sábado, 27 de fevereiro de 2010

A Volta




Numa madrugada gélida,
As ruas com pavorosos assombros
A cada passo, caminho para o deserto.
Arrepios, medos, incertezas, encontro a cada esquina
Ao deparar-me com o desconhecido,
Que vaga também,
Paro,
Com um estranho sentimento,
Não consigo reagir.
A inércia, toma conta de mim,
Sigo,
Permaneço,
Inebrio-me com a luz, tão distante,
Da lua que me persegue.
Nesse labirinto fantasmagórico,
Me perco,
Nele existem pedras, paralelepípedos soltos,
Está tudo fora do lugar.
Diante dessa bagunça tropecei,
Mais a frente outras maiores que aquela,
A cada passo uma mágica maior,
Tanto andei,
Em demasia me amedrontei,
Agora,
Manhã já é,
Apenas respiro e
Sorrio aliviada.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

TUDO

TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO TUDO
DEPENDE DE UMA ATITUDE


Isso não é meu. Vi há muitos anos atrás e gostei. Da imagem e da mensagem.
Desconheço quem criou, mas teve uma idéia muito interessante e clara.
Compartilho aqui, também para lembrar a mim mesma.
A não deixar de fazer o que posso.
Aqui e agora.
Um só beijo, suave e marcante.
Claudia

O homem que queria ser outro - ÚLTIMO CAPÍTULO (PARTE FINAL)

CONSIDERAÇÕES FINAIS DO AUTOR: Finalmente, o fim! Meus amigos, imagino a ansiedade de vocês... Saibam que também eu estava muito ansioso, e me dediquei muito à essa querida história nessa semana. Espero de verdade agradá-los com o final... E se tiverem críticas, podem criticar também, fiquem a vontade! O mais importante é que estou me sentindo realizado por ter finalizado essa novela, esse livro né, rs, e por ter leitores tão fiéis, que estão sempre deixando comentários, me elogiando e me incentivando a concluir um trabalho que foi tão gostoso fazer.
O que é amor? O que é amizade? Quem são os culpados? O que é confiança? São assuntos abordados no decorrer desta trama, e que neste último capítulo, são retomados com força.
Qual serão os destinos de Ariano, Euclides, Lia Neide e cia?
Qual o personagem que mais te marcou?
Galera, boa leitura a todos! Fiquem na paz, um abraço! Lohan Lage Pignone




Sentado, diante do seu computador, Ariano concluía um texto. Seus dedos pressionavam as teclas com força e velocidade consideráveis. Extravasava toda sua tensão através daquelas palavras, vírgulas e pontos. Ponto final. Finalmente, o ponto final.
-O homem – Disse de si para consigo, digitando o título do texto.
Este foi o título de sua mais nova crônica. O homem.

Horas antes...
Euclides havia saído há pouco da delegacia. Estava desconfiado da segurança que o delegado aparentara. “Ele devia suspeitar de mim também em relação ao seqüestro da Lia...” – Calculou em pensamento. Na beira da calçada, fez sinal para um táxi. Nele entrou, acomodando-se no banco traseiro.
-Riachuelo, por favor.
O taxista deu a arrancada.
-Quente hoje, não? – Comentou o taxista, de aparência jovial.
Euclides ignorou o comentário do moço, olhando para o asfalto através do vidro da janela. O taxista deu de ombros.
Pararam num sinal vermelho. Euclides notou pelo retrovisor que o motorista de um Pálio branco estava os observando, próximo ao táxi. Reconheceu aquele rosto de algum lugar... “Paranóia minha”, pensou ele.
O sinal abriu.
-Pode virar à esquerda, taxista?
-Como? Mas...
-Sei que não é caminho, mas faça isso, por favor.
O taxista obedeceu à ordem de Euclides. Passaram a seguir por uma rua pouco movimentada.
-Acho que tem uma pessoa me seguindo. Preciso que dê uma volta no quarteirão. Pode ser?
-Se fizer isso, a pessoa que está te seguindo vai perceber que você sabe que está sendo seguido.
-Merda, então o que faço?! – Perguntou, mas não para o taxista e sim, a si mesmo. Confiava apenas no poder de sua mente.
-Posso parar naquela sorveteria próxima. Se ele estiver mesmo te seguindo, você saberá depois que deixar a sorveteria.
-Até que você sabe ir além da linguagem fática.
-O que disse?!
-Esqueça. Pare na sorveteria.
Euclides pagou a quantia ao motorista. Desceu do táxi, com a maior naturalidade possível. Entrou na sorveteria, pediu um de creme com flocos, sentou-se confortavelmente numa das mesas de madeira disponíveis e saboreou seu sorvete, pensando mil coisas ao mesmo tempo. Permaneceu ali durante vinte minutos. Saiu, tranqüilamente. Fez sinal novamente para um táxi, que parou rente a calçada para que ele entrasse.
-Riachuelo, por favor.
-Pra já.
Agora o motorista era um homem de mais idade. Euclides continuou espiando o retrovisor.
-Algum problema, moço? – Indagou o motorista, notando a preocupação do passageiro.
-Sim. Acho que estou sendo seguido, mas tudo bem.
-Seguido? Sabe o carro?
Por um momento, Euclides sentiu-se aliviado. Dobraram a esquina sem nenhum carro à vista. Até que...
-Sim. Um Palio branco. – Respondeu, quase soletrando o objeto.
O carro o aguardava na rua próxima. Ao contrário de antes, estava com os vidros fechados – vidros fumê, por sinal. Agora Euclides tinha certeza de que havia mesmo alguém no seu encalço.
-Continuo o trajeto ou...
-Continue.
-Não quer ligar pra polícia?
-Não... Seria o mesmo que abraçar Judas Iscariotes.
O motorista apavorou-se com aquelas palavras. Euclides aparentava saber o que estava acontecendo.
Neste momento, Euclides ouve seu celular emitir um som. Uma nova mensagem. Ele verifica.
-“Devolva a Lia”, dizia a mensagem.
Assustado, Euclides olha novamente para o retrovisor. Certamente não foi o motorista do Palio quem enviou, estava dirigindo!
-Desgraça. Vocês não vão me vencer. – Murmura.

Minutos depois, o táxi deixa Euclides na porta de casa. Ele paga o motorista.
-Obrigado. Está tudo bem comigo, não se preocupe.
-Ok...
O taxista não demorou nem mais cinco segundos ali. Euclides entrou em casa. O carro branco não havia entrado na mesma rua. Mesmo assim, Euclides estava certo de que ainda veria aquele automóvel nas redondezas.
Meia hora depois, Euclides saiu, indo até a fachada da casa. Observou a rua de um extremo a outro, que não era tão comprida. E, não surpreendido, avistou o mesmo carro estacionado na calçada no início da rua, em frente a um bar. Os vidros fumê não permitiam que o motorista fosse visto dentro do automóvel.
-Então tem um malandro me vigiando. A polícia, provavelmente... Bem que estranhei a segurança do delegado. Ele desconfia que eu seja o verdadeiro culpado... Além disso, precisava confirmar o endereço que eu o concedi. Ok. Vamos ver até onde vai esse jogo de gato e rato.

No interior do Palio branco, um homem passava alguns informes pelo celular...
-O endereço confirma. Ele parece tranqüilo. Até parou para tomar um sorvetinho. – Riu o astuto Marcos, mais conhecido como...
-Mandrake, não desgrude dele. Quero vigilância total, entendeu? Tem certeza de que não foi notado?
-Eu confio no meu taco.
Regis, o interlocutor de Mandrake, sentia-se inseguro diante da autoconfiança de uma pessoa.
-Está bem... Mas não o subestime. Ele é muito inteligente. Qualquer movimento suspeito, me mantenha informado.
-Xá comigo, chefe.

Dez da noite. Julia Medeiros trazia uma bandeja com três xícaras de café para a sala, onde estavam Beatriz e um detetive policial. Eles apanharam suas xícaras. Beatriz estava com uma expressão mortificada.
-É quase insuportável essa sensação... Essa sensação de... De impotência, sabe. – Disse, tentando controlar o tremor que balançava a xícara de café em sua mão.
-Reze, Beatriz. Reze e essa sensação deixará seu espírito. A oração é a nossa melhor arma. – Consolou a redatora, sentando-se no sofá ao lado de Beatriz.
-Se fosse um seqüestro comum, eles já teriam entrado em contato, Julia. Mas não... Não é esse o caso. A minha filha está nas mãos de uma pessoa que só deseja fazer o mal a ela, e não adquirir o dinheiro dela.
-Infelizmente, eu concordo com você.
Neste momento, o telefone toca.
O policial se levanta sobressaltado da poltrona.
-Tente se manter por mais de trinta segundos pelo menos, ok? – Pede ele a Beatriz, que corre para atender.
-Alo?
-Boa noite. Aqui é o Walter. Desculpe fazer uma ligação numa hora dessas, Dona Beatriz, mas... Precisava saber como estão as coisas.
-Ah... – Suspira ela, frustrada – Sim, doutor. Obrigada pela ligação... As coisas estão paradas. Nenhuma notícia, nada.
-Eu procurei me informar, e soube que a polícia já entrou em contato com os familiares do Adalberto, amigos e colegas de trabalho da Lia. Estão investigando todas as hipóteses.
-Sim, eu sei. Mas ainda acho que aquele Vitor é o mandante!
-Não temos indícios concretos que seja ele. Ele permanecerá preso, foi o que eu soube. O juiz não expediu o Hábeas Corpus.
-Agradeço sua preocupação, doutor. E o Ariano, como está?
-Está muito abalado. Só que não deixa transparecer. Se trancou dentro do quarto, está escrevendo. Toda hora perguntamos como ele está. Ele ama muito sua filha.
-Eu não queria ter suspeitado dele, me perdoe.
-Quanto a mim, eu entendo. Mas ele... Aí é com ele. Mas fique em paz, Dona Beatriz. Amanhã de manhã irei até aí.
-Claro. Agora preciso desligar. Até amanhã, doutor.
-Até.
Beatriz desligou.
-Era o pai do Ari? – Indagou Julia.
-Sim... Ele tem sido muito gentil conosco nesses dias. Só que hoje fiz o que fiz... Levantei suspeita contra o filho do advogado da minha filha. Sou uma estúpida mesmo.
-Beatriz, eu não queria tocar nesse assunto, mas... Eu preciso falar. Acho realmente que você errou, e por dois motivos: primeiro porque você prejudicou ainda mais a situação da Lia no caso do Adalberto, pois teve que revelar a situação do beijo, e isso pode criar muitas caraminholas na cabeça da polícia.
-Sim, o delegado ficou perplexo quando eu disse. Mas eu expliquei a versão da Lia direitinho.
-Mesmo assim!
-Mas isso com certeza prejudicou o Euclides também!
-Ele é muito safo, deve ter contornando muito bem essa enrascada.
-E qual é a outra razão, Julia?
-Você suspeitou de um menino que jamais seria capaz de fazer mal a qualquer pessoa que seja. Ponho minha vida no fogo por ele.
-O Ariano estava com muita raiva dela, e era compreensível! Ele ficou fora de si, falou até mesmo em matar o Euclides.
-Ele estava mesmo fora de si, mas ele não levará isso à frente.
-Será, Julia? Por que confia tanto na bondade dele?
-Porque... – Julia hesitou, e sorriu tristemente - Se fosse a Lia quem passasse por essa situação, você continuaria confiando nela?
-Sim, ela é minha filha! – Disse, dando de ombros.
-Pois então. O Ariano é o meu filho, Beatriz. É o meu filho espiritual.
Beatriz não compreendeu, porém, optou por não alongar aquele diálogo, o qual indicava tomar rumos dolorosos.
-Nosso café esfriou.
Beatriz apanhou sua xícara. Retomaram o café.


