábios, no ultimo suspiro:
-Agora sei onde está Deus...
Revirou os olhos. Maria foi arrancada dali, aos prantos. Disse ser a prima de Rosana e acompanhou o corpo até o IML. Entrou em contato com uma irmã da vitima através de um número de telefone encontrado na bolsa dela.
A tarde já caía quando Maria deixava o IML. Andava pelas ruas sem caminho traçado. Parou em frente a uma enorme loja de brinquedos, a qual ficaria aberta até as dezenove horas por conta do exorbitante movimento para compras. Arrasada, ela entra na loja e compra um dos brinquedos mais caros, pagando à vista. Em seguida, Maria segue para uma clínica na Zona Sul; uma a qual Rosana havia comentado consigo no ônibus. Lá procura por um menino de oito anos, chamado Leandro. Uma enfermeira a leva até o quarto do paciente.
-Ele está sozinho no momento. Seu pai precisou sair às pressas e pediu que ficássemos atentos a ele. Você é parente dele?
-Não, eu... Eu só sou uma amiga da mãe dele. – Disse Maria, considerando aquele breve momento de companhia de Rosana uma eterna amizade.
-Importa-se que eu fique aqui também?
Ao entrar no quarto, Leandro, ainda sonolento, dirige um olhar vazio à Maria. Ela caminha até ele com uma caixa nas mãos. A enfermeira permaneceu observando-os da porta.
-Quem é você? – Perguntou ele, baixinho.
-Eu sou Maria. E esse presente... – Ela olha para a caixa – Esse presente é teu. Feliz Natal, menino.
Maria prendeu o choro, enlaçando um nó na garganta. Era inaceitável assistir a uma cena daquelas. Uma criança, assim como Zózimo, que deveria estar esbanjando vida por todo canto. Uma criança sem cor, lívida, como se a cada suspiro deixasse escapar uma parcela considerável de suas forças, sua vida. Uma criança, agora órfã de mãe.
O menino, que tinha a cabeça completamente raspada, desembrulhou o presente e, ao notá-lo, fez que não gostou.
-Minha mãe já vai me dar um desses. – Sibilou, ao estar com o Red Car nas mãos.
-Foi sua mãe que pediu pra trazer, ela, ela... Ela precisou sair. – Mentiu – Ela disse que esse carro de controle remoto era o que você mais queria, não era?
Ele fez que sim com a cabeça.
Maria estava muito abalada e resolveu sair daquele quarto antes que a angústia lhe forçasse a derramar lágrimas diante dele. Olhar nos olhos daquela criança cortava sua alma.
O menino sentiu-se agradecido e a deteve, notando seu semblante caótico:
-Você parece nervosa. Aconteceu alguma coisa com a minha mãe?
Uma lágrima clara escorreu pela face negra de Maria. Lembrou-se de Zózimo e de como ele era saudável apesar dos pesares. Pensou em como seria feliz o seu Natal! Tantas pessoas passando por dificuldades tão superiores a sua... Seria injusto blasfemar ou praguejar contra a vida.
-Por que você tá chorando, Maria?
-Choro porque... Porque eu sou uma boba mesmo, é isso. Você é um menino lindo, igual ao meu.
-Você tem um filho, Maria?
-Tenho. O nome dele é Zózimo, ele tem quase sua idade. Quer que eu o traga aqui pra vocês brincarem juntos?
-Quem ia querer brincar comigo? Eu sou um doente. Eu nem tenho amigo.
-Agora você tem. – Afirmou, secando a lágrima em meio a um sorriso.
Ao chegar em casa, Maria abraçou Zózimo e disse que o Papai-Noel havia deixado um presente muito especial para ele em um lugar secreto. Entusiasmado, Zózimo mal pôde dormir naquela noite, de tanta ansiedade. No dia vinte e cinco de dezembro, ainda pela manhã, Maria o levou até a clínica. De início Zózimo estranhou o local.
Maria procurou por Leandro. Ele estava no jardim, junto do pai, que ainda não tivera a coragem de lhe revelar sobre a morte da mãe. Maria e Zózimo foram encaminhados por uma enfermeira até o mesmo jardim.
-Cadê o meu presente, mãe? – Indagou Zózimo, já impaciente.
Maria sorriu e apontou para Leandro. Leandro e Zózimo entreolharam-se pela primeira vez. Sob a luz amena do astro-rei, Zózimo e Leandro foram apresentados. Leandro explodiu de felicidade. Agora tinha com quem dividir seu tempo ocioso. Zózimo foi conquistado pelo carisma de Leandro. Ambos tornaram-se amigos pra valer em questão de minutos.
Este foi o presente de Natal de Zózimo. Um presente de preço inigualável, mais importante do que qualquer carro do momento. Um presente para toda vida: A vida.
