("Criança geopolítica assistindo ao nascimento de um
novo homem", Salvador Dalí, 1943).
A pintura surrealista do espanhol Salvador Dali, “Criança geopolítica assistindo ao nascimento de um novo homem”, datada de 1943, receberá, no decorrer desse texto, uma interpretação genuína e minuciosa, tendo alguns aspectos embasados no contexto histórico-social em que esta obra foi realizada.
A escolha deste quadro pode ser justificada pelo nosso instantâneo interesse pela corrente surrealista. Tal movimento artístico nos possibilita uma série de interpretações repletas de criatividade. Apesar de ir além do real, a historicidade está inculcada em suas representações, o que o torna mais fascinante.
A princípio, utilizamos uma estratégia, a qual denominamos “o primeiro olhar”. Esta prática nada mais é do que a extração da primeira impressão da pintura. Logicamente, nossa percepção inicial não permaneceu estratificada. Foi preciso dispor de uma atenção delicada nos detalhes do plano visual, detectando cada “ser” contido naquela tela. Ademais, observamos alguns traços que determinavam o posicionamento das figuras ali representadas, bem como a harmonia das cores utilizadas pelo pintor.
O próximo passo foi interpretar o motivo da colocação daquelas figuras, assim como suas posturas. De acordo com nossa visão, cada elemento naquele quadro fazia parte de um grande contexto (ainda a ser dito), como se fossem letras que, aglutinadas harmoniosamente, formaria um texto. E o que é uma pintura senão um belo texto imagético?
Já no plano visível, mergulhamos nas entrelinhas daquele texto surreal, permitindo que nossos corpos se afundassem, sem receios, sem limites. O processo de desenvolvimento do cerne da nossa interpretação foi intenso, e muito prazeroso, resultando na leitura dos parágrafos posteriores.
Tomemos como ponto de partida o foco central do quadro: Um planeta Terra aparentemente plástico, cujo meio é rasgado vorazmente por um homem que tenta libertar-se daquela clausura. Sob o planeta, um pano branco manchado por um liquido vermelho que parece ser sangue, causado pela abertura. Sobre o mesmo planeta, um objeto esfíngico e sombrio. Apontando para um dos continentes do astro, um ser aparentemente feminino, tendo a seus pés uma criança que parece muito assustada.
Ilustrado esse ponto, vejamos agora o plano invisível: O artista estaria calcado numa metáfora do nascimento, uma vez que o planeta, denotando um formato oval, assemelha-se ao útero materno. Enquanto o homem, o “ser nascente”, estaria lutando para romper aquela placenta invisível, sem sequer sofrer uma interferência auxiliadora da mãe Terra, haja vista sua deformidade e abatimento.
Observando, pois, a política geográfica do planeta, percebe-se que o homem nasce justamente do continente norte-americano, talvez pela força que ali pulsava – A força capitalista dos Estados Unidos da América.
Aos poucos vamos expondo nossa visão, tentando apresentar a interação de todos os signos do texto imagético. Acreditamos que, a figura demonstrada no lado direito da imagem seja uma mulher, baseando-se em sua ligeira semelhança estética e na criança que se protege em suas pernas. Ela, por sua vez, aponta para o planeta, tal como Deus e Adão foram representados na Capela Sistina, por Michelangelo. Diante dessa comparação, essa figura pode ser constituída como divina, ou, a responsável pela criação da Terra. Ou seja, a própria criadora estaria assistindo a destruição de sua criação. Isso já nos levaria à idéia renascentista, cuja temática principal era a sobreposição da razão humana sobre as questões divinas. Mas não foi nesta possibilidade que mergulhamos a fundo.
Retomando nossa linha de raciocínio, vejamos, agora, sob uma ótica contextual histórica: A suposta mulher aponta, especificamente, para o continente europeu, o qual manteve uma hegemonia político-social até o fim da Segunda Guerra. Diante dessa decadência européia no término da guerra, podemos firmar um contraste em relação ao homem que rompe no continente norte-americano. Esse contraste pode ser caracterizado por dois fenômenos naturais da vida: O nascimento, representado na América, e a morte, simbolizada pela Europa.
Ainda em relação à Segunda Guerra Mundial, nós podemos destacar outro traço marcante na pintura de Dali: No extremo norte do continente africano, observa-se o pender de uma lágrima límpida. Aquela lágrima representaria a tristeza do mundo envolvido em tão terrível guerra. É válido lembrar que a África servira de palco para muitos combates naquela guerra, afinal, muitos de seus paises permaneciam colonizados pelos europeus e americanos.