Eram duas e meia da madrugada quando Euclides saiu de casa. Tomou a rua em direção oposta à pessoa que o observava. Mandrake, que estava meio sonolento, flagrou o momento de sua saída, e, obviamente, achou estranho aquela atitude repentina no meio da madrugada. Ligou o carro e, lentamente, seguiu pela rua deserta. Por ali, os bares já haviam fechado. Apenas um bar estava aberto no quarteirão. Justamente para este que Euclides foi.
Andou um bom trajeto até chegar lá. Entrou, pediu uma cerveja. Havia alguns homens mal encarados por ali; um grupo jogava sinuca. Euclides sentiu asco de todo aquele ambiente, daqueles indivíduos, daquele cheiro...
Mandrake viu Euclides entrar no bar. Parou o carro, não muito distante.
-“Duas e trinta e sete. Saiu de casa. Está em um bar, no mesmo quarteirão. Até que uma cerveja não cairia mal agora...rs”.
Regis, que dormia no sofá da sala, recebeu a mensagem em seu celular. Caiu do sofá, levando um tremendo susto.
-Que noite! – Resmungou, recompondo-se. Apanhou o celular leu a mensagem, forçando a vista.
-Bar... A essa hora?
Ligou para Mandrake.
-O que manda, chefe? Te acordei, é?
-Me derrubou, seu imbecil... Olha, não acha estranho ele ter saído de casa a essa hora pra ir a um bar?
-Está muito quente. Ele não conseguiu dormir... Foi tomar uma “cerva gelada”.
-Não, isso não ta cheirando bem...
-Então, o que devo fazer?
Regis afagou os cabelos com a mão, pensativo.
-Continue aí... Ele pode ter marcado um encontro com alguém... Você consegue vê-lo de onde está?
-Não. Não parei perto.
-Portanto, vá até o bar e observe as ações dele. Seja bem discreto. Veja se ele ligará para alguém, ou se falará pessoalmente com algum indivíduo. Tente captar informações.
-Entendido, chefe. Vou até lá.
Mandrake guarda o celular no bolso da calça jeans e vai até o bar. Estava a paisana.
Chegando no bar, pede uma dose de conhaque e senta-se próximo a Euclides. Euclides o reconhece, por fim. Havia visto aquele policial na delegacia, da última vez. Continua bebendo sua cerveja, em silêncio. Discretamente, enfia a mão no bolso da calça e desliga o celular. Seria arriscado receber alguma ligação naquelas circunstâncias... Sabia que estava sendo piamente vigiado.
-Mais uma cerveja, por favor. – Pede ele.
Ele quase sorri. Seu plano estava dando certo.

Algumas horas antes...
Euclides liga para Carlão, um dos homens que seqüestraram Lia Neide.
-Como ela está?
-Doida pra ser devorada pelo lobo mau. – Ele zomba.
-Seu canalha, não ouse encostar nela, ouviu? Ela é minha mulher! Agora presta atenção: estou sendo vigiado de perto por um policial.
-Puta merda, na mesma rua?
-Exato.
-Como sabe que é cana, mermão?
-O que importa é que eu sei, não vou ficar te dando explicação agora.
-Isso significa que a parada babou?!
-Não, nada deu errado, e nem dará. Você vai trazê-la para mim, no endereço que te dei, conforme o combinado.
-Pirou, malandro?! Quer que eu seja preso, e tu também? Por que não vem aqui?
-Você acha que eu tenho cara de rato de esgoto de favela? Não posso ficar dando as caras por aí, ainda mais agora que estou sendo seguido. Você virá. Eu tenho um plano para despistar o policial xereta.
-Diz aí, que porra de plano é esse?
-Saia daí às duas e meia da manhã. Você terá vinte minutos para chegar na casa, deixá-la amarrada e sair fora. Ah: não estacione o carro próximo a minha casa.
-Tu ta maluco?! Vou ter que sair carregando a mina no braço até tua casa?
-Fica tranqüilo, ninguém vai ver. A rua estará deserta a essa hora. Dê um sedativo a ela e tudo ficará mais fácil. Será que eu vou ter que ficar ensinando padre a rezar missa?
-Ih, pega leve, malandragem... Tu não me conhece.
-Não nos conhecemos. Olha aqui, vinte minutos. É suficiente?
-Ta me achando com cara de que, porra, Barrichelo?
-Eu vou desligar. Fica esperto.

02:55 hs.

Euclides chega à casa. As luzes estão todas apagadas. Ele acende a luz da sala.
-Alguém aí?
Ouve um barulho vindo do quarto do seu tio. Sempre precavido Euclides vai até a cozinha e apanha uma faca, colocando-a na cintura, por debaixo da camisa. Ele caminha sorrateiramente até o quarto. A porta estava entreaberta. Um rastro de luz escapava pela fresta. O abajur estava aceso. Havia alguém ali. Ouviu gemidos. Euclides escancara a porta de uma só vez, e rapidamente leva a mão ao interruptor. Ele identifica as pessoas.
-O que significa isso?! – Grita, tomando por uma ira intempestiva.
Lia tinha os dois braços amarrados na cabeceira de madeira da cama de casal. As pernas estavam livres de amarras, bem como sua boca, livre de mordaça. Seus seios estavam descobertos; usava apenas uma calcinha. Afinal, estava desacordada. Já o homem na cama, ao lado dela, estava bem desperto...
-Ei, malandro? Algum problema?
Euclides mal conseguiu mover um passo de tão estarrecido. Fixava-se naquela cena. Lia semi-nua, ao lado de um bandido ordinário.
-O que fez, com ela? O que... O que você fez com ela, seu filho da puta!!? – Vociferou, com o olhar quase saltando dos globos.
-Ainda não fiz nada. Só tava dando umas chupadinhas nesses peitinhos deliciosos... Coé, cumpade, não to te entendendo!
Carlão se levanta, dirigindo-se até Euclides.
-Tu pensou o que? Que aquele pagamento de merda foi suficiente pra bancar o serviço? Tu ta enganado. Pra completar o pacote, eu quero a mina, ta ligado?
-Pagamento de merda? Eu tirei todo dinheiro que eu tinha na minha conta bancária, e ainda dei meu relógio de ouro a vocês! Você é um usurpador. Quer me extorquir, não quer? Ta pensando o que, que vale alguma coisa? Pode ir pro xilindró que nem eu.
-Ué... A polícia está bem ali fora, não ta? Vai lá e me entrega se for homem.
-Você devia ter dado no pé, agora... Agora não dá, ele irá ver!
Euclides soca o guarda-roupa.
-E então, padre? Não quer continuar tua missa? Tu não é o sabichão? Vai fazer o que agora?
-Você não pode sair dessa casa. – Diz Euclides, friamente.
-Vai me matar, é? – Ri Carlão.
-Você é um covarde. Eu te avisei pra não tocar na Lia. Se aproveitou dela sedada! Covarde, desgraçado!
-Ei, vamos com calma... Se eu sou covarde, tu é um egoísta do cacete, moro? – Disse, mantendo uma estranha ponderação – Por que não dividir o filé com o parceirão aqui?
-Porque bandido ralé que nem você não come filé. Come carne podre, feito urubu. Bandido que nem você nunca recebeu nenhum título de importância nesse mundo, e nem vai receber. Será sempre o pau mandado, o capacho dos peixes graúdos. Sua cara... – Ri, gracejante – Olha pra sua cara. Um rosto digno de manchete policial. Nasceu pra viver no mundo do crime, e morrerá nele. Nunca será nada na vida.
A calma de Carlão foi dando lugar à cólera que o tomava gradualmente...
-Quer se aproveitar de uma mulher desacordada? Que homem é você? Tem medo do que? De brochar e ela presenciar essa... Esse... Esse seu órgão inútil? – Ri, agora com mais sarcasmo.
-Cala essa boca...
Nesse instante, Lia começa a se mexer na cama, gemendo baixinho. Estava despertando após horas sob efeito da droga.
-Lia?!
Euclides corre até a moça, acariciando seu rosto. Ele a cobre com um lençol, como um pássaro protegendo seu ninho sagrado de filhotes.
Carlão aproveita a distração de Euclides e lhe acerta uma coronhada na nuca com sua arma calibre 12. Euclides cai desmaiado na cama.
-Isso é pra tua aprender a não tirar onda com o Carlão aqui.
Lia observa a tudo, ainda grogue, e exprime um “socorro” quase inaudível.
-So... Socorro!
Carlão empurra Euclides da cama. Ele cai no chão, ainda desacordado. O bandido se aproxima de Lia, tirando a camisa. Ele coloca o revólver na cintura. Nos braços dele, duas grandes tatuagens: no esquerdo, uma suástica. No direito, uma sigla de uma facção criminosa.
-Por favor... – Murmura Lia Neide.
-Agora tu ta acordada. Agora é a hora de tu perder essa virgindade, meu docinho.
Ele agarra Lia, beijando-a na boca. Ela tenta se libertar das amarras, em vão. Suas pernas, enfraquecidas, se debatem, porém ela se via imobilizada. Ela morde o lábio de Carlão, que se afasta abruptamente. Ele leva a mão ao lábio inferior, e percebe que sangrava.
-Sua cadela! Eu ia fazer direito contigo. Agora tu vai sentir a pressão.
Carlão avança em seus seios, e em seguida, tenta arrancar a calcinha de Lia, que luta com as pernas.
-Socorro! Socorro! – Grita, agora mais alto.
Carlão abre o zíper da calça.
-Já viu uma na sua vida, garotinha?
Ele ia abaixando a cueca quando cessa, de repente, o movimento. Abre a boca, sugando todo ar possível. Pelo canto de sua boca, um filete de sangue passa a escorrer. Ele se mantém ereto por alguns segundos, mas não resiste. Lia arregala os olhos, terrificada.
Carlão cai frontalmente sobre ela, que se remexe, tentando empurrá-lo de cima de si.
-Ahhhhh! – Ela berra.
Os pulmões de Carlão haviam recebido três perfurações profundas. A lâmina da faca na mão de Euclides estava pingando sangue. Ele havia surgido por trás da vítima, e concluído mais um assassinato para sua macabra coleção.
-Euclides... – Diz Lia, ao vê-lo diante de si.
-Vamos se esconder, Lia Neide? – Ele sorri, balançando a faca suja de sangue.
Lia revira os olhos, desmaiando novamente. Agora ela estava totalmente vulnerável nas mãos de Euclides.