Os dias passavam, irrompeu um novo ano. Zózimo e Leandro sempre brincavam juntos no jardim da clinica. Zózimo consolava lentamente o pequeno coração de Leandro, que por sua vez, quase entrou em crise ao saber da morte da mãe. Quando havia a permissão do médico, o pai de Leandro os levava para passearem na praia e tomarem sorvetes juntos. Em pouco tempo já faltavam as rodas dianteiras do Red Car e sua linda lataria vermelha já colecionava arranhões e amassos. O que era um Red Car diante daquela amizade sem fronteiras?
Mas até o Paraíso necessita da inocência de uma criança. E, dois meses depois, Leandro foi requisitado por Deus. Sua doença tornara-se incurável e o arrebatara da vida, da vida de sua família, da vida de seu melhor amigo.
Após receber aquela noticia, Zózimo pareceu esvair-se de tanta tristeza. Havia perdido o seu melhor presente de Natal.
O corpo estava sendo velado na própria clinica onde ficou internado. Zózimo fez questão de ir despedir-se de seu amigo. Implorou para que Maria o levasse até o velório. Maria atendeu suas súplicas. Na clinica, a tristeza tomava conta de todos. Até mesmo os funcionários daquele recinto já haviam tomado afeto por aquela simpática criança. Zózimo orou baixinho diante do caixão de Leandro e fez um pedido a Papai do céu, conforme o próprio referia-se. Pediu que um dia pudesse reencontrar-se com seu presente de Natal mais querido.
Já afastados do velório, Maria envolveu seu filho nos braços e o confortou:
-Papai do céu vai cuidar bem dele.
-Mãe... – Disse, olhando-a com pesar– Eu nunca mais vou ter um presente de Natal tão bom. Nem que o Papai Noel me dê mil carrinhos e videogames no próximo Natal. Eu descobri que o maior presente vem de dentro da gente e não das coisas das lojas.
Zózimo retornou ao velório. Maria ficou a observá-lo partir. “Toda morte nos deixa uma viva lição”, ela pensou, refazendo-se da comoção que lhe tomava aos poucos. Resolveu ir até o banheiro lavar o rosto. No caminho, surpreende-se ao encontrar D. Susana, que, bloqueada por um enorme vidro, tinha os olhos fitos no berçário.
Parou, hesitante. Aquela senhora a sua frente um dia a humilhou com frialdade; pessoas de sua estirpe teriam direito ao perdão? Não, recusar-se-ia a encará-la.
Andava apressada quando, já a uns dois metros à frente da velha, ouve um chamado.
-Maria! – Sobressaltou-se D. Susana – Você aqui...
Maria ficou ali, estática, por alguns segundos, de costas para a velha que a olhava fragmentada.
-Perdão, Maria.
Naquele momento, o coração de Maria refestelou-se em todo orgulho que ocupava seu interior, e, ao mesmo tempo, batia acelerado, tamanha surpresa que lhe acometera.
Virou-se para sua antiga patroa e, ainda sobre o pedestal da indiferença, encarou a mulher que se submetia àquele ato louvável, porém, difícil. Aproximou-se dela, lentamente.
-Fique sossegada. Não to armada, apesar de morar numa favela e ser preta. Deve ta mesmo boba de me ver aqui, não ta? Uma clínica chique dessas, e eu, uma miséria de gente perdida nesse mundo de luxo.
-Não, não diga uma coisa dessas! Eu... Eu preciso pedir seu perdão. Sabe, eu tentei tomar coragem para te procurar e... Mas eu não consegui. O meu orgulho foi superior.
-A senhora me acusou, me humilhou. Será que eu devo mesmo te perdoar? Tudo na senhora que tem de ruim é superior.
-Olha, eu preciso que me perdoe. Foi tudo culpa do meu marido. Na verdade, eu realmente quis testá-la na ocasião. O problema é que, naquele mesmo dia, o meu marido... – Pausou, muito envergonhada – Ele roubou o meu colar para acertar uma dívida de jogo.
-Então quer dizer que... Mas por que ele faria uma coisa feia dessas, gente? – Embasbacada.
-O Antonio é viciado em jogos. Ele se meteu numa encrenca, ficou desesperado. Fez o que fez, e eu, tola, inocente – Acusei você.
Maria titubeou, tentando assimilar aquela história que lhe parecia muito improvável.
-Perdoe-me por tê-la acusado injustamente, me perdoe pelas ofensas. O destino a trouxe até mim para que este perdão aconteça.
Maria hesitou por mais alguns segundos, apoiando as mãos na cintura, inquieta.
-Eu lhe pago o que for preciso. Eu lhe compro um colar como aquele. – Insistiu a velha.
Maria sentiu-se ofendida e respondeu, a altura:
-Não, D. Susana. Eu não quero dinheiro, eu não quero colar. Sabe por que?
Silenciaram-se, uma defronte a outra. Maria apossou-se da razão que lhe cabia e dela resolveu extrair uma lição. Uma lição que lhe fora ensinada há poucos minutos.