O sangue que escorre com o processo de nascimento do homem estaria representando as trágicas conseqüências da guerra, aliás, podemos ir mais longe – O sangue mostraria o quanto foi preciso para que aquele “poderoso ser” fosse gerado; quantas lutas, destruições e mortes foram necessárias para resultar no nascimento de uma nova potência mundial.
Na parte inferior do lado direito, observa-se uma criança, agarrada aos pés da suposta mãe. Esta criança, devido a sua aparência de terrível espanto pelo o que vê, proporciona uma série de indagações por parte do receptor. No entanto, a interpretação mais cabível à nossa linha de raciocínio é a seguinte: A criança teria sido denominada no titulo como geopolítica, pois, devido a todas as atribulações da guerra, a geopolítica mundial estaria sendo fracassada, isto é, precisaria se reformular e nascer novamente. A geopolítica fracassada, representada pela criança, assiste àquele surgimento do novo homem com grande pavor. Além disso, esse pequeno ser figuraria a fragilidade do mundo diante do devastador poder que nasce no Novo continente; um novo homem, (como bem empregou Dali no título da pintura) movido pelos interesses capitalistas. Logo, a criança representaria um mundo refém de toda uma conspiração destrutiva e dominadora que partiria do forte homem, ou forte EUA.
Agora, nos transportando para o plano de fundo da pintura, podemos deduzir que um deserto é o ambiente que abrange todo o foco figurativo principal. No lado direito do quadro, enxerga-se ao longe a figura de uma pessoa, provavelmente acenando um “adeus” para algo. O que seria? Dentro de nossa concepção, percebemos que possa ser um “adeus” ao poder hegemônico do Velho Mundo, uma vez que a figura está posicionada no lado do hemisfério oriental do planeta Terra, o qual engloba a maior parte do continente europeu, além de outros.
Ainda no plano longínquo da pintura, com base em uma ampliação, observamos, agora no lado esquerdo, uma figura aparentemente vestida de vermelho e preto, o que remete, psicologicamente, à personagem satânica. Cremos que aquela presença maligna no lado do hemisfério ocidental do planeta Terra poderia ser justificada. Talvez seja porque o surgimento do poder capitalista esteja voltado para os Eua. O sentimento capitalista remete a busca incessante do poder, baseada na árdua competição. Essa questão é retratada de forma magistral no filme “O advogado do diabo”, dirigido por Taylor Hackford. Al Pacino, que interpreta o diabo em forma humana, oferece todo seu mundo de belezas e suntuosidades efêmeras a um jovem talentoso advogado, provocando sua vaidade e levando-o para a destruição. Assim estaria representado o capitalismo no quadro de Dali: O próprio Satã.
É interessante apreciar cada objeto dentro da tela, tentando aplicar uma significação àquilo. E assim fizemos em relação ao a uma figura que nos remete a idéia de um obelisco, no canto direito da pintura, ao longe.
Ora, obeliscos eram, no Antigo Egito, representações de poder. Dentro do desenvolvimento da nossa interpretação, essa figura se encaixaria perfeitamente, uma vez em que haveria, incutido no foco central, uma demonstração acalorada da mudança geográfica do poder.
Por fim, analisamos o objeto que parece ser uma tenda, a qual paira sobre o mundo. Algo muito enigmático, considerado por nós o grande mistério da pintura. Nos sentindo como Édipo diante da Esfinge, arriscamos sermos devorados e formamos uma interpretação, na tentativa de desvendá-la, evitando, claro, fugir do que já havíamos nos baseado. Quem sabe não nos coroam como reis, tal qual Édipo?
Aquele objeto de bordas pontiagudas seria uma representação onírica. Segundo Freud, no seu maravilhoso livro “A interpretação dos sonhos”, sonhos relacionados a cavidades ou a coisas que se abrem como uma flor, estão ligados ao órgão sexual feminino. Já o órgão sexual masculino seria representado por objetos pontiagudos. A cor preta estaria voltada para o negativismo. Ou seja, atentando para aquele dado objeto na pintura, imagina-se essa possibilidade, que “só Freud explica”, como muitos costumam dizer.
Como relacionar essa explicação com o que já foi deduzido? Ora, a pintura está envolta num sentido de nascimento. E nada mais coerente do que a junção de representações oníricas dos órgãos feminino e masculino em uma mesma figura. Figura esta que, por conseguinte, está acima do mundo, como se fosse a responsável pela sua geração. Estaria ela impregnada de um colorido negro e uma aura sombria, pois, devido à destruição causada pelo homem, estaria incidindo em si o reflexo negativo de sua criação.