Eram oito da manhã de terça-feira quando um carro da polícia era estacionado diante da casa do tio de Euclides. Dele saíram Regis e mais um policial.
Regis toca a campainha da casa. Aguarda trinta segundos, e nada. Ele toca novamente. Até que...
-Bom dia. Delegado? Que honra! – Recepciona Euclides, disfarçando sua surpresa. Estava aparentemente fatigado. Também pudera... Sua noite fora demasiada movimentada. Vestia agora uma camisa amarela, pavorosa, e um bermudão acinzentado amarrotado.
-Bom dia, Euclides. Eu liguei para o seu tio, Charles, e o número só caía na caixa postal. Resolvi vir até aqui, fazer uma visitinha. Precisamos dar uma vasculhada na casa, se não se importa. Ah, e antes que mostre ser conhecedor dos seus direitos, eu trouxe um mandado para ter acesso à residência.
-Ok... Eu não ia colocar empecilho, delegado. Por que faria isso? Vamos, entrem!
Regis entrou, acompanhado pelo policial. Euclides alçou um olhar discreto pela rua. Não havia mais ninguém o observando... “Lógico. Agora não seria necessário”, pensou ele.
Regis separou-se do outro policial. Cada um cobriu uma parte da casa. Euclides ficou parado na sala, de braços cruzados.
-O que procura, afinal de contas? – Intervém Euclides, perguntando ao policial.
-Confidencial.
-Eu sei o que procuram. Estou tranqüilo. Não tenho nada a esconder. Fique a vontade. Quer um café?
-Não, obrigado. – Responde o policial, encarando-o seriamente.
Euclides dá de ombros e vai até a cozinha preparar café. Regis entrou no quarto de Charles. Notou a organização... Tudo parecia intocável. Abriu as portas do guarda-roupa de Charles. Notou que havia alguns espaços vagos entre os cabides, o que dava entender que realmente tinha viajado. Fechou o guarda-roupa. Observou a cama de casal. Perfeitamente arrumada. Mal sabia o delegado que sob aquela cama havia uma entrada... Uma entrada para um porão secreto, coberta por um tapete.
Regis deixou o quarto com uma sensação esquisita. Sua intuição dizia que encontraria algo ali, mas não havia evidência alguma. “Ele não saiu de casa. Não há ninguém aqui além dele. Meu Deus, por que insisto que tenha sido ele o mandante do seqüestro? Por que ele mataria Adalberto? Por que ele mataria sua avó?... Ele é uma pessoa normal que deu azar de se envolver em todo esse emaranhado de acontecimentos trágicos... Falta de sorte ou armação? Oh céus... Eu nunca estive tão confuso”.
Vinte minutos, e nenhum indício que comprometesse aquele homem de olhar epilético.
-Alguma coisa, delegado? – Perguntou o outro policial.
-Nada... Nem um fio de cabelo. Estou começando a me achar obsessivo... – Comenta o delegado.
-Obsessivo, delegado?!
Euclides surpreende o diálogo dos dois na sala, chegando com uma bandeja com três xícaras de café.
Regis e o policial se entreolham.
-Não acredito que irão recusar o meu café!
-Eu agradeço, Euclides. Não quero café. – Diz o delegado.
-Muito menos eu. Não bebo café.
Euclides emburrou o semblante.
-Ok. Eu não ia querer envenená-los, mas... Se vocês pensam assim de mim.
Euclides repousa a bandeja sobre a mesinha de centro. Em seguida, apóia as mãos na cintura e indaga:
-Talvez isso seja sintoma da tal obsessão, não é delegado?
Regis solta um suspiro.
-Euclides... Você disse pra mim ontem que é a grande vítima dessa história. Pois eu também acho.
-E por que resolveu concordar comigo?
-Porque você é vítima de si mesmo. Vítima de sua astúcia, sua inteligência, sua capacidade de mentir.
-Está me ofendendo, delegado.
-O tempo todo eu quero acreditar na sua inocência, mas aí vem uma voz que sopra no meu ouvido, dizendo: insista nele. Insista.
-Está obsessivo comigo, de fato. Veio vasculhar a casa onde estou, recusou o meu café, afirma que sou mentiroso. Por que não planta droga na minha casa e me prende por tráfico? Vocês não costumam fazer isso quando querem ver um desafeto na cadeia, ou quando simplesmente cismam com um indivíduo?
-Não sou corrupto, Euclides. Não sou corrompo minha integridade ética e moral para prender um sujeito como você.
-Está muito irritado comigo, obsessivo... E eu sei porque. Tudo começou depois do que lhe disse ontem. Não fosse isso, talvez eu estivesse sentado no meu sofá agora tranqüilamente, comendo cereais e assistindo desenho animado. Traição é um assunto difícil. Conseguiram se acertar, você e a sua... Mulher? Espero que sim. Odeio ver um casal se separar. – Prosseguiu, no auge de sua ironia.
-Não te interessa o que aconteceu na minha casa, você não vai me perturbar com esse blefe.
-Já te perturbei o bastante, delegado.
Regis o fita por alguns segundos, contendo sua fúria.
-Vamos, Paulo.
Regis se dirige à porta ao lado do policial.
-Eu acompanho vocês. – Diz Euclides.
-Não é preciso. Saiba de uma coisa, rapaz: - Diz, em tom de bravata, virando-se para Euclides - Mais cedo ou mais tarde eu vou te pegar. Fica esperto.
Os dois saem. Euclides respira aliviado e, em seguida, não contém mais a explosão de alegria dentro de si: dispara risos frenéticos, chegando a cair de joelhos, de tanto rir.
-Nunca me diverti tanto.

Ariano chega no jornal, surpreendendo aos colegas. Haroldo veio ter com ele:
-Que bons ventos o trazem ao trabalho, Ariano?
-Desculpe pela ausência, Haroldo. Você sabe o que venho enfrentando.
-Sim, eu sei, meu amigo. – Disse, levando a mão ao ombro do jovem – A Julia tem me deixado a par de tudo. O seqüestro da Lia também vem mexendo muito com os nossos ânimos hoje. Já fizemos reportagem, com foto e tudo, e publicamos hoje.
-Eu li, comprei o jornal cedo.
-Leu a sua crônica?
-Sim. Obrigado por ter aceitado de última hora.
-Não chegou a passar nas mãos da Julia, mas... Eu a li, estava perfeita, sem erros ortográficos, nada. Por que não publicá-la se havia tempo? “O homem” foi o seu melhor texto até agora, na minha opinião. Você foi mais profundo do que nunca.
-Obrigado. Eu fui, de fato. Estou tentando me livrar de um abismo e as palavras são os degraus da escada que me fazem subir de volta à terra firme.
-Assim que gosto de ver, confiante.
-E a Julia? Está aqui?
-Não, ela ainda não chegou. Ih, falando na santa...
Julia chegava na redação. Ariano volveu-se para recebê-la.
-Você não morre mais.
-Com um Euclides a solta, isso não deve ser levado em consideração, meu caro. Que bom que está aqui. Precisava mesmo conversar com você. Vem comigo até minha sala?
-Claro, vamos.
Ariano e Julia se trancaram dentro da sala da redatora. Sentaram-se à mesa.
-E ai, como se sente? – Perguntou Julia, levando suas mãos às de Ariano. Ambos tinham uma expressão abatida.
-É... Estou tentando me recompor, Julia. A vida é engraçada... Até ontem eu estava sentindo uma raiva tremenda da Lia... – Disse, a um sorriso em devaneio – Bastou eu descobrir que ela tinha sido seqüestrada que meu coração voltou a bater mais forte, mas não de raiva... Percebi, definitivamente, que a amo mais do que tudo.
-Comprei o jornal hoje. Vi a sua crônica. Adorei a surpresa, você foi fantástico. Eles já tinham até programado uma reportagem especial para pôr no lugar da sua coluna, mas abriram mão dela na mesma hora que receberam seu texto. Você é o queridinho desse jornal, Ariano.
Os dois sorriram.
-O que quer me falar, Julia?
-Ariano, eu tenho uma forte suspeita de que tenha sido o Euclides o grande autor desse seqüestro da Lia.
-Por que ele ia seqüestrá-la? Num dia ele a beija, no outro ele a seqüestra? Faz sentido isso?
-Claro que faz, Ari! Pense bem: ele a deseja muito, e não pode tê-la. Ele sabe que você está preste a conquistá-la, e não ele. O que uma mente doentia planeja para alcançar esse objetivo? Ele a tem a força. Ele manda seqüestrá-la. Agora ela deve estar em seu poder, sabe-se lá o que ele está fazendo com ela. Pobre Lia... Meu Deus, eu não agüento mais, Ariano. Precisamos agir e pegá-lo, de uma vez por todas. E o momento é esse.
-Nós? O que vamos fazer, Julia? Nem a polícia tem provas contra aquele maldito!
-Eu tenho um plano – Diz ela, convicta.
Ariano a encara, ansioso.
-O que tramou, Julia?
Julia se ajeita em sua cadeira, e revela:
-Desde o roubo do celular da Lia Neide, eu venho enviando mensagens anônimas para o celular do Euclides.
-Como?! – Espanta-se.
-Eu venho o ameaçando, dizendo para ele se entregar. Ele desconfia que seja eu, inclusive jogou um verde pra cima de mim no seu aniversário. Mas não tem certeza de que seja eu.
-Meu Deus, você é maluca, Julia! Se arriscando desse jeito... De que celular vem enviando essas mensagens?
-Eu comprei um celular novo, somente para isso. De vez em quando ele telefona, na esperança de que o autor das mensagens anônimas atenda. Ele deve morrer de medo dessa pessoa, Ariano.
-Mas... O que está pensando em fazer? O que isso tem a ver com o tal plano, Julia?
-Eu vou te dizer.


