quinta-feira, 30 de julho de 2009

Recordações de uma insone - Uma releitura do conto "Missa do Galo", de Machado de Assis.


Mais uma noite que se esvaece lentamente, e junto das horas, as lembranças que nunca mais me deixaram sobre um Natal de há muito tempo atrás, quando eu era então uma balzaquiana casada, traída e entediada, mas ainda assim com o coração cheio de uma jovialidade reprimida, de uma paixão platônica e contida que naquela ocasião me foi possível manifestar ao meu objeto de desejo e afeto, o estudante Nogueira, hóspede em minha casa, aparentado do meu marido e que esperava na sala de visitas por seus amigos, para assistir pela primeira vez, a Missa do Galo, na côrte.

Sentia-me irrequieta em minha cama fria. A ausência de Menezes me aliviava. Casara-me sem amor, aos vinte e sete anos. Diziam que eu tinha sorte por conseguir um marido já velha. Mesmo assim, sentia-me humilhada por ter de suportar calada as traições, sabendo que era alvo dos comentários maldosos de todos os vizinhos e conhecidos, já que ele não fazia muita questão de ser discreto com suas saídas cada vez mais constantes. Eu, por minha vez, comportava-me com dignidade e uma fingida indiferença, me entregando a minha mais constante e calorosa companhia - os folhetins - que preenchiam o meu tempo ocioso e aplacavam a minha solidão.
No entanto, esta paisagem sem colorido ou ventos fortes que resumia a minha vida adquiriu novos tons e o perfume de flores recém abertas com a chegada do jovem à minha casa. Seu frescor juvenil, seus olhos límpidos, curiosos e tímidos; o cheiro de nozes que sua pele emanava quando saía do banho.... frutos da nogueira apreciados nas festas natalinas, madeira boa para os móveis, estava agora sendo cultivado no meu jardim. Nogueira...jamais esqueci o seu nome... e ele é quem estava no meu coração, naquela véspera de Natal sem alegria , me embalando os pensamentos na cama fria.

Resolvi descer para ter com ele. Àquela hora minha mãe e as criadas dormiam. Vesti um penhoar branco longo, as chinelas de alcova de cetim também brancos e de bicos finos, que me alongavam a silhueta e me deixavam mais altiva e feminina, e pus-me a descer os degraus da escada escorregando lentamente as pontas dos dedos sobre o corrimão de cedro lustrado. Quando terminei o último lance, percebi que um livro pendia de suas mãos agora inquietas, enquanto ele me observava sentado em um poltrona na sala de visitas, de frente para mim. Aproximei- devagar e suavemente e sentei-me no canapé ao seu lado. Estava lindo num terno de brocado novo. Presente dos seus pais, vindo de Mangaratiba. Os cabelos penteados para trás, negros e lustrosos acentuavam seu olhar adolescente sob a penumbra da luz do abajur. O silêncio era quebrado pelos ponteiros do relógio na parede, presente de casamento de um tio distante. Perguntou-me preocupado se havia perturbado meu sono fazendo barulho ou por causa da luz. Respondi-lhe que não, e logo emendei um assunto sobre a minha insônia. Descobrimos que a tínhamos em comum.

- Se perco o sono não consigo mais recobrá-lo e dormir, mas na verdade, sei que ainda é cedo. Não deveria ter-me deitado antes das vinte e uma horas. Talvez por ser Natal, sinto-me um pouco ansiosa, ou talvez, seja um traço da velhice que já começa a dar seus sinais.
-Quem? A senhora, velha? De jeito nenhum Dona Conceição.
Tal foi a veemência de sua afirmação que me senti corar e o sangue correr quente em minhas veias, deixando-me em brasa os pontos mais sensíveis do corpo, como agulhas que me espetassem sem intervalo ou interrupção; as pernas ficaram trêmulas e um nó estranho na boca do estômago se formou... uma manifestação involuntária de prazer inundou o meu corpo normalmente inanimado, mesmo aos toques mais ousados de meu marido. E o meu nome dito por seus lábios frescos como uma amora apetitosa pedindo para ser arrancada do pé e saboreada de olhos fechados e...