-Porque o maior presente vem de dentro da gente e não das coisas materiais. – Disse, lembrando-se das palavras puras de Zózimo - Eu perdôo a senhora pelo seu arrependimento, e não pelo seu dinheiro.
D. Susana abraçou Maria, selando a paz entre as duas.
-Veja só o meu netinho, Maria. Nasceu hoje. Será que aqueles sapatinhos caberão em seus pés?
Maria observou com doçura aquele pequeno ser. A vida que se foi, a vida que chegou. A vida. O melhor presente.
Tenham uma boa leitura! Lohan L. Pignone.
“The Red Car, o carro do momento”
Os olhos pequenos de Zózimo refletiam no vidro polido daquela vitrine. O dizer do cartaz que indicava o produto não o interessava, afinal, ainda não havia mergulhado naquele mundo fantástico das letras. Apenas a imagem era capaz de lhe revolver todos os sentimentos infantis. Seus olhos brilhavam mais do que aquele vermelho escarlate do “carro do momento”. Brilhavam de pureza, desejo, sonho. Pois aquela senhora que caminha do outro lado da rua sonha com uma aposentadoria merecida e um lar cheio de netos.
A mulher balzaquiana que atravessa a rua sonha em engravidar do homem que ama e conseguir um emprego que a valorize como profissional. O jovem que passa apressadamente pela calçada sonha em passar no Vestibular e ser alguém no futuro. E aquela criança, seis anos vividos, diante da vitrine daquela luxuosa loja de bairro nobre, sonhava em ganhar de presente aquele lindo carro de controle remoto no Natal que se aproximava.
-Vem, filho.
De mão dadas ao filho, Maria intervém naquele instante sublime que Zózimo vivia. Zózimo não pronunciou uma palavra. Apenas não queria desgrudar os olhos daquele sonho tão distante. Apesar da idade, podia enxergar perfeitamente a necessidade do dia-a-dia de sua família. E sua família era sua mãe e ele.
Aquele amadurecimento precoce consumia a criança que era. Deixou-se ser levado pela mão calejada da mãe e, ainda com o pescoço virado para trás, viu sair da loja um sorridente menino com uma caixa nas mãos, onde nela havia a figura do “carro do momento”. Ao lado do menino, seu pai, também satisfeito pela felicidade que proporcionara ao filho com aquele presente.
Lá estavam dois sonhos distantes para o inocente Zózimo: “O carro do momento” e um pai.
Subiu o morro com sua mãe e ao perceberem a presença de PMs na área, logo entraram em seu casebre, fecharam as janelas, as cortinas, e silenciaram-se num canto, aguardando o início e o fim de mais uma batalha.
E naquela noite escura Zózimo chorou, baixinho, debaixo da cama que dormia com a mãe. Precisava ser criança ao menos uma vez no dia...
Maria pôde ouvir a tristeza que brotava do coração do pequeno e sentiu uma dor profunda no peito. Quando criança vivenciou as mesmas situações e um dia prometera a si mesmo nunca permitir que seu rebento sofresse tanto quanto ela. Mas o que fazer se para alguns desafortunados a vida insiste em mergulhar no abismo? O que fazer sem um pai para aquele filho? Como fazer sem um emprego fixo?
Não sabia como agir, mas sempre soube como reagir. Reagir aos encalços da vida, às bofetadas que ela lhe acertava à luz do sol. Lutaria esforçosamente assim que raiasse um novo dia. Estava determinada a proporcionar um sorriso radiante no filho, algo que lhe recompensasse todas aquelas lágrimas. Aquele Natal seria o mais feliz da vida dele.
E lá estava a negra Maria, iluminada pelo sol daquela manhã, repleta de esperança, pois do abismo surgiu um mundo. Beijou o rosto do filho e o entregou sob os cuidados da fiel vizinha. Seguiu ladeira abaixo, rumo a mais uma casa de classe média alta na Zona Sul. Completou meio-expediente de faxina e de lá tomou o ônibus para mais um endereço requintado. Lavou, passou e poliu. Sob os olhares exigentes da D. Susana, ela trabalhava, calada e incansavelmente.
Finalizou meio-expediente. Já anoitecia quando Maria voltava, relaxada de tanta exaustão em um banco desconfortável de ônibus, para o seu morro. Apanhou o filho, cheio de saudades. Comprou pão, leite e café. A quantia que sobrou foi guardada em uma gaveta.
Deitou a cabeça no travesseiro pensando no que faria no dia seguinte.
E lá estava Maria, mais um dia, cozinhando um simples almoço para ela e o filho. Saiu em busca da labuta. Ofereceu-se à D. Alice para lhe adiantar alguns remendos. D. Alice costurava as roupas dos moradores daquela comunidade. Maria fazia de tudo um pouco.
-Muito necessitada, Maria?
-Necessitada em realizar o sonho do meu filho.