Após se controlar do ataque de risos, Euclides decide descer até o porão. Nos fundos do porão, havia um corpo enrolado num lençol branco manchado de sangue. Era Carlão. Dentro de um baú, estava o corpo esquartejado de Charles. Euclides havia escondido também ali várias peças de roupas do tio dentro de uma mala, além de objetos pessoais do mesmo, como: pente, escova de dente, óculos, celular, etc, simulando sua viagem. Euclides agora também tinha a posse de um revólver, tomado do cadáver Carlão; estava escondido no porão também. Ele preparou muito bem o terreno. Previa a visita policial. O delegado não ia pedir o endereço à toa...
Lia estava completamente amarrada em uma cadeira. Estava amordaçada também. Euclides caminhou até ela, com um sorriso estampado no rosto.
-Minha flor, meu bebê.
Ele se aproxima, afaga o rosto dela. Ela o olha com raiva, direto nos olhos dele.
-Olhando nos meus olhos, é? Que mudança é essa? – Diz, em relação à maneira esquiva que Lia sempre se dirige ao olhar para uma pessoa.
Ela solta um gemido abafado, demonstrando raiva.
-Poxa, ainda com raiva de mim? Mal agradecida. Defendi você daquele bandido covarde, ele ia... Ele ia te possuir antes de mim.
Euclides resolve tirar a mordaça de Lia Neide.
-Quero ouvir sua voz.
-Socorro!! Alguém me ajude, pelo amor de Deus!! – Ela berra, em vão.
Euclides tapa os ouvidos, rindo do desespero de Lia.
-Já parou com o estardalhaço? Não adianta, Liazinha. Irá se matar de tanto gritar, ninguém pode ouvi-la. A casa está sob o meu domínio.
-Por que está fazendo isso comigo, Euclides?! Por que!?
-Porque eu te amo, Lia.
Lia balança a cabeça, indignada.
-Me ama?
-Sim, e quando te disse isso no aniversário do Ariano, você não acreditou em mim.
-Quem ama não faz a pessoa amada sofrer!
-Mas você quem pediu, Lia! Você não me aceitou. Você não aceita ninguém. Quer virar santa, garota?
-Eu viro santa, o que for! Mas ser sua... Jamais.
-Não me provoque.
-Vão descobrir que estou nas suas mãos, logo logo estarão aqui!
-Ninguém será capaz de descobrir esse esconderijo, mocinha. Meu tio me fez um grande favor quando construiu esse maravilhoso porão. Coitado, vivia solitário pelos cantos... O porão é símbolo de sua solidão.
-Cadê ele? O seu tio?
-Adivinha? – Sorri Euclides – Dentro daquele baú, atrás de você!
Ele aponta para o baú. Lia olha para trás, e fica aterrorizada.
-Você... Você o matou também?!
-E por que não matá-lo? Não fará falta nenhuma neste mundo. Aliás, menos um pra tirar dinheiro da Previdência Social.
-Você matou todos eles... O Adalberto, a sua avó!
-Minha avó caiu da escada. E quanto ao seu ex-namoradinho... Foi você quem matou, Lia. Não venha querer jogar a culpa no meu colo agora. – Disse, brincando com base na ironia.
-Seu desgraçado, canalha, satanás!!
Euclides acerta um forte tapa na face direita de Lia, chegando a arrancar sangue do canto de sua boca. Ela fica zonza, com o rosto pendendo para o lado oposto.
-Eu exijo respeito, Liazinha. Se me desobedecer de novo, vou te dar uma surra!
Euclides começa a girar em torno da cadeira.
-Imagina se o Ariano soubesse que eu estou com o maior tesouro dele. Seria minha completa alegria.
-A sua meta foi e sempre será atingir o Ariano... – Ela murmura, recompondo-se da agressão.
-O Ariano é muito egoísta, na verdade. Precisa aprender a dividir as coisas. Ele sempre quis se mostrar um Jesus contemporâneo, mas na hora boa, na hora da Santa Ceia, aquele falso nunca repartiu o pão! Sempre quis tudo pra ele.
-Ele só viveu a vida dele... Tudo que ele conquistou foi graças ao esforço e ao talento dele... Coisa que você não tem, Euclides.
Euclides, que estava atrás de Lia, enroscou sua mão nos cabelos dela e o puxou de uma só vez, quase o arrancando da cabeça da jovem.
-Ai!!! – Ela urra de dor.
Ele permanece com os cabelos esticados em sua mão, e diz:
-Eu disse que exigia respeito, sua puritana dos infernos!
E puxou mais uma vez.
-Pare, por favor....!
Lia chorava muito. Euclides soltou vagarosamente os cabelos dela, e retoma seus passos em torno da cadeira.
-Quem disse que não tenho talento? O Ariano seria capaz de matar? Quer talento mais nobre do que este, o do crime? Matar e ficar impune! Isso é demais! – Vibra.
-Você se acha uma figura importante porque desafia a sociedade e a vence... Ela nunca te pega. Até quando?...
-Pois então! Lia, o Ariano jamais correria esse risco. Ele é um fraco nesse sentido.
-Ele é uma pessoa boa. Esta é a grande diferença entre vocês.
Euclides pára defronte sua refém. Ele a olha com uma ternura doentia, abaixa-se e diz:
-Vou beijar sua boca, e depois... Depois você vai se entregar para mim.
-Euclides... Não faça isso... Tudo pode ficar bem entre nós...
Euclides a beija. Ela não arrisca morder os lábios dele, temendo ser agredida novamente. Ele se afasta.
-Seus lábios são doces... Eu serei o seu primeiro homem, Lia. O Ariano não terá essa vantagem sobre mim, não mesmo.
Ele enfia a mão sob a saia de Lia, tocando seu órgão genital.
-Nossa... Que delícia...
-Pare, pare com isso, para! – Grita, chorando desesperadamente.
-Eu não vou te comer agora, Lia. Quero você mais tarde. Comprarei um vinho tinto para nós, a levarei para cama, acenderei velas... Será uma noite inesquecível.
Ele retira o dedo de onde estava e o chupa.
-Gosto maravilhoso. Gosto de mel puro, virgem.
Neste momento, o celular de Euclides emite um som que ele vinha ouvindo com freqüência...
-Mensagem! Maldição, será a mesma pessoa me atazanando de novo!
Ele se levanta e se afasta de Lia, verificando a mensagem.
-“Chegou a hora, Euclides. Cansei de ficar no anonimato. Como é chato ser anônimo nesse mundo! Cansei dessa covardia. Quero me apresentar a você, olhar na sua cara. Quero me conheça, por fim. Não é isso que tanta deseja? Pois então. Prometo ser somente eu e você. Não tenho medo de você. Me encontre daqui a meia hora no galpão abandonado, próximo à redação do jornal onde você trabalhava. Será homem o bastante para me encarar? To te esperando”.
Euclides fica nervoso. Lia o observa atentamente, e percebe que seu seqüestrador ficara inquieto com a mensagem. Ele fecha o celular.
-Tenho que sair, docinho. Mas volto logo. Aproveito e compro nossas guloseimas, para mais tarde.
-Por que está disfarçando seu nervosismo, hein?
-Não te interessa! Cale essa boca!
Euclides apanha o revólver que estava sob um pano em cima da mesa. Coloca-o na cintura. Em seguida, ele caminha até Lia e repõe a mordaça nela.
-Comporte-se.
Ele deixa o porão, dizendo para si mesmo: “Eu também não tenho medo de você. Seja você quem for...”.

