domingo, 1 de novembro de 2009

Estranho

A porta gritou jogando duas moedas sujas no balcão: – Me dá dois cigarros no varejo!

Um cigarro na orelha, o outro na boca: – Tem fogo?

Três puxadas e a ponta já está em brasa. A brasa fica mais forte, mais brilhante – a primeira tragada. A fumaça sai devagar pelas narinas e por entre os dentes. O indicador e o polegar apertam o filtro, tirando o cigarro da boca, o médio bate a cinza – todos eles amarelados nas extremidades, assim como as unhas, essas até a metade. Mãos um tanto quanto nojentas – as palmas suadas e encardidas, uma sujeira preta por debaixo das unhas. Uma ajeitada no boné, que tinha manchas de suor que mais pareciam desenhadas com alguma tinta gosmenta encontrada ao acaso num depósito de lixo. Os dentes, amarelados também da nicotina, após mais uma forte tragada, soltaram uma baforada espessa na cara do balcão, que nela pôde ler com muita dificuldade – uma letra muito miúda e mal escrita – um “obrigado” tão amarelado quanto o recipiente de onde veio. O “obrigado” se desvaneceu com o bater da porta ensebada: – Estranho, não?! Não deve ser dessas bandas... Realmente não é. Nunca foi visto pela vizinhança, quanto menos aqui.

A porta torna a gritar, na mesma altura, no mesmo tom e com o mesmo bafo, que o balcão logo reconheceu: – Me dá um copo de cachaça! Até o risco!

O copo, já pela metade, se dirigiu ao banheiro. Após uns minutos ouviu-se um barulho. A cadeira, que estava mais próxima, levantou-se, toda torta, e entrou no banheiro – as cadeiras costumam ser muito curiosas. Lá dentro podia-se ver que após derramar-se um pouco no vaso brancamarelamarronzado, o copo caiu, bateu a cabeça na pia e se quebrou deixando no chão uma poça de cachaça, que agora já era avermelhada.

8 comentários:

Camila disse...

Quando li esse texto pela primeira vez não entendi porríssima nenhuma, depois que li a segunda vez fiquei rindo sozinha, imaginando a cena e os objetos inanimados; li pela terceira vez e achei muito bem bolado, criativo; Não sei se sou eu que viajo muito em minhas leituras, mas achei duraca!!! Não vou ler pela quarta vez pra não cortar o barato da minha interpretação...
Bem vindo ao blog!

Vinicius disse...

Edson

- Criativo o conto; diria que a visão distorcida, ou a história contava sob a lente de um duplo? Bêbado e fumante? Embora contada pelos objetos, ou ainda metáforas.

Abraço.

Sidarta disse...

Uma estreia muito criativa. Me parece que o R. Vinicius definiu bem o seu texto. Um estranho que se revela personagem através dos objetos que toca? Um bêbado-ninguém? Muito pano pra manga aqui, hein? Dá pra encher a caixa de comentários nas discussões... hehehe

Aguardando o próximo post!

Abraço!

Andréa Amaral disse...

Todo viciado é tão deprê e inconveniente de se ver que se tornou ponto comum na realidade,passarmos a ignorá-los como se fossem um objeto inanimado, que pode ser justamente aquele que representa seu vício, como, por exemplo, o copo. Neste caso, acho que o bêbado pode também ser representado por uma mala sem alça. Parabéns, adorei seu texto, muito distorcido (visão do bêbado, que também pode ser o narrador. Como bem disse o Sidarta interpretações não faltam. Bem vindo.

Lohan disse...

Bem vindo, Edson!
De cara já gostei do teu nome, Edson Basilio. Pensei,"esse tem nome de escritor", rs.
Mas o texto, está brilhante! Alto nível descritivo, uma metáfora muito bem construída, e um espanto geral, rs. Não podia ter começado melhor.
Abraços!

Edson Basilio disse...

Obrigado por darem suas opiniões, isso é muito importante para mim... é bom ter um feedback.

Abraço a todos!

Sim! Podemos pensar! disse...

Muito legal e criativo o texto!

Seja bem vindo!

Parabéns!!!

Eduardo Trindade disse...

Muito bom, meu caro! Tua habilidade com as palavras e com a construção das imagens é digna de nota. Parabéns!