Naquele dia economizou mais um bocado. Já era noite quando sua vizinha foi lhe avisar de um telefonema. Para a grata surpresa de Maria, D. Susana havia apreciado seu trabalho no dia anterior e resolveu contratá-la como sua empregada definitiva. Maria recebeu esta notícia com lágrima nos olhos. Receberia ao final de todo mês um salário mínimo e isso era o bastante para começar a alavancar sua vida.
Amanheceu um novo dia e Maria já estava preparada para inaugurar uma nova fase de sua vida, a qual ela punha muita fé.
D. Susana tratava-se de uma patroa rigorosa, perfeccionista. Seu bom senso no que dizia respeito a limpeza e higiene jamais desaprovariam os esmerados serviços de Maria.
Naquela tarde, D. Susana tecia um lindo par de sapatinhos azuis, sentada em sua confortável cadeira de balanço.
Maria limpava os vidros da janela de seu quarto, tornando-os cintilantes à luz do sol vespertino. A mesma luz iluminava o trabalho minucioso de D. Susana.
-Você tem filho? – Indagou intempestivamente a velha senhora, sem cessar a tarefa.
-Sim, tenho sim senhora. Um menino.
-Como se chama?
-Zózimo. – Respondeu com orgulho.
-Bonito nome o do seu filho.
-Ah, brigada... É o nome de meu falecido pai.
-Já o meu neto será chamado Lucas. Dois meses... Não vejo a hora de sua chegada a este mundo. Seu primeiro par de sapatos será este.
Maria sorriu.
-É ótimo sentir a presença de uma criança. – Continuou D. Susana – Ao olhar para ela nos sentimos mais velhos e, ao mesmo tempo, nos sentimos rejuvenescidos. Meu filho cresceu rápido demais. Não aproveitou muito os sapatinhos que teci para ele, há.
Maria gostava de ouvir os devaneios de D. Susana. Apesar de aparentar austeridade, era uma velhinha simpática.
-Maria, por favor, apanhe meu estojo de agulhas dentro da primeira gaveta da minha cômoda.
-Sim senhora.
Ao abrir a primeira gaveta, deparou-se com um lindo colar de pérolas em seu interior. Seus olhos encheram-se de luz, despertando e si um imenso desejo. Pensou em tocá-lo, mas logo desistiu daquela idéia. Como queria usá-lo em seu pescoço... Talvez fosse rainha até subir o morro, quando decerto seria assaltada. Um vago pensamento torturou-lhe o caráter naquele instante. Um instante. Roubá-lo significaria um esplêndido Natal para seu filho. Poderia comprar todo o estoque do “Red Car” e ainda prepararia um farto banquete, com todas as delícias que os ricos deleitavam-se nas novelas, as quais acompanhava pela sua tv de 14’polegadas.
-Eu me enganei, Maria. Está na segunda gaveta!
D. Susana a desligou do transe. Maria fechou rapidamente a gaveta e abriu a próxima. Lá estava o que procurava. Respirou fundo e seguiu com o dia, que se findava no horizonte, trazendo a noite estrelada, que era contemplada de uma janela apodrecida por Zózimo.
-Vem dormir, Zózimo! – Ordenou Maria, do quarto.
Zózimo imaginava estradas feitas de estrelas. Estradas por onde percorreria o trenó do Papai-Noel. Tentava compreender o porque dele nunca ter visitado sua humilde casa, assim como a de muitas outras crianças daquela comunidade.
Neste instante, cruza o céu uma rajada de luz, acompanhada de um estrondo.
-Zózimo!! – Berrou Maria, desesperada.
Ela pula da cama e corre para apanhar o filho.
-Eu já disse pra não espiar da janela essa hora, Zózimo! Não vai me obedecer?
Zózimo permaneceu mudo, inclinando a cabeça em sinal de obediência. Foi levado para o quarto junto da mãe, onde repousaria seu corpo e sua cabecinha cheia de porquês. Antes de pegar no sono profundo, deduziu que talvez fosse perigoso atravessar as estradas do céu de uma favela. O Papai-Noel não podia ser achado por uma bala perdida...
Ao estar coando o café daquela manhã, Maria foi surpreendida por Zózimo, que a perguntou:
-Este ano o Papai-Noel vem me visitar, mãe?
Maria sentiu aquela ingênua pergunta tocar seu coração. Aproximou-se dele, afagou-lhe os cabelos e respondeu:
-Vai, filho. Pode confiar na mãe, viu?
Zózimo sorriu. Maria, quando criança, sempre aguardou a vinda do Papai-Noel. Escrevia-lhe cartas e mais cartas, e, no máximo, o que recebia era uma boneca de pano ou uma bola de plástico. Sua esperança foi transformando-se em ódio. Já não podia mais ouvir falarem em Papai-Noel, pois aquele bom velhinho era um homem injusto. Tantas crianças sendo agraciadas com bicicletas, patins, lindas roupas... Então, mais tarde, o ódio transformou-se em resignação.