Euclides chega no galpão. A sua frente, uma extensa linha reta, dando numa saída para os fundos.
-Apareça! – Ele chama.
Um homem desconhecido aparece, saído dos fundos do galpão. Vem caminhando em direção a Euclides. Euclides força a vista, tentando reconhecer aquele sujeito. Já tinha o visto em algum lugar... Mas não se lembrava de onde, ao certo. O homem, estando defronte a ele, se apresenta:
-Bom dia, Euclides. Eu me chamo Ricardo.
Estende a mão para Euclides, que, ressabiado, não aceita apertá-la.
-Eu não vou apertar sua mão, eu nem te conheço.
-Conhece agora, não conhece? Eu sou o homem das mensagens anônimas.
-Há, isso é uma pegadinha?
-E se eu te disser que vi tudo?
-Viu tudo? Viu tudo o que? – Indaga, agora demonstrando um teor de medo.
-Eu presenciei o que fez ao Adalberto Rangel na praia.
-Está blefando, meu amigo.
-Eu não sou amigo de assassino.
-Quer saber? Eu vou embora, cansei dessa baboseira!
Euclides vira as costas e ameaça deixar o local, todavia, Ricardo prossegue:
-Desde que roubou o celular da Lia, minha amiga Julia desconfiou e mandou que eu seguisse seus passos. Ela me deu o número do seu telefone, e, do meu, que é desconhecido para você, eu enviava as mensagens. Enviei mensagem para o celular da Lia também. Sabia que era você. Um ladrão qualquer não se daria o trabalho de responder as mensagens pelo celular dela... Confirmada minha dúvida, permaneci na espreita. Você saiu do hotel e de madrugada, na hora marcada na mensagem, foi ao encontro de Adalberto.
Euclides se detém, e volta a ter com o homem misterioso.
-Que roupa eu vestia?
-Uma camisa branca e uma calça jeans.
-Sei... E então, o que mais viu?
-Eu o vi lutando com Adalberto. Você atingiu a cabeça dele com um porrete e o puxou para as águas. Ele morreu afogado.
-Vamos supor que tudo isso tenha acontecido. Por que não ligou para a policia? Por que não me denunciou?
-Porque enganei minha amiguinha Julia, dizendo que tinha perdido você. Por que fiz isso? Porque quero extorqui-lo. Ela não sabe disso. Eu vi tudo, e quero que me pague para que eu fique calado.
-Ora, está me gozando, cara? Você nem possui prova alguma! Somente um idiota cairia numa armadilha salafra dessas.
-Não preciso de provas... Já consultei as câmeras do hotel que ficou hospedado. Mostra o senhor saindo, as quatro da matina, no mesmo dia e horário do crime... Nossa, quanta coincidência! Já pensou no que você diria a policia caso eles te perguntassem o motivo dessa saída repentina?
-Se tivesse mesmo visto essa filmagem, não teria errado a roupa que eu vestia, seu imbecil. A propósito, como se chamava mesmo o hotel em que me hospedei?
-Não me interessa nome de hotel agora.
-Sabia! – Sorri Euclides – Você um farsante! Me fez vir até aqui, perder meu glorioso tempo, com uma balela digna de Guiness Book!
-Não foi isso que disse em seu depoimento, Euclides.
Euclides não entende.
-Como?
-Em seu depoimento, ontem... Disse que esteve na casa do seu tio, não no hotel. E qual era a roupa que usava no momento do crime? Você disse que eu errei. Isso significa que você de fato saiu naquela madrugada.
-Está jogando comigo... Provavelmente esconde um gravador debaixo da camisa, ou no bolso da calça...
-Imagina! Pra que? Pode me revistar, se quiser.
Euclides não hesita; revista o homem por inteiro. Em seguida, começa a olhar ao redor do galpão.
-Quem veio com você? Quem?!
-Por que está nervoso? Disse algo comprometedor? Eu vim sozinho, cara. E consegui o que queria: você esteve em um hotel.
-Em nenhum momento eu disse que estive num hotel...
-Só um burro não entenderia isso, Euclides.
Julia aparece por trás de Euclides, com o gravador na mão.
-Julia?!
-Assustado comigo? Eu é que devia me assustar. Afinal, estou a poucos metros de um assassino frio e cruel.
-Sabia que estava envolvida, você armou todo esse teatro!
-Até parece que eu ia ficar de fora dessa. Armei todo o teatro e você, ótimo ator que é, se entrosou rapidamente. Só faltou a platéia.
-Por que não sai do meu pé, sua cretina? Por que sempre desconfia de mim?
-Porque eu tenho um faro mais apurado do que o de um cão labrador, amiguinho. Esse moço que está na sua frente é meu chapa Ricardo. Ele é um dos jornalistas que acompanha o caso. As mensagens fui eu quem enviou, ele nunca esteve envolvido. Só fez essa mega participação especial, não é Ricardão?
-Isso é manchete de jornal, minha amiga. – Ri.
-Pois então, meu caro Euclides. Esse gravador vai parar nas mãos do delegado Regis. Ele é mais esperto que todos nós, e com certeza vai querer saber em que hotel você esteve metido... Ai de você se não confessar. Será pior, acredite. Conselho de velha jornalista.
-Eu fui para a casa do meu tio!
-Ligue pro seu tio agora, vamos confirmar isso.
-Ele viajou...
-Viajou. Viajou sem telefone?
-Só dá fora de área, o delegado já tentou.
-Euclides, se você não disser em que hotel estava, saiba que essa história será divulgada na televisão. Pediremos a todas as redes de hotéis que verifiquem suas filmagens no mesmo dia e horário do crime. Vamos descobrir, de um jeito, ou de outro.
Julia desliga o gravador. Euclides saca uma arma da bainha da calça e aponta para ela. Ele se afasta dos dois, posicionando-se de maneira frontal para ambos.
-Me passa esse gravador, agora. – Ordena.
Julia fica sem reação.
-Vocês acham que eu viria desprevenido a um encontro com pessoas estranhas?
-Tem posse de arma, moleque? – Encara ela.
-É a arma do meu tio. – Mentiu.
-Largue essa arma, rapaz. Não cometa uma besteira. Será o seu fim se atirar. – Aconselha Ricardo, ponderado.
Euclides varia a mira do revólver; agora aponta para Ricardo.
-Meu fim? Vocês estão de brincadeira comigo? – Sorri – Eu mato vocês dois em questão de milésimos. Quando era jovem, íamos para o sítio do meu avô e ‘’brincávamos’’ de caçar. Eu sempre fui o melhor atirador, apesar de não ser reconhecido por isso...
-Se nos matar, será preso. – Lembra Julia.
Euclides torna a apontar a arma para ela.
-Não serei preso de qualquer maneira? Além do mais, eu não seria preso por isso. Vejam, não tem mais ninguém aqui! – Diz, tranqüilamente, abrindo os braços - Depois de ter atirado, eu me desfaço da arma. Ela não é minha mesmo, é do meu tio... Em todo caso, ele matou vocês dois e fugiu sem deixar rastros.
-Não é tão simples assim. – Pondera Julia, trocando olhares amedrontados com Ricardo.
-Estão impressionados com meu rápido raciocínio, hã? Tudo é simples para um homem de tamanha inteligência, como eu.
-Tem outra pessoa aqui. Ela será testemunha ocular de tudo que você fizer. – Continua Julia.
-Há, faça-me rir. Quem está aí?! Quem, vamos, se pronuncie! Fale de uma vez! Você é a rainha do blefe, Julia!
Ricardo se aproxima dois passos de Euclides, que nota essa ação.
-Ei, não ouse se aproximar, mocinho! Você mexeu com a pessoa errada.
-A pessoa já deve ter chamado a polícia a essa altura. Melhor você dar o fora o quanto antes, Euclides. – Alerta Julia.
-Cale essa boca e me passa esse gravador, sua vagabunda!
-Vai, Julia. Faça o que ele está mandando. Ele é desequilibrado.
-Vamos trocar. Você me passa a arma e eu te passo o gravador.
-Sem chances, gorda. O tempo está se esgotando. Como a polícia vem vindo, eu preciso me apressar...
-Passe o gravador, Julia! – Berra Ricardo.
-Está bem.
Ela se abaixa, vagarosamente, e ameaça lançar o gravador para os pés de Euclides. No entanto, age de modo inesperado. Ela arremessa o gravador para longe, na direção contrária de Euclides. Feito isso, ela se levanta.
-Vai pegar. – Manda ela, a um sorriso.
-Foi a última vez que brincou comigo, sua gorda cretina.
Euclides atira na barriga de Julia. Ricardo avança em Euclides, que rapidamente se vira e atira no jornalista. Ricardo desaba com um tiro certeiro no peito esquerdo. Julia agoniza, cai de joelhos com as mãos na barriga.
-Boa hora para convocar seus fantasminhas. Ponto final, redatora. – Sussurra Euclides, ao pé do ouvido de Julia.
Ele caminha em direção ao gravador e, quando se abaixa para pegá-lo, ouve uma voz vinda de trás de si.
-Fique onde está, Euclides.
Euclides, enfiando o gravador no bolso da bermuda, segurando a arma na mão direita, se vira lentamente e se surpreende ao ver o autor daquela voz que ele reconheceu, porém não levou fé que fosse aquela pessoa...
-Ariano.

Arlete está varrendo a cozinha quando ouve um chamado, vindo do quarto. Era seu marido, Walter. Ela corre até lá.
-O que foi, querido? O que houve?!
Walter está agachado, diante de uma das gavetas do guarda-roupa. Estava aberta, sem o fundo falso.
-Está vendo isso? – Ele diz a ela, apontando para o objeto.
-Sim... O Ariano. – Ela deduziu, de imediato.
-Ele descobriu onde escondo a minha arma e a pegou, Arlete! O Ariano saiu com a minha arma!
-Como descobriu isso, Walter?
-Eu percebi as minhas coisas remexidas de uma maneira estranha, e resolvi conferir... Eu cogitei que isso pudesse acontecer, ele é muito esperto e estava... Está com sede de vingança.
Arlete se exalta.
-Então porque não se desfez dessa maldita arma a tempo?!
-Não sei, Arlete, não sei! Eu imaginei isso, mas não acreditei que fosse acontecer! Meu Deus, precisamos achar o nosso filho agora.
-Vou ligar pra ele.
Arlete corre para a sala e telefona para o filho, muito aflita.
-Ele não atende! Chama, chama e nada!
O celular de Ariano... Tocava dentro do seu carro. Ele havia deixado dentro do carro...


Ariano caminha na direção de Euclides com um revólver apontado para ele.
-Não se mexa, Euclides.
Euclides também aponta sua arma para Ariano, com a mão trêmula.
-Pare, Ariano, pare...
-Eu não vou parar. Estamos duelando.
-Eu não quero duelar com você!
-Olha o que você fez, seu desgraçado!!
Ariano agora está diante dos corpos caídos no chão. Da barriga de Julia, o sangue jorra devagar, manchando de vermelho vivo o cinza morto do chão. Ela ainda tem os olhos arregalados, parecia respirar! Ariano se agacha até ela.
-Ari... Ariano... – Ela murmura.
-Julia, resista, pelo amor de Deus! – Implora, deixando escapar algumas lágrimas.
-Não... Não faça isso... – Ela pede.
-Não faça o que?!
Ariano logo deduz, e olha para o revólver em sua mão. Euclides se aproxima dele.
-Largue essa arma, meu irmão. Você não é um assassino.
-Mas estou preste a me tornar um. – Disse, erguendo-se, com toda sua fúria explodindo dentro do peito.
-Se me matar, irá amargar muitos anos atrás das grades. Um grande homem como você merece a presidência de um país.
-Cala essa boca! Seu imundo! Você matou essa gente toda... Você me enganou durante esse tempo todo... Você, você... – Ariano engasga nas próprias lágrimas. – Chegou a hora, eu vou te matar!
Ariano se aproxima até Euclides e encosta o cano do revólver no peito do assassino. Euclides permanece imóvel, e abaixa as mãos.
-Você ama a Lia Neide?
Ariano fecha os olhos e começa a pressionar o gatilho...
-Se você me matar, ela morrerá também. Ela está aprisionada em um local impossível de ser encontrado. Somente eu sei como chegar até lá. Ela está totalmente amarrada, amordaçada. Morrerá de fome, sede, na escuridão de um esconderijo repleto de insetos. Eu a seqüestrei.
Ariano abre os olhos. Seus olhos, antes pequeninos por detrás daquelas lentes grossas, agora estão enraizados em sua ira, arregalados. Seu olhar detona o olhar epilético de Euclides.
-Como posso saber que não está mentindo?
-Quer pagar pra ver? Quem ama, não arrisca a pessoa amada...
Ariano aperta o revólver contra o peito de Euclides.
-Onde ela está? Vai, fala!
-Você acha mesmo que eu ia entregar meu único meio de salvação? Ela é minha refém... E se eu morrer... Ela irá apodrecer. Aquela pele sedosa, aqueles cabelos, aquele cheiro de alfazema... Vai se esvair com o tempo. Se desgastar... Imagine, aquela linda mulher morrer nos braços do tempo, sendo sugada por insetos. Sendo tomada pela morte.
-Maldito!
Ariano abaixa o revólver, rendido.
-Eu não vou matar você agora, Ariano. Venha comigo, quero que tenha sua última chance de ver a mulher que ama. Agora, largue sua arma no chão.
Ariano relanceia Julia, que ainda agoniza. Ele hesita.
-Largue a arma e me acompanhe.
Escuta-se o som de uma música. Um chamado de telefone celular. Era o celular de Julia, que estava no bolso dela.
Ariano repousa a arma no chão.
-Eu vou atender – Anuncia Ariano.
-Não tente.
-Vou atender e pedir socorro. Ela ainda está viva, Euclides.
-Não faça isso, ou atiro em você e depois mato a sua amada Lia.
Ariano olha para Julia novamente e, de ímpeto, corre até ela. Euclides pula sobre ele. Os dois caem no chão. Ariano tenta alcançar Julia, sendo puxado pelas pernas por Euclides. Ariano acerta um chute no rosto de Euclides, que cai para o lado. Em seguida, enfia a mão no bolso de Julia, que ainda agoniza. Ele atende o celular.
-Alô, alô?!
-Ariano, filho! – Surpreende-se Arlete, ao reconhecer de imediato a voz de Ariano.
-Mãe, mande socorro pro galpão, perto do jornal onde...!
Euclides acerta uma forte coronhada na nuca de Ariano, que cai zonzo no chão, deixando o celular escapulir da mão. Euclides chuta o celular para bem longe. Ariano tenta se levantar, cambaleante, mas Euclides intercepta sua reação, chutando a boca de seu estômago. Ariano cai, apertando o local atingido.
-Eu disse pra não atender o maldito celular! Por que não me ouviu, Ariano? Por que nunca me ouvem?!
Euclides, descontrolado, acerta mais um chute na barriga de Ariano, que se encolhia no chão, indefeso.
O homem de olhar epilético monta sobre o corpo frágil de Ariano, segura com força em seus cabelos e puxa sua cabeça para trás.
-Me larga – Ele diz, tentando se livrar de Euclides.
-Eu odeio ter que te machucar, irmão, mas de vez em quando as coisas fogem do nosso controle.
Julia está se arrastando, com o braço esticado, na tentativa desesperada de alcançar a arma que Ariano deixara no chão.
Euclides bate o rosto de Ariano contra o chão, desmaiando-o. Feito isso, ele sai de cima dele, limpando as mãos em sinal de “missão cumprida”.

