domingo, 21 de novembro de 2010

Baratas - Vivas

Tinha uma barata. Ela caiu de qualquer lugar, errando a aterrissagem, caindo de barriga pra cima no chão. Estava lá, ainda forte, vigorosa, cismada, batendo as muitas pernas que tinha, se mexendo de tudo quanto era forma pra poder se levantar e viver.

Era tão simples. Só pisar. Calcei o chinelo, olhei pra ela, levantei o pé e...

E não consegui pisar. Simplesmente, parei o pé no ar, meia altura, e o pé estagnou. Não consegui. Eu ali, com o pé parado, e me perguntando porquê. Eu sabia o porquê de matar ela, mas não entendi o porquê de algo em mim travar essa ação. Afastei o pé. Peguei uma vassoura e enxotei ela pra fora de casa.

Avisei meus familiares do acontecido, depois fui tentar dormir. Já era noite.

Quanto tentei, senti formigamentos. Como algo subindo e se arrastando pelos meus cotovelos, pernas, braços e costas. Levantei e acendi a luz. Tateei a roupa. Nada. Apaguei a luz e deitei novamente. E outra vez, a sensação de algo do tamanho daquela barata se movendo pela minha pele, por debaixo do meu pijama.

Acendi a luz novamente. Troquei de roupa, sacudi, virei e desvirei aquila porra. Não havia absolutamente nada na minha roupa. Olhei pra minha cama, desarrumada. Sacudi o lençol, desvirei o colchão, olhei pra todos os lados. Nada se moveu, nada caiu, nada, nada.

Convencido de aquilo era uma alucinação criada pela preocupação, ou qualquer outra coisa da minha imaginação, apaguei as luzes e fui deitar novamente. No começo, foi tranquilo. Nenhuma coceira, nenhum barulho, nenhum formigamento. Comecei a pensar em outras coisas e sono veio chegando. E conforme as imagens iam se tornando mais vívidas, eu ia desfiando minha rotina de pensamentos, planos, sonhos e divagações noturnas.

Foi quando lembrei da barata que deixei viva.

Senti ela se arrastar pela minha barriga. Levantei o lençol com o poder da minha mente e vi ela lá, parada.
O grito não veio.
O desespero paralisou tudo.

E de repente, ela se moveu... e eram duas, três, quatro... e senti um gosto amargo na boca. Ela estava na minha boca. Cuspi uma barata.
Aí o grito veio, tão claro quanto um raio:

- Porque vocês não me deixam em paz? Eu poupei vocês. Tive compaixão. Porque estão fazendo isso comigo?

E elas subiam. Senti elas no meu nariz, entrando, como um dedo que não é seu invadindo seu nariz... Uma pousou nos meus olhos. Soquei meus próprios olhos. E a escuridão se tornou vermelha sangue.

- Eu... tive... compaixão.

- Compaixão? Você teve medo. Nojo.

- Não era medo! Eu juro! Não senti nojo de vocês... por favor, eu não fiz nada.

- Você teve medo. Teve nojo.

- Pelo amor de deus, não era isso! - acabei gritando.

- Se não era, porque você está com medo agora?

Houve silêncio. E o escuridão vermelha sangue foi-se.

E não havia baratas. Havia apenas um cara, numa cama, com a consciência pesada, por ter poupado uma vida.

Um comentário:

Lohan Lage Pignone disse...

Caramba!

Ocorreu algo semelhante comigo, mas não era especificamente uma barata...rs Putz, inclusive estava pensando em escrever sobre.
Claro, não tive alucinações desse tipo, mas... Depois eu conto! rs.

Gostei do texto.
Abraços, Lohan.