Havia uma folha de papel sobre a escrivaninha. Ao seu lado, uma caneta, que havia sido ali posta, transversalmente. Ambas iniciam um diálogo:
-Assim quero viver: branca e pura – Anunciou a folha de papel - Viver sem ser desonrada por um objeto qualquer... Uma caneta Bic como você, por exemplo.
-Não seja tola, folha. Da sua espécie não se salva uma sequer. Vocês são como as mulheres hoje em dia: não resta uma que não tenha perdido sua pureza!
-O que você entende de mulheres? Não tens a delicadeza de um ser feminino, embora seja deste gênero. Eu sim sou delicada. Rasgo-me facilmente. Um toque mais desleixado pode me causar amassos irreparáveis. Defendo minha honra até o fim. Eu faço jus ao meu gênero! Já você vive mais na orelha do dono da casa do que entre os dedos rudes dele.
-Ao menos sou mais bem quista do que você, cara folha. Comigo, ele pode planejar todo o seu dia. Escrevê-lo inteiro. Pode projetar casas, obras literárias. Ele me carrega consigo, e estou sempre pronta para a superfície que vier. Já o salvei com lembretes nas palmas de suas mãos. Já me feri em ásperos papelões, e já passei por maus bocados em um tecido, quando ele quis assinar uma camisa de um amigo.
-Aposto que sua querida tampa já foi para o beleléu, tamanho o cuidado que as pessoas tem com suas canetas. Estás aí, a secar tua vida, pela falta de zelo do seu querido dono. Já eu respiro livremente, branca e pura. Você terá vida curta.
-Vida curta eu não terei. Minha tinta é da melhor qualidade, não seca a toa. Além do mais, o meu dono tem utilizado bastante aquele seu... Notebook ultimamente. Confesso estar me sentindo trocada. Antes usada do que trocada. Passar pela vida durante anos sem ter serventia alguma é a pior coisa que existe.
-Não pense como um objeto funcional, caneta! Pense que todos nós somos únicos. Ninguém nasce para servir o outro. Liberte-se deste teu sentimento altruísta. Antes intocável do que se tornar um bolo ínfimo de papel e parar na lata de lixo por conta de um rascunho de um texto ou por causa de um simples erro gramatical.
-Queria morrer jovem, mas morrer em glória – como Aquiles. Ser a responsável pelo livro mais lido do mundo!
-Esqueça... O teclado do computador já te substituiu faz tempo. Eu também fui substituída pelos Words da vida, e estou pouco me lixando! Minha vida duradoura é o que me importa. De que vale morrer em glória? Para ser encerrada numa lata de lixo no fim das contas?
-Ambas de nós desejamos morrer puras, porém, com uma diferença semântica desta palavra: eu quero morrer sem tinta, purinha, e você sem ter recebido a minha tinta, pura em sua castidade.
-É o que temos em comum. Gosto de você, não é nada “objetal”. Mas não quero que meta teu bico na minha vida. A minha pureza é a minha beleza.
-Que assim seja, cara folha... Mas uma coisa é certa: a solidão e a inutilidade lhe pesarão. Irás viver eternamente branca e pura, e também vazia. Serás pura em vida e de vida. Ver-se-á vazia de sentido, vazia de utilidade. Vazia da palavra que puxa palavra. Vazia dos riscos de um artista. Tudo que se guarda não sabe para que ou para quem se guarda. Antes ter uma finalidade do que não se saber o porquê de ter passado por essa vida. A verdadeira pureza habita no gesto de contribuição pelo bem estar da humanidade, e não na tua brancura inútil e solitária.
3 comentários:
Exatamente, Lohan, "brancura inútil e solitária". Quem não sofre rasgos e amassos na vida, não vive.
Essas "Bics" ainda não sabem do que são capazes. Felizes as canetas possuídas pela mente e pelas mãos do cartunista Manohead... Arte única, que computador nenhum no mundo é capaz de fazer. Animem-se valorosas esferográficas, azuis, pretas, vermelhas e verdes!
abraços, Lohan!
Que final clichê!! Mas entendi a mensagem, entretanto tem vezes que cansamos de ser usadas e queremos nos resguardar. A "caneta" prefere ser usada do que ser trocada, faz favor, que machismo é esse meu caro escritor?
By Duda Molinos.
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