Não queria que Zózimo a odiasse assim como ela odiou seus pais, mesmo que na inocência. Precisava, a qualquer custo, tornar aquela lenda uma realidade.
Chegou na casa de D. Susana, disposta para mais um dia de luta.
-Está demitida.
Aquela gélida recepção de D.Susana foi um baque. Maria sentiu uma passageira vertigem.
-Demitida...
-Devia fazer pior, sua... Ladra. Devia denunciá-la a polícia!
Maria reagiu.
-Como pode me chamar de ladra? Eu não roubei nada!
-Cale-se, eu não admito que jure falsa inocência! Eu sei que foi você quem roubou o meu colar de pérolas.
-O seu colar? ...
-Não seja cínica. Ontem eu fiz aquilo propositalmente, pois queria que visse o colar naquela gaveta. Eu pude notar sua reação ao deparar-se com uma jóia mais valiosa que sua própria vida! Digamos que tenha sido um teste de honestidade, no qual você foi reprovada.
-Eu não roubei, eu não admito que a senhora me acuse assim!
-Quem foi então, hein? O vento o levou? Chega! Eu não quero mais que ponha os pés aqui dentro. Saiba que a livrarei de uma queixa. Decerto já repassou o material para as mãos de algum traficante do seu morro, não quero levar essa demanda adiante. Tinha que ser favelada. Tinha que ser...
D. Susana pausou, olhando uma lágrima de inocência ou arrependimento escorrer pela face de Maria.
-Preta. – Respondeu Maria, secando a lágrima.
-Não era isso que...
-Era sim! Eu sofro na pele esse preconceito desde que me conheço por gente. Então não me venha me dizer que não era!
-Maria, eu não tenho provas, portanto eu não a denunciarei.
-Eu também não vou te denunciar não, sabe por que? Porque eu não quero que seu neto precise ir até a cadeia pra conhecer a avó racista que ele tem. Agora dá licença, eu não passo nem mais um minuto aqui.
Maria é seguida por D. Susana até a porta.
-Espere! Se eu fosse racista, não confiaria em você para trabalhar em minha casa!
Maria, já fora de casa, responde:
-A senhora nunca confiou em mim.
No ônibus, Maria não conteve seu pranto. Chorou durante todo o trajeto. Como é duro viver. Ser bom não basta. Precisamos ser açoitados na vida, testados.
Subiu o morro sem dar conversa a ninguém, em pleno desânimo. Com os olhos vermelhos chegou em casa. Lá estava Zózimo, assistindo tv.
-A tia Julia disse que já voltava e não veio, mãe. – Disse o menino, referindo-se a vizinha.
Maria não pronunciou uma palavra. Adentrou em seu quarto e fechou a porta. Zózimo percebeu que havia algo errado. Foi ele bater à porta.
-Me deixa sozinha, filho. Me deixa...
-Mas você tá triste, mãe.
-A vida é triste. – Decretou ela.
Ficou sentada, com o olhar fito na parede descascada, durante meia-hora. Não derramou uma lágrima mais. Depois se dirigiu até a cômoda, abriu uma das gavetas e dela apanhou uma caixinha. Tornou a sentar-se na cama. Abriu a caixinha e pegou, com as mãos trêmulas, o que ela encerrava.
-Tudo é para o meu filho. – Murmurou, secamente.
Véspera de Natal. Maria levantou-se cedo. Lançou um olhar terno para o pequeno, que ainda dormia profundamente. Arrumou-se com modéstia, avisou a vizinha que estava de saída e desceu ladeira, admirando alguns enfeites natalinos que pendiam nas portas das casas e nos postes. Muitos também já estavam de pé naquela manhã nublada. Logo mais seria celebrada a grande festa. Era preciso preparar o banquete, arrumar a casa para os convidados, comprar os presentes que faltavam...
Maria tomou o ônibus, que por sinal não estava tão lotado como nos outros dias. Sentou-se ao lado de uma mulher acanhada, de pele clara e olhos fundos. O suor corria-lhe pela pele. Secou a testa com o dorso e suspirou.
-Sente-se bem, moça? Se quiser pode sentar aqui, pra janela... – Disse a mulher ao seu lado no assento.
Maria volveu-se para a mulher e respondeu que estava bem, grata pela sua preocupação.
-Este calor aumenta cada dia mais, não acha? Será esse aquecimento global? – Continuou a mulher, puxando assunto.
-Só pode...
-Ah... – Gemeu - Estou indo comprar o presente do meu filho. Esse mês foi tão puxado que nem tempo eu tive pra fazer compra de Natal, sabe. E como o dinheiro também é contado, só vai dar pra comprar uma lembrança pro meu menino. Mas o presente dele é obrigatório. Ele diz que é o ultimo brinquedo que deseja brincar antes de morrer... Mas ele não vai morrer. – Disse, com os olhos marejantes.
Maria foi surpreendida por aquele verbo tão temido: morrer.