O artista teria espalhado em sua pintura figuras de significações similares (A mulher criadora do mundo – o objeto que paira sobre o mundo como responsável pela sua criação; o poder representado pela força do homem que rompe do interior do mundo – o poder representado pelo o que aparenta ser um obelisco), assim como, inteligentemente, teria apresentado diversas antíteses, como: nascimento e morte, criança e adulto, o novo e o velho...
Enfim, trata-se de um trabalho genial de Salvador Dali, que permite a concepção de diversas leituras. Nossa interpretação foi reforçada pelo ano em que foi datada esta obra de arte, 1943. Neste ano, ocorria-se a triste Segunda Guerra Mundial, que veio a entrar em desfecho dois anos depois. Para finalizar, um rico acréscimo a nossa interpretação: Uma enigmática previsão do francês Nostradamus, enfatizando, misticamente, essa visão sobre o quadro de Dali. Agora, leitor, cabe a você a reflexão acerca desse mistério além do surreal.
“Ceux qui estoient em regne pour scavoir,
au roial change deviendront apouvris,
uns exilez sans apuy, or n’avoir,
lettrez et lettres ne seront à grand pris.”
“Os que estavam no reino por saberem,
pobres serão pelo cambio Real,
exilados sem ouro nem apoio,
os letrados bem pouco valerão.”
(Centúrias e presságios acerca da Segunda Guerra, Michel de Nostredame).
Fontes bibliográficas:
- Shmidit, Mário; Nova história crítica, editora Nova Geração.
-Freud, Sigmund; A interpretação dos sonhos, editora Delta
-Cheynet, Ettore; Nostradamus e o inquietante futuro, editora Círculo do livro
9 comentários:
A-P-A-I-X-O-N-A-D-A PELO TEXTO!!!! Que primor de análise, que poder de observação, de associação, de interpretação. Eu amoooo Salvador Dalí. Simplesmente perfeito!!! Meu Deus, estou me tornando uma mãe cada vez mais orgulhosa do nosso bêbê blog.
:( Eu quero esse quadro...
Agora quem diz um bravo catedrático sou eu....Você em sala de aula será a benção daqueles escolhidos para serem seus alunos.
Você conseguiu sem pedantismo e sem utilizar um jargão incompreensível dominar a platéia com sua palestra sobre a arte de Dali, e de quebra, história, geografia e psicanálise.Meu Bombril acadêmico.10!
Bombril acadêmico foi ótimo, rsrs. Obrigado, meninas, pelo apoio, também estou cada vez mais orgulhoso com este blog. Está transbordando qualidade. E, claro, quero lembrar que esta análise foi realizada por mim e a grande Simone, que estuda comigo, acho que vcs a conhecem. Sempre fomos, e sempre seremos, creio eu, obstinados em associar os mais variados assuntos em um determinado contexto. Claro, não deixando a coerencia de lado. Isso possibilita aos leitores uma visão mais ampla do mundo textual. Eu e Simone denominamos este trabalho como sendo ''o nosso filho'', rs. E realmente é. Entretanto, agora, filho do mundo. Bjs!
Então, me retratando....parabéns a voê também,Simone.Nota 1000.
Parabéns Lohan! Estou impressionada com o texto e com a leitura minuciosa deste quadro! Excellente mesmo!
Caramba, posso dizer que ao ver o quadro após ler o seu texto (e da Simone) pude enxergar muito além... Você nos possibilitou uma sensação extraordinária, nos transportou para dentro daquela arte com todo o seu contexto histórico e simbólico!!!
Parabéns mais uma vez! Não digo que estou surpresa mas sim feliz por este talento tão sublime!
Continue postando que eu estarei aqui para te aplaudir e curtir tão prazerosa leitura!!!
Fico feliz por conhecer o detentor de tão grande talento!
Obs.: Faça mais análises de obras de arte pois vou adorar, além disso você leva o maior jeito!!!
Luciane!! Que supresa te-la aqui no blog com seu comentário!!! Eu qndo vi sua foto, pensei, conheço essa moça... Após cinco segundos, me lembrei! Vc não imagina o qnto fiquei feliz por isso, afinal, nem tenho seu orkut, mto menos seu email, não fiz nenhum tipo de divulgação com vc, e vc mesmo assim, está aqui, nos prestigiando. Com certeza, farei o possivel para sempre tornar a leitura de todos prazerosa, que toque a alma, comova, faça rir, enfim... Isso é leitura. É a revolução dos sentimentos através das palavras. Muito obrigado Lu, continue nos visitando e comentando, vou procura-la no orkut.
Grande bj, Lohan!
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