Arlete põe o telefone no gancho.
-Walter, o galpão, perto do jornal! O Ariano disse “galpão perto do jornal”! E ele está lutando com alguém, o Euclides, com certeza! Eu ouvi movimentos, vozes!
-Só pode ser o jornal onde ele trabalha, vamos para lá agora!
Walter apanha a chave do carro. Os dois correm até a garagem, entram no carro.
-Ele disse antes pra enviar socorro também, ai meu Deus, nosso filho, Walter! Ele está correndo perigo!
-Ligue pro socorro, pra policia também. Tudo vai terminar bem, fique calma.
O casal parte rumo ao local.

Euclides volta sua atenção para Julia, que, para sua infelicidade, foi flagrada pelo olhar epilético. Mesmo assim, ela não desiste, e sob a vista dele, continua se arrastando, deixando um rastro de sangue em seu trajeto.
Assistindo àquele esforço quase sobre-humano de Julia, Euclides gargalha, debochadamente. Ele se aproxima dela, a seis passos vagarosos.
-Agradeço a Deus, se é que ele existe, por estar vivo para ver essa cena... Hilária! Isso sim é uma atuação, Julia Medeiros! Quem é Bette Davis ao seu lado? Uma atriz de segunda, eu diria. – Dizia ele, em meio a risos.
Julia, num último fio de esperança, estica seu braço, mesmo sabendo que não seria possível alcançar o revólver a um palmo de distância. Euclides chuta o revólver para longe. Diante dela, rebaixada aos seus pés, ele diz:
-É com essa mesma mão que costuma escrever, Julia?
Ele dá um maldoso pisão na mão de Julia, como quem deseja matar com o pé o inseto mais asqueroso que existe. Ouvem-se os estalidos dos seus dedos. Dois, no mínimo, quebraram instantaneamente. Ele retira o pé, observando que havia fraturado dois dedos da jornalista.
-Me mate de uma vez, Euclides! – Ela grita, tirando forças do âmago; forças impulsionadas pela dor tremenda que sentira.
-Me mate e não machuque mais o Ariano...
-Engraçado, eu sempre quis entender o porquê de tanta proteção! O que, afinal de contas, você é do Ariano? Eu arrisco um palpite: sua preceptora sexual. Acertei?
-Não o machuque...
Julia “apaga”.
-Que sua morte seja bem lenta, Julia.
Euclides percebe que Ariano se mexia.
-Preciso acabar logo com isso.
Euclides apanha o revólver de Ariano e o coloca na cintura. Em seguida, caminha até ele e o segura pelas pernas, passando a arrastá-lo até a entrada do galpão. Ariano se mexia, sem condições de lutar. Suas unhas arranhavam o chão, numa tentativa inútil de se livrar das garras de Euclides. Escorria sangue pelo seu pescoço, devido a pancada recebida na cabeça. Sua boca também estava ferida, e seus óculos já haviam se perdido.
Euclides arrasta Ariano para fora do galpão.
-Cadê o seu carrinho cheirando a novo?
-Me solte e eu te levarei até ele.
Euclides tira a arma da cintura e a mira na cabeça de Ariano.
-Está bem, mas qualquer deslize... Você viu do que sou capaz, não viu? Eu não costumo hesitar.
Ele permitiu que Ariano se levantasse. Com a arma apontada na barriga do jovem, os dois caminham até o carro. Ariano entrega a chave a Euclides, que abre o porta-malas.
-Quer que eu vá aí dentro?
-Queria o que, voar na primeira classe pra Paris? Entra logo, irmãozinho.
Euclides continua apontando a arma para Ariano, que, sem escolha, entra no porta-malas. Euclides o tranca.
-Nosso passeio será breve. – Disse, dando dois tapas na lataria.
Euclides entra no carro e dá a partida. Saem da área do galpão, tomando a rua.
-Urrrú! – Vibra, sorridente – Nem acredito! To dirigindo o carrinho novo do Ariano e ainda vou comer a mulherzinha que ele ama na frente dele! Isso é demais!

Regis estava absorto na delegacia. Entrara na sala onde costumavam se reunir para tomar café e já estava ali durante um bom tempo... Caminhando, de um lado para o outro, pensando... Pensando em todas as hipóteses possíveis que envolviam o caso de Adalberto Rangel, o seqüestro de Lia... Pensando em seu relacionamento com Ana Lucia, e nos dezessete anos de casado com aquela mulher. Pensando no que seu filho estava pensando a seu respeito... Não tivera coragem de encará-los desde o momento fatídico da agressão... Em todos os pensamentos, Euclides surgia, como um demônio, murmurando palavras maniqueístas nos ouvidos de sua alma, tentando manipulá-la a todo custo. Em seguida, surgia ele como um anjo, uma grande vítima, conforme o próprio se autodenominara.
Bebendo o décimo copinho de café, Regis concedeu um minuto de sua atenção para um quadro pendurado à parede. Uma bela pintura, que nunca atraiu o olhar arguto de Regis. Ele, que não era muito dado a interpretações de obras de arte, agora estava ali, a admirá-la minuciosamente...
Um olho, um grande e assustador olho. Um olho causando um olhar. Um olhar para onde? Um olhar para si, um olhar para o outro. Um olhar epilético, um olhar até melancólico... A singularidade de um olhar. Um olho azul, azul de céu. Um céu de nuvens. Nuvens que trocavam de formas o tempo todo... O homem também é um ser flexível, repleto de mudanças drásticas de personalidade. O homem é a nuvem que habita o céu do seu próprio olhar.
Regis pensou em tudo isso, em questão de segundos. Estava em transe diante daquele quadro, “O falso espelho’’, de Rene Magriitte. Até que, como num mal súbito, ele deixa o copo de café cair no chão.
-Quadros... Pintura...
Regis corre em direção a sua sala, apanha na gaveta um revólver e a chave de um dos carros da polícia. Sai em disparada, indo ao encontro de Paulo, o policial que o havia acompanhado até a casa do tio de Euclides mais cedo.
-O que houve, chefe?
-Paulo, você se lembra de ter visto algum cômodo com objetos de pintura, arte, essas coisas, na casa em que fomos hoje? Algum escritório, algo assim?
-Não, nada disso, senhor. Só os cômodos básicos de uma casa. Por que, descobriu alguma parada?
-Vem comigo, Paulo. Te explico no caminho!