_ Dona Conceição, a senhora está bem? Pareceu-me por um instante estar nauseada e a ponto de desfalecer.
Ele tocou meu cotovelo com a urgência de quem quer ajudar um doente prestes a expirar. Ambos nos erguemos repentinamente passando para lados opostos do aposento. Meu Deus! Respiro fundo e tento voltar a mim enquanto ecoa sua voz no meu ouvido...Conceição, concepção, origem de tudo... esqueço do dona e penso cheia de culpas cristãs na mulher que ele nem imagina que o deseja, como uma criança espera com água na boca por um doce após o jantar.
Havia uma certa tensão no ar. Reparei que ele olhava para as minhas chinelas e não sabia ao certo onde colocar as mãos... No que será que pensava? Dei-me conta de que éramos quase da mesma altura, que seus ombros eram espadaúdos e que provavelmente envolveriam por completo o meu torso fino entre os seus braços. Olhava para o rosto de um menino e via o corpo viril de um homem pronto para amar. Assustei-me com a intensidade do meu próprio desejo... Até então, nunca imaginei ser capaz de sentir o que estava sentindo, e também não sabia como agir, o que fazer, o que dizer. Quebrei o silêncio mais uma vez.

- O que você está lendo?
Ele segurava o livro em uma das mãos, um dos dedos dentro da página onde parara quando cheguei - armadura de proteção.
- Estou lendo " Os Maias", do senhor Eça de Queirós. A senhora gosta de ler?
- Sim, muito. Também gosto de romances. Já leu algum do Dr. Macedo?
Começou a citar alguns livros - perguntou-me o que eu estava a ler.
-"A letra escarlate", do senhor Nathaniel Hawtorne. Foi traduzido recentemente para o português. Fala sobre um amor impossível que consegue vencer barreiras quase intransponíveis.
Disse isso com pesar e tristeza na alma, como se estivesse falando sobre a minha história, mas sem um final feliz. Olhou-me com admiração, respeito e uma certa insegurança da inexperiência. Resolvi naquele momento, senhora da situação novamente, sentar-me à mesa, e o convidei para que fizesse o mesmo apontando-lhe a cadeira defronte a minha. Ofereci-lhe um cálice de licor de jenipapo, ao que ele se predispôs a nos servir. Nossos cálices tocaram-se, assim como nossos dedos fechados em volta das hastes de cristal. Esse toque efêmero parece ter durado o choque de uma eternidade. Provamos do licor no mesmo instante, e enquanto o saboreava cerrei os olhos, e quando novamente os abri, flagrei-o analisando as linhas do meu pescoço, o balanço dos meus cabelos pesados e repentinamente me senti linda, como nunca fui. Senti em seus olhos a curiosidade e a chama de um desejo súbito e novo, de quem percebe o sexo oposto pela primeira vez. Senti-o estremecer por ser pego em um momento íntimo de enaltecimento visual - eu mesma já não conseguia mais disfarçar o que estava latente dentro e fora de mim. Ao mesmo tempo começaram a pesar-me os pés e senti-me incapaz, covarde e sem vontade de evitar todas aquelas sensações. Cabia somente a mim dar continuidade ou um ponto final àquela situação.
Pensei nas horas, na diferença de idade, no sono leve da minha mãe, no Menezes com a amante na cama, no amor adolescente que nunca vivi, na impossibilidade de ser quem eu não podia ser. Senti-me derrotada, culpada, ridícula, velha, insegura, reprimida em minha vontade de tocá-lo por ele ser tão jovem . O que fazer afinal? Respirei fundo novamente...respirar é viver ou simplesmente sobreviver. Disse-lhe de supetão que gostaria de ter sido uma rainha poderosa, como Cleópatra talvez; dona de um império e do seu próprio destino, com marcas de um orgulho soberano, do mesmo jeito que estava retratada no quadro da parede, o qual eu nunca gostei. Talvez este fosse o real motivo para eu não suportar olhar para ela. A sua imagem me lembrava a vida de convenções sociais que eu era obrigada a viver. Só agora me dava conta de que ela escolhera a sua própria trajetória, mesmo obrigada a viver restrita e prisioneira de certas convenções impostas a uma rainha.
Este comentário quebrou um pouco o clima entre nós. Trouxe-nos de volta a minha realidade de senhora casada e sua parente emprestada. Resolvi então dar um basta a nossa conversa com uma segunda confissão:

- Gostaria de ter sua idade novamente e estar com o senhor aqui, neste mesmo lugar.
Antes que ele pudesse se manifestar alguém gritou o seu nome lá fora. Ficamos mudos por intermináveis segundos. Seus olhos me fitavam indecisos, indagadores e quase incrédulos.
-Vá. A Missa do Galo o espera.
Levantamos juntos. Desta vez sem hesitar, toquei-lhe o rosto até o queixo com uma das mãos espalmadas. Virei de costas e me dirigi às escadas.
Antes de abrir a porta ele me fitou com um tênue sorriso no canto dos lábios. Fiquei parada esperando-o fechar a porta atrás de si. Terminei de subir, entrei no meu quarto, tirei as chinelas, o penhoar e deitei-me novamente.
Por incrível que pareça, minha cama estava quente, e pela primeira vez consegui dormir após perder o sono. Estava leve como uma pluma; sentia-me em paz e aliviada. E todas às vezes que me sinto insone, recordo-me desta noite e logo depois o sono me invade... é o que está acontecendo agora, mais uma vez.

FIM

11 comentários:

Lohan disse...

Que ''remontagem'' perfeita! Pensei que vc fosse empregar um final bem diferente do conto original, fazendo com que ambos consumissem aquele desejo. Lygia F.Telles já remontou este conto, se não me engano, e já foi até apresentada uma peça teatral baseada na versão dela. Dizem ser comica, eu nunca assisti. Sem dúvida alguma, este é um dos melhores contos de Machado. Mais uma vez, congratulations, Andrea! Vc possui a sutileza machadiana!

Andréa Amaral disse...

Obrigada meu querido. Quem me dera possuir tal sutileza.Você sabe que se tem uma coisa que não sou é sutil.kkkk.Nesse dia "baixou" um espírito no meu "eu lírico", acho que foi isso.

Camilíssima Furtado disse...

Andréa, amei esse texto!!! Essa versão de D.Conceição é mais feminina e sexy do que eu podia imaginar. A sutileza de palavras, de gestos e as metáforas foram muito bem empregadas. O final foi perfeito, já que a sensualidade velada faz parte do conto original. Ficou muito fiel à ideia de recontar a história sobre um prisma feminino. Nem preciso dizer, seus textos são sempre um deleite. Meu trecho favorito já está no Twitter. Bjo!

Sim! Podemos pensar! disse...

Fantástico Andrea!
Você brinca com as palavras!
Gostei muito desta versão,como sempre mandando bem!
Parabéns!!!

Andréa Amaral disse...

Vocês são maravilhosos. Quem agradece sou eu pelo entusiasmo com que vocês abraçaram a idéia do blog, sempre dando força a todos que escrevem indistintamente.

Alexandrina Areias disse...

Olá amiga Andréa!
Adorei este texto, ou melhor, este (re)conto!!! Não conheço, o original, mas este seu texto é simplesmente fabuloso! Adoro esta sua maneira de escrever... e os meus sinceros Parabéns por esta sua grande vocação para a escrita...
Continuação de bom fim de semana!
Beijos,

AA

Andréa Amaral disse...

Oi Alex, obrigada por estar sempre me prestigiando em diferentes endereços.Você é uma grande amiga.Bjs.

Ernesto disse...

Gostei bastante Andréa, excelente!!!

piedadevieira disse...

Oi,Andréa. Sabe, tive essa ideia também, há algum tempo atrás, de colocar a minha versão do conto machadiano no blog.Foi um trabalho nosso na faculdade, são olhares diferentes. Amei o seu, brevemente vou postar o meu. Beijos.

Andréa Amaral disse...

Para Ernesto: obrigada por ter lido meu texto e pelo elogio.
Para Piedade: por favor, ponha sua versão no blog, faço questão de lê-la, pois sei que vindo de você certamente será maravilhoso.

Unknown disse...

Nossa achei muito interessante esta versão... por vezes tive que ler este texto e achava uma chatice!(sou aluna do curso de Letras) Ao ler esta tua versão através da percepção de D. Conceição, me deliciei, pude sentir e compreender todos os sentimentos que ali foram expressados... pude sentir na pele o desejo dela por ele e torci de corpo e alma que ela conseguisse consumar seu desejo. E ao mesmo tempo, ao me deparar com o mesmo fim, fiquei satisfeita sem ficar decepcionada... Ameiiiiiiiii.. Muito Bom Parabéns!!!