-Mas morrer por causa de que?
-Agora ele está preso numa cama de hospital, descansando após uma dura sessão de quimioterapia. Ele tem câncer.
Maria sentiu uma pontada de dó em seu peito. Câncer... Que palavra medonha, feia. Criança não combinava com isso. Tudo relacionado à criança era colorido, alegre e bonito.
-Se eu pudesse compraria toda a cura do mundo para ele, mas... Pelo menos ele merece ter um Natal feliz.
-Se Deus quiser, e Ele quer, vocês terão um Natal milagroso.
-Deus... Onde estará Deus neste momento? – Blasfemou a sofredora mãe.
Silenciaram-se para um instante de reflexão.
-Prazer, meu nome é Rosana.
-Eu sou Maria.
As duas conversaram durante um bom tempo enquanto o ônibus seguia seu trajeto. Desceram juntas, no mesmo ponto. Juntas rumaram até uma loja de brinquedos. Alcançaram a calçada e, subitamente, viram-se envolvidas em uma balbúrdia. Sirene da polícia, gritaria. A perseguição estendia-se. O ladrão se viu cercado. Acuado, ele agarra uma pessoa pelo braço e a ameaça com uma arma na cabeça.
-Se chegarem perto, eu mato essa mulher! – Ameaçou o jovem e desorientado rapaz.
Rosana caiu em desespero nas mãos daquele rapaz. Era a refém. Maria afastou-se, tão chocada quanto a vítima. A policia aproximava-se devagar. Tentou negociar, em vão. O rapaz exigiu um carro, grana; o tempo passava, Rosana já não agüentava mais. O rapaz sussurrou no ouvido dela que a mataria. Instintivamente, pensando em seu filho, ela lhe acerta um golpe brusco, livrando-se de suas mãos. Ao correr em direção a policia, ela ouve um estalo que colocaria um ponto final na história de sua vida. O tiro atingiu-lhe em cheio, atravessando-lhe o tórax. Sem titubear, a policia disparou contra o rapaz, matando-o. Rosana caiu agonizante na calçada. Maria correu até ela, em meio a grande massa. Alguns policiais tentaram afastá-la de qualquer maneira, mas Maria ainda teve tempo de ouvi-la murmurar, com um tênue riso nos lábios, no ultimo suspiro:
-Agora sei onde está Deus...
Revirou os olhos. Maria foi arrancada dali, aos prantos. Disse ser a prima de Rosana e acompanhou o corpo até o IML. Entrou em contato com uma irmã da vitima através de um número de telefone encontrado na bolsa dela.
A tarde já caía quando Maria deixava o IML. Andava pelas ruas sem caminho traçado. Parou em frente a uma enorme loja de brinquedos, a qual ficaria aberta até as dezenove horas por conta do exorbitante movimento para compras. Arrasada, ela entra na loja e compra um dos brinquedos mais caros, pagando à vista. Em seguida, Maria segue para uma clínica na Zona Sul; uma a qual Rosana havia comentado consigo no ônibus. Lá procura por um menino de oito anos, chamado Leandro. Uma enfermeira a leva até o quarto do paciente.
-Ele está sozinho no momento. Seu pai precisou sair às pressas e pediu que ficássemos atentos a ele. Você é parente dele?
-Não, eu... Eu só sou uma amiga da mãe dele. – Disse Maria, considerando aquele breve momento de companhia de Rosana uma eterna amizade.
-Importa-se que eu fique aqui também?
Ao entrar no quarto, Leandro, ainda sonolento, dirige um olhar vazio à Maria. Ela caminha até ele com uma caixa nas mãos. A enfermeira permaneceu observando-os da porta.
-Quem é você? – Perguntou ele, baixinho.
-Eu sou Maria. E esse presente... – Ela olha para a caixa – Esse presente é teu. Feliz Natal, menino.
Maria prendeu o choro, enlaçando um nó na garganta. Era inaceitável assistir a uma cena daquelas. Uma criança, assim como Zózimo, que deveria estar esbanjando vida por todo canto. Uma criança sem cor, lívida, como se a cada suspiro deixasse escapar uma parcela considerável de suas forças, sua vida. Uma criança, agora órfã de mãe.
O menino, que tinha a cabeça completamente raspada, desembrulhou o presente e, ao notá-lo, fez que não gostou.
-Minha mãe já vai me dar um desses. – Sibilou, ao estar com o Red Car nas mãos.
-Foi sua mãe que pediu pra trazer, ela, ela... Ela precisou sair. – Mentiu – Ela disse que esse carro de controle remoto era o que você mais queria, não era?
Ele fez que sim com a cabeça.
Maria estava muito abalada e resolveu sair daquele quarto antes que a angústia lhe forçasse a derramar lágrimas diante dele. Olhar nos olhos daquela criança cortava sua alma.
O menino sentiu-se agradecido e a deteve, notando seu semblante caótico:
-Você parece nervosa. Aconteceu alguma coisa com a minha mãe?
Uma lágrima clara escorreu pela face negra de Maria. Lembrou-se de Zózimo e de como ele era saudável apesar dos pesares. Pensou em como seria feliz o seu Natal! Tantas pessoas passando por dificuldades tão superiores a sua... Seria injusto blasfemar ou praguejar contra a vida.
-Por que você tá chorando, Maria?
-Choro porque... Porque eu sou uma boba mesmo, é isso. Você é um menino lindo, igual ao meu.
-Você tem um filho, Maria?
-Tenho. O nome dele é Zózimo, ele tem quase sua idade. Quer que eu o traga aqui pra vocês brincarem juntos?
-Quem ia querer brincar comigo? Eu sou um doente. Eu nem tenho amigo.
-Agora você tem. – Afirmou, secando a lágrima em meio a um sorriso.
Ao chegar em casa, Maria abraçou Zózimo e disse que o Papai-Noel havia deixado um presente muito especial para ele em um lugar secreto. Entusiasmado, Zózimo mal pôde dormir naquela noite, de tanta ansiedade. No dia vinte e cinco de dezembro, ainda pela manhã, Maria o levou até a clínica. De início Zózimo estranhou o local.
Maria procurou por Leandro. Ele estava no jardim, junto do pai, que ainda não tivera a coragem de lhe revelar sobre a morte da mãe. Maria e Zózimo foram encaminhados por uma enfermeira até o mesmo jardim.
-Cadê o meu presente, mãe? – Indagou Zózimo, já impaciente.
Maria sorriu e apontou para Leandro. Leandro e Zózimo entreolharam-se pela primeira vez. Sob a luz amena do astro-rei, Zózimo e Leandro foram apresentados. Leandro explodiu de felicidade. Agora tinha com quem dividir seu tempo ocioso. Zózimo foi conquistado pelo carisma de Leandro. Ambos tornaram-se amigos pra valer em questão de minutos.
Este foi o presente de Natal de Zózimo. Um presente de preço inigualável, mais importante do que qualquer carro do momento. Um presente para toda vida: A vida.
Os dias passavam, irrompeu um novo ano. Zózimo e Leandro sempre brincavam juntos no jardim da clinica. Zózimo consolava lentamente o pequeno coração de Leandro, que por sua vez, quase entrou em crise ao saber da morte da mãe. Quando havia a permissão do médico, o pai de Leandro os levava para passearem na praia e tomarem sorvetes juntos. Em pouco tempo já faltavam as rodas dianteiras do Red Car e sua linda lataria vermelha já colecionava arranhões e amassos. O que era um Red Car diante daquela amizade sem fronteiras?
Mas até o Paraíso necessita da inocência de uma criança. E, dois meses depois, Leandro foi requisitado por Deus. Sua doença tornara-se incurável e o arrebatara da vida, da vida de sua família, da vida de seu melhor amigo.
Após receber aquela noticia, Zózimo pareceu esvair-se de tanta tristeza. Havia perdido o seu melhor presente de Natal.
O corpo estava sendo velado na própria clinica onde ficou internado. Zózimo fez questão de ir despedir-se de seu amigo. Implorou para que Maria o levasse até o velório. Maria atendeu suas súplicas. Na clinica, a tristeza tomava conta de todos. Até mesmo os funcionários daquele recinto já haviam tomado afeto por aquela simpática criança. Zózimo orou baixinho diante do caixão de Leandro e fez um pedido a Papai do céu, conforme o próprio referia-se. Pediu que um dia pudesse reencontrar-se com seu presente de Natal mais querido.
Já afastados do velório, Maria envolveu seu filho nos braços e o confortou:
-Papai do céu vai cuidar bem dele.
-Mãe... – Disse, olhando-a com pesar– Eu nunca mais vou ter um presente de Natal tão bom. Nem que o Papai Noel me dê mil carrinhos e videogames no próximo Natal. Eu descobri que o maior presente vem de dentro da gente e não das coisas das lojas.
Zózimo retornou ao velório. Maria ficou a observá-lo partir. “Toda morte nos deixa uma viva lição”, ela pensou, refazendo-se da comoção que lhe tomava aos poucos. Resolveu ir até o banheiro lavar o rosto. No caminho, surpreende-se ao encontrar D. Susana, que, bloqueada por um enorme vidro, tinha os olhos fitos no berçário.
Parou, hesitante. Aquela senhora a sua frente um dia a humilhou com frialdade; pessoas de sua estirpe teriam direito ao perdão? Não, recusar-se-ia a encará-la.
Andava apressada quando, já a uns dois metros à frente da velha, ouve um chamado.
-Maria! – Sobressaltou-se D. Susana – Você aqui...
Maria ficou ali, estática, por alguns segundos, de costas para a velha que a olhava fragmentada.
-Perdão, Maria.
Naquele momento, o coração de Maria refestelou-se em todo orgulho que ocupava seu interior, e, ao mesmo tempo, batia acelerado, tamanha surpresa que lhe acometera.
Virou-se para sua antiga patroa e, ainda sobre o pedestal da indiferença, encarou a mulher que se submetia àquele ato louvável, porém, difícil. Aproximou-se dela, lentamente.
-Fique sossegada. Não to armada, apesar de morar numa favela e ser preta. Deve ta mesmo boba de me ver aqui, não ta? Uma clínica chique dessas, e eu, uma miséria de gente perdida nesse mundo de luxo.
-Não, não diga uma coisa dessas! Eu... Eu preciso pedir seu perdão. Sabe, eu tentei tomar coragem para te procurar e... Mas eu não consegui. O meu orgulho foi superior.
-A senhora me acusou, me humilhou. Será que eu devo mesmo te perdoar? Tudo na senhora que tem de ruim é superior.
-Olha, eu preciso que me perdoe. Foi tudo culpa do meu marido. Na verdade, eu realmente quis testá-la na ocasião. O problema é que, naquele mesmo dia, o meu marido... – Pausou, muito envergonhada – Ele roubou o meu colar para acertar uma dívida de jogo.
-Então quer dizer que... Mas por que ele faria uma coisa feia dessas, gente? – Embasbacada.
-O Antonio é viciado em jogos. Ele se meteu numa encrenca, ficou desesperado. Fez o que fez, e eu, tola, inocente – Acusei você.
Maria titubeou, tentando assimilar aquela história que lhe parecia muito improvável.
-Perdoe-me por tê-la acusado injustamente, me perdoe pelas ofensas. O destino a trouxe até mim para que este perdão aconteça.
Maria hesitou por mais alguns segundos, apoiando as mãos na cintura, inquieta.
-Eu lhe pago o que for preciso. Eu lhe compro um colar como aquele. – Insistiu a velha.
Maria sentiu-se ofendida e respondeu, a altura:
-Não, D. Susana. Eu não quero dinheiro, eu não quero colar. Sabe por que?
Silenciaram-se, uma defronte a outra. Maria apossou-se da razão que lhe cabia e dela resolveu extrair uma lição. Uma lição que lhe fora ensinada há poucos minutos.
-Porque o maior presente vem de dentro da gente e não das coisas materiais. – Disse, lembrando-se das palavras puras de Zózimo - Eu perdôo a senhora pelo seu arrependimento, e não pelo seu dinheiro.
D. Susana abraçou Maria, selando a paz entre as duas.
-Veja só o meu netinho, Maria. Nasceu hoje. Será que aqueles sapatinhos caberão em seus pés?
Maria observou com doçura aquele pequeno ser. A vida que se foi, a vida que chegou. A vida. O melhor presente.
11 comentários:
Nem sei o que dizer...estou tão triste que penso ser este o maior elogio a um escritor do seu calibre...mais tarde eu volto e te falo mais, preciso refletir...sobre o que é viver, afinal.
Ai, depois que eu parar de chorar eu volto... Bjs...
Caramba, que triste! Só porque não me fez chorar no primeiro post você quis me testar no segundo? rsrs.. meu coração de pedra quase cedeu, mas não dessa vez. Tente novamente, kkkk.
Adorei o texto. Muito bonito. Por um momento eu achei que a Maria tivesse mesmo roubado o colar, eita. Ainda bem que não.
Bjos.
Que lindo texto,que bela escolha de palavras e situações,gostei muito,confesso que meus olhos se encheram de lágrimas,meu filho me viu e perguntou se eu estava triste.rsrsrs
Parabéns!!!
Nossa amigos! rsrs Vamos sorrir! Obrigado a todos os elogios, mesmo, e pode deixar: Na próxima eu tento ser menos fúnebre rsrs. Caramba, que rio de lágrimas! rsrs
Obrigado mais uma vez!
A TRISTEZA SÓ VEIO PORQUE VOCÊ CONSEGUIU NOS TRANSPORTAR PARA A REALIDADE DE SUA FICÇÃO.iSSO É QUE É AUTOR "BÃO"!!!
rsrsrs, obrigado Andrea, fico mto feliz né, em saber q a mensagem foi transmitida com sucesso. Se ela modificar um pouquinho que seja a vida de alguém, pra melhor, claro, isso é o bastante.
Bjão!
Ai, eu tô com a Paula Renata, eu tb achei que a Maria tinha mesmo pego o colar (que feio) e quer saber? Antes ela tivesse pego, melhor que perder o colar no jogo (bem feito pra Susana). 1x0 pra Maria!!! 10x0 pro Lohan!!!! bjs e não me faça mais chorar, você sabe quantos chocolates eu comi por causa do seu texto? Aff...
Maravilha!Lohan vc é ótimo...
Parabéns cara, comovente!!!
òtimo escritor Lohan, Parabéns!!
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