No trajeto, Ariano começa a socar a lataria do porta-malas, causando um considerável barulho. Ele soca e grita por socorro. Euclides ouve o estardalhaço e o manda ficar quieto. Ariano não o obedece e continua. Euclides se preocupa ao ver que logo mais adiante o sinal estava fechado.
-Só faltava essa...
Ele liga o som, e põe o volume no limite máximo. Tocava um funk naquela estação. O “batidão” ajudou a confundir os murros de Ariano no porta-malas, que precisou tapar os ouvidos, uma vez que ali atrás havia uma caixa de som acoplada...
O carro parou no sinal. O som alto chamou atenção de um casal, que estava parado ao lado, em um Fiesta vermelho.
-Esses garotos só ouvem esse lixo musical... – Resmunga a mulher, no banco carona, lançando um olhar reprovador a Euclides. Euclides nota que está sendo mirado. Ariano continua a socar o porta-malas, em vão. O sinal abre. Euclides sente um alivio. Nem tanto... Ouvir aquela música lhe dava nos nervos!
Dez minutos depois, chega em seu destino. Ele sai do carro e já abre o porta-malas olhando para os lados, certificando-se se vinha alguém perto. Estava com a arma discretamente apontada para Ariano.
-Saia devagar daí, irmãozinho. Sem movimentos bruscos...
-E se eu não quiser? Vai atirar em mim, em público?
-Sim, e entraria rapidamente naquela casa para matar a Lia também, antes que pudessem colocar as mãos em mim. Mataria os dois, sem dó nem piedade. Não tenho piedade de absolutamente ninguém. Eu fui tão insignificante que nem pena tiveram de mim... Por que eu teria pelos outros? Vamos, sai logo, venha ver a menina dos seus sonhos.
Ariano prefere não contrariar Euclides, em nome de seu amor por Lia. Sem contar que ainda tinha esperança de resgatar Lia, e, para tanto, precisava se deixar ser levado até ela. Sai ofegante do carro, pois além de tudo, sofrera com a quentura térmica daquele cubículo. Euclides o abraça, escondendo a arma entre seus corpos. Seguem abraçados para a casa. Lá, ele empurra Ariano para sua frente, apontando a arma para suas costas. Ariano caminha um pouco confuso.
-Onde ela está? Cadê a Lia, seu desgraçado?
-Calminha... Apressado come cru! Ah, no seu caso, não come nada...
Euclides ri, zombeteiro. Ele encaminha seu refém para o quarto que dava acesso ao porão.
-Bem, o negócio é o seguinte: mova essa cama do lugar e depois o tapete.
-Por que? Vai me matar e ocultar meu corpo no porão da casa?
-Não vou te matar ainda. Calma! Está com pressa até de morrer! Faça isto e encontrará a sua queridinha.
Ariano empurra a cama e puxa o tapete. Encontra a alavanca. Ele a puxa, abrindo a passagem para o porão.
Euclides se aproxima da abertura. Ariano, num ato intempestivo, pula sobre Euclides em direção ao buraco. Ambos caem no porão, a uma queda de dois metros. Uma espessa poeira é levantada no ar após colidirem seus corpos no chão do porão. Euclides batera a cabeça. Estava temporariamente desacordado. A arma havia escapado de sua mão. Ariano, sentindo o corpo muito dolorido, se ergue com dificuldade, com a respiração arquejante. Ele olha para Lia, que, angustiada, observa àquilo tudo.
-Eu vou te libertar, Lia.
Ele caminha mancando até Lia, abaixando sua mordaça.
-Você ta bem?! – Pergunta ele, acariciando seu rosto.
-Ai, graças a Deus, Ariano... – Aos prantos - Cuidado, ele ta se mexendo! – Ela alerta, olhando por cima do ombro de Ariano.
Euclides tenta se levantar.
-Vou dar um jeito nisso, Lia. E vai ser agora.
Ariano se dirige até Euclides e lhe acerta um chute no rosto. Euclides, que já havia se agachado, cai, zonzo. Ariano sobe sobre ele e lhe acerta mais um soco na cara. Euclides cospe sangue no rosto de Ariano.
-Vai, bate mais. Sua mão é muito leve...
Enfurecido, Ariano reveza os murros: direita, esquerda, direita... Pausa. Ele respira. Euclides está com o olhar epilético mirando um Ariano tão enlouquecido quanto ele.
-Por que...? – Indaga Ariano, buscando resquícios de fôlego nos pulmões – Por que?! Por que eu, por que toda essa inveja, essa perseguição... Por que, Euclides?
-Somos mais do que amigos... – Murmura Euclides, tossindo sangue – Somos irmãos.
-Eu nunca fui seu irmão...
-Foi, você já foi... Você sempre foi como ele... Sempre foi como meu irmão...
-O que está dizendo?...
-Eu matei o meu irmão, Ariano. Mas ele voltou... Ele volta sempre, em várias formas, em vários homens... Eu sempre o vejo publicar livros, crônicas em jornais, tirar notas máximas na escola, na faculdade... Meu irmão me persegue desde que o matei. Você é a forma mais perfeita dele. Você é perfeito...
-Nunca fui perfeito, Euclides. Nem tenho essa pretensão, que coisa mais ridícula... É por esse motivo idiota que sempre me desejou mal, sempre quis tudo que tenho?
-Idiota pra você, que nunca passou pelo o que eu passei... Desde pequeno, sou renegado... Eu nunca fui eu. Eu nunca consegui firmar uma personalidade... Crio ilusões, na minha cabeça, crio... Crio estereótipos de perfeição... Quem sou eu, Ariano?
Ariano fixa bem o olhar no semblante arrasado e inerte de Euclides. Em seguida, percebe que uma das mãos de Euclides deslizam pela barriga dele...
-Seu canalha!
Ariano arranca da cintura de Euclides a arma de seu pai, o qual havia pegado no galpão. Euclides ainda tenta agarrá-la antes, sem sucesso.
-Estava me enrolando com essa conversinha pra conseguir pegar o revólver...
-Táticas de sobrevivência, meu irmão.
-Nunca mais me chame de seu irmão.
Ariano encosta o cano do revólver na testa de Euclides. Euclides abre um sorriso, com seus dentes manchados de sangue.
-Vai, irmãozinho... Atira em mim, atira! – Instiga.
-Não, Ariano! Não estrague a sua vida! A dele já está perdida! – Clama Lia.
Ariano olhava bem nos fundos dos olhos assustadores de Euclides, ofegante.
-Você não apertará esse gatilho.
-Como pode ter tanta certeza?
-Sua mão está tremendo... Você não é um assassino, Ariano. Você não tem essa capacidade. Só eu tenho. Eu sou o mais talentoso. E serei reconhecido por isso...
-Não caia na dele, ele está te provocando, Ariano! – Suplicava Lia, em sã consciência.
A fúria de Ariano só fazia crescer, e aquela vontade mórbida de atirar... De apertar o gatilho...
-Engraçado... Nunca foi reconhecido por nada, então apelou para o mundo do crime. Isso não tem a ver com talento. É a última alternativa.
-Ariano, deixe de bobagem! Me mate! Vai ficar dando ouvidos àquela vagabunda ali? Tem certeza que prefere continuar acreditando nas palavrinhas meigas dela? Acha mesmo que ela gosta de você? Eu não teria tanta certeza...
-Você não tem certeza de nada, nem mesmo de quem você é!
-Você tem certeza de quem você é? Alguém nesse mundo tem certeza de alguma coisa? Ah, esqueça! Não é hora de filosofar! É a hora da morte. Estou aqui, entregue, sem reagir, esperando você apertar o gatilho. Ariano, Ariano... Desde o momento que adquiriu essa arma você já tinha em mente o que fazer. Por que recuar agora?
-Ariano, ele não tem mais saída, ele quer te levar junto!
-A Lia é boa de cama, Ariano. – Diz Euclides, como quem não quer nada, mas no fundo, deseja atingir em cheio seu oponente.
Ariano aperta o cano do revólver na testa de Euclides.
-Não, é mentira! Não aconteceu nada!
-Ah, Lia... Chega de mentir para ele! Ta certo, você não queria nada comigo, mas eu te peguei a força, e consegui te roubar seu bem mais precioso: sua donzelice.
Euclides sorri, repleto de falsa satisfação.
-Você não fez isso com ela, fez?
O corpo de Ariano tremia por inteiro. Seu sangue borbulhava... Nem mesmo ele sabia mais o que o impedia de matar Euclides.
-Oh! O lençol ficou até manchado de sangue.
-Ele não conseguiu fazer isso, Ariano. Ele é um incompetente com as mulheres! Nem estuprar uma garota indefesa ele sabe. – Provocou Lia, tentando desarmar a armadilha de Euclides.
-Por que nunca confiou na minha palavra e sempre acreditou na dela? Ela não vale nada, não te merece. Pergunte a ela se ela te ama, pergunte, seu otário apaixonado!
Ariano cerra os olhos com força, deixando fugir lágrimas. Ele os seca rapidamente.
-Ele quer te deixar com raiva... – Murmurou Lia, temendo a reação de Ariano.
-Você me ama, Lia? – Indaga o jovem, sem desviar os olhos de Euclides.
Lia hesita.
-Não, Ariano. – Responde Euclides – Ela demorou pra responder, isso sig...
-Cala essa boca!
Ariano acerta um soco na face de Euclides.
-Diz, Lia!
-Ariano, eu te amo.
-Há, há, há, há! – Gargalha Euclides, recuperando-se do soco – Agora você ama, né, espertinha? Dizer que ama sob uma pressão dessa até eu diria que amava a Xuxa!
-Lia... É verdade o que está me dizendo? – Pergunta Ariano, esperançoso, olhando para Lia.
-Eu te amo como um grande amigo.
Aquelas palavras se materializaram em um balde cheio d’água fria, molhando todo o coração de Ariano.
-Viu só, irmãozinho?
-O amor de uma amizade é o mais puro que existe. – Continua ela.
-Então eu havia pureza entre nós, irmãozinho? – Caçoa Euclides.
-Cala essa boca suja, nunca fomos amigos de verdade! Você sempre quis me ver mal! Sempre fingiu gostar de mim!
-Eu gosto de você. Tanto que quero você me mate. Se fosse outra pessoa... Como eu não pude tê-lo vivo em minhas mãos, quero ter a honra de morrer nas suas.
-Diga suas últimas palavras, Euclides dos Santos. Você terá essa honra. – Decreta Ariano.
-Não, não, Ariano... Ligue para a polícia, mas não faça isso.
Euclides sorriu, amargurado.
-Últimas palavras... Como pode um homem sentir-se a si mesmo quando o mundo some?
Ariano refletiu a respeito daquele dizer.
-Carlos Drummond de Andrade. – Disse Lia Neide, reconhecendo o trecho retirado de uma poesia do poeta mineiro.
-Na mosca, Lia Neide.
Por um momento, Ariano sentiu uma intensa piedade daquele ínfimo ser sob si. Ponderou a respeito de muitas palavras ditas por Euclides... Sobre seu irmão, sua personalidade, sua família, sua vida sem brilho. Chegou à conclusão de que Euclides era a grande vítima daquela história.
-O que está esperando pra tirar a minha vida, Ariano? Já disse o meu epitáfio.
-Por isso quer tanto morrer, não é, Euclides?
Euclides sobressaltou-se com o olhar de Ariano; um olhar claro, sabedor das razões humanas.
-Não quer morrer pra me prejudicar, não é isso. Quer morrer porque não suporta mais viver essa vida medíocre, essa vida sem perspectiva, essa vida... Vazia. O mundo sumiu para você, lhe virou as costas. Você sempre procurou uma razão para viver nesse mundo que nunca esteve nem aí para você. Encontrou? Creio que não...
Ariano nunca esteve tão soberano. Pela primeira vez, Euclides se sentiu completamente derrotado e sem argumentos. Ariano atingira o ponto certo. Fez-se um silêncio eloqüente.
Ouvem-se passos vindos do cômodo acima do porão. Regis observa a abertura do porão, apontando a arma para baixo. De lá, pôde ver nitidamente a situação. Viu que Ariano dominava Euclides, apontando o revólver para a sua testa.
-Ariano, não atire... – Pede o delegado, calmamente – Lembre-se do que eu lhe disse ontem, na delegacia.
Ariano relanceia o delegado, tornando a mirar Euclides. Considerou as palavras do delegado. A tranqüilidade invadia lentamente o seu ser.
-Tudo bem, delegado. Eu não sou, nem nunca serei um assassino. Admito, Euclides. Não sou capaz de matar um ser humano. Além disso, eu não faria esse bem a você. Você tem muitas dívidas ainda neste mundo, meu caro irmão. – Finalizou, irônico.
Ariano se levanta, ainda segurando a arma. Regis desce a escada do porão, enquanto Paulo lhe dava cobertura logo acima. Ao chegar lá embaixo, Regis deparou-se com Lia, aprisionada.
-Fim de caso. – Ele decreta.
Se abaixa, ajudando Euclides a ficar de pé. Ele se levanta, olhando tristemente para Ariano, que, por sua vez, retribuía um olhar aliviado e tristonho também.
Ariano olha para a arma em sua mão; ela agora pesava, mais do que nunca. Ele a repousa no chão.
-Vou subir com ele, Paulo. – Anuncia Regis.
Euclides sobe a escada, totalmente rendido. Estando lá em cima, é prontamente algemado por Paulo. Regis liberta Lia Neide.
-Como descobriu, delegado? – Pergunta Ariano, exausto.
-Euclides dissera em seu depoimento que seu tio, Charles, era pintor. No entanto, hoje pela manhã, viemos aqui e não encontramos nada que remetesse à pintura, nenhuma tela, nada. Recebi uma iluminação... Me lembrei disso e vim o mais rápido que pude. Sabia que poderia haver um porão.
-O tio dele?... – Diz Lia, lânguida – Ele disse que estava ali, naquele baú.
Ela aponta para o baú.
-É... Pelo visto, temos um longo trabalho pela frente – Analisa Regis, ao perceber outro corpo ao lado do baú, enrolado no lençol.
Lia caminha até Ariano e o abraça.
-Obrigada... Estamos a salvo.
-Eu te agradeço por não ter me deixado matá-lo. Eu confio em você porque... Porque te amo.
Lia olha nos olhos de Ariano e aproxima sua boca à dele. Ela o beija, finalmente.
Regis sorri, timidamente, e deixa o recinto.
-O porão da morte agora é o porão do amor, ele ri, enquanto subia a escada.
Eles cessam o beijo.
-Não sabe por quanto tempo esperei por esse beijo seu, Lia.
-Eu sei sim. E como sei... – Ela diz, a um sorriso.
Eles se abraçam.

Lia Neide e Ariano conversavam na enfermaria do hospital, onde haviam feito alguns curativos, quando Arlete e Walter chegam.
-Meu filho!
Arlete corre para abraçar Ariano, emocionada. Em seguida, o jovem é cumprimentado pelo pai. Lia também recebe abraços fortes.
-Como você ta, ele te machucou, filho, me diz!
Arlete, extasiada, não desgrudava de Ariano.
-Agora estamos todos bem, mãe. Mas me diz, vocês chegaram a tempo no galpão? Como está a Julia?! – Pergunta, muito preocupado.
Arlete e Walter se entreolham, cabisbaixos.
-Ela foi levada para o hospital mais próximo, filho. Ela... Ela estava em estado grave...
-Minha Nossa Senhora! – Diz Lia, contristada.
-O outro rapaz, o jornalista que também foi baleado, foi a óbito, infelizmente. – Informa Walter.
-Pai, eu quero ir até lá. Quero ir aonde a Julia está internada.
-Ela está sendo operada. Ariano, tem certeza disso? Você também está se recuperando... – Diz Arlete.
-Mãe, eu estou bem! Eu quero ir ver a minha... A minha segunda mãe.
Arlete espanta-se com o exacerbado carinho do filho pela redatora, mas não o repreende. Pelo contrário, ela concorda em levá-lo.
-Eu também quero ir. – Diz Lia.
-A sua mãe está vindo para cá.
-Vamos esperá-la, e vamos todos juntos. – Decide Walter.
Ariano segura a mão de Lia, e diz, confiante:
-A Julia vai ficar bem, ela é forte.
Lia o abraça, chorando.

Vitor é surpreendido ao ser chamado por um policial, que abria a sua cela.
-O que houve? O que querem de mim? – Ele pergunta, assustado, indo até o gradil.
-Tu ta solto, rapaz. Sua inocência está provada.
Vitor abre um largo sorriso, em meio às lágrimas que começaram a rolar em suas faces.
-Obrigado, meu Deus! – Ele agradece, a um louvor.
O policial o acompanha e, no caminho, eles cruzam com o verdadeiro criminoso: Euclides dos Santos.
Euclides vinha sendo trazido pelo delegado Regis, que fez questão de assumir esse ato de prisão. Vitor troca um olhar raivoso para Euclides, que olhava vagamente para o “nada”.
Ele entra em uma cela vazia. Regis o tranca.
-Devo jogar a chave fora? – Pergunta, balançando a chave.
Euclides olha ao redor, sentindo uma náusea tremenda naquele instante. Ele não resiste, e vomita no centro da cela.
-Meu Deus, que chato... Acho que os faxineiros estão de folga hoje, Euclides. Melhor ir habituando suas narinas com esse cheiro de... Vômito.
Euclides se ajoelha, recuperando o fôlego. De costas para o delegado, ele diz, em tom melancólico:
-Me deixe sozinho.
-Por enquanto você ficará aqui, sozinho mesmo. Mas não por muito tempo. Comece a imaginar uma cela como esta com mais vinte homens dentro, roçando em você, importunando você... E olha que eles adoram carne nova.
-Me deixe em paz! – Berra, com gotas de vômito pingando da boca.
-Não era obsessão, Euclides. Era certeza. – Declara o delegado – Ainda bem que a verdade sempre aparece. Fique sozinho. Este é o seu destino.
Regis deixa o local. Euclides permanece de joelhos, olhando para o que acabara de regurgitar. Ele chora, longa e dolorosamente.

Já havia anoitecido quando o cirurgião que realizou a operação de Julia veio ter com as pessoas que aguardavam notícias a respeito dela na sala de espera. Ariano, Lia, Arlete, Dona Beatriz, Haroldo e mais duas amigas da redatora estavam muito apreensivos. O médico foi cauteloso:
-E então, doutor? – Perguntou uma de suas amigas do Centro Espírita.
-A operação foi bem sucedida.
Todos sorriram.
-Porém, ela ainda está em coma induzido. Ficará mais algum tempo no CTI. Faremos outros exames ainda... No entanto, a bala foi retirada, e tudo correu bem.
Arlete abraçou seu filho, que, assim como Lia, estava em cacos, e, no entanto, não arredaram pé daquele hospital. Um ato incrível de solidariedade.
Regis chegou em casa muito cansado, porém, satisfeito e feliz com o resultado do inquérito e do seqüestro de Lia Neide. Mas sua felicidade logo esbarrou no que acabara de encontrar... A casa vazia. Na porta da geladeira, um bilhete preso a um imã: “Fui para a casa de minha mãe. Preciso pensar... Na minha e na nossa vida. Levei o meu filho. Ana Lucia”.
Regis recosta a testa na porta da geladeira, arrasado. Esta seria uma longa noite... Uma noite de reflexão.

Dois dias depois...
Regis fora interceptado na entrada da delegacia por três jornalistas. Ele, bastante estressado, se recusa a dar entrevista. Os jornalistas insistem. Ele pára.
-Vou conceder apenas um minuto do meu precioso tempo a vocês.
-Sr. Delegado, como Euclides dos Santos, “o assassino diário”, conforme passou a ser chamado pelo povo, está reagindo a sua prisão?
-Ora, como todo prisioneiro reage! – Sorri Regis, a uma pachorra – Está isolado, está refletindo em tudo que fez.
-Ele chegou a confessar os seus crimes, delegado? – Pergunta outro jornalista, levando o microfone a boca de Regis.
-Sim, ele... Ele nos concedeu um depoimento, e nesse depoimento... – Regis vacila, lembrando palavra por palavra de Euclides – Ele confessa, detalhadamente, todos os seus crimes.
Regis chega a sentir um mal estar ao se recordar do dia anterior, dia em que Euclides depõe para a policia e para um psicólogo, que tentava analisar as intenções que ocasionaram os homicídios.
-Por que todas essas mortes, Sr. Delegado? Ele chega a dizer os motivos, se é que tenha havido razões para tais atos?
-Claro, ele não deixou nada por dizer. Ele agiu como age um perfeito psicopata: matou e confessou com gosto cada detalhe, cada porquê. Mas o que realmente acarretou a todos esses homicídios foram apenas dois sentimentos:
-Quais são eles, delegado?
Regis hesita, e responde:
-Indiferença e inveja.
Regis se retira.

Rodolfo chegou à delegacia onde Euclides estava preso.
-Quero ver o meu... O prisioneiro Euclides.
A essa altura, a mídia em peso já havia noticiado várias vezes a prisão de Euclides, relatando todos os seus crimes comprovados. Rodolfo e Amália sofreram, principalmente, com a confissão de dois homicídios: Dona Hilda e Charles, ambos parentes.
Ele fora revistado, e levado até uma sala reservada. Ele fica al, sentado, aguardando a chegada de Euclides.
Euclides chega um minuto depois, acompanhado por um policial, que fica à porta. Estava algemado. Ele se senta defronte o pai. Tinha olheiras terríveis, e uma expressão mortificada, sem nenhum traço sequer que pudesse ser ligado à palavra vida.
-Eu não ia vir, Euclides.
Euclides manteve-se cabisbaixo.
-Eu assisti a tudo pela tv... A polícia foi lá em casa, me mostraram o relatório da sua confissão... Eu e sua mãe não conseguimos mais viver sossegados por sua causa. O que foi que você disse naquela confissão, Euclides? O que foi aquilo? Você jogou a culpa sobre nós, seus pais! – Esbraveja, indignado.
-E não é?
Ele encara o pai, melancolicamente.
-Isso é armação sua... Eu te conheço... Quer o que, que o povo, o juiz, ou seja lá quem for, tenha peninha de você? Criança maltratada pelos pais, maltratada emocionalmente! Mas que... Mas que viadagem, Euclides!
-Admita sua parcela de culpa, papai.
-Não me chame de pai, seu desgraçado. Eu não sou mais o seu pai desde aquela surra que te dei. Sabe o que é pior? É saber que você também matou o meu verdadeiro filho! Eu não pude acreditar quando li e ouvi aquilo... Sua mãe está arrasada.
-Que se danem vocês.
-Você é bem pior do que eu pensava, nossa. Você é um monstro. E eu criando um monstro debaixo do meu teto esse tempo todo. Alimentando um monstro.
-Você alimentou o monstro em vários aspectos. Alimentou o monstro que habita em minha alma.
-Quer saber? Você matou o seu irmão, mas... Ele, ainda hoje, está mais vivo dentro de mim do que você, que está aqui, respirando e falando na minha frente. Você morreu, morreu para mim e sua mãe. Se depender de nós, desejamos a sua morte física, apodrecendo na prisão.
-Isso que diz agora não significa absolutamente nada para mim – Sorri Euclides, amargurado – Eu sempre estive morto para vocês, ou seja... Isso é mais do mesmo.
-Esta é a última vez que falo com você. Minha vontade era de... Era de ficar aqui te humilhando, te surrando, por horas!
Rodolfo fecha a mão direita, mordendo-a de raiva.
-Mas não, eu to me controlando... To me controlando porque não se bate em gente morta. Adeus, “assassino diário”. Sofra tudo que tem pra sofrer nessa prisão, o resto de sua triste vida.
Rodolfo se levanta, friamente.
-A sua sentença ficará latejando pelo resto da sua vida, em sua consciência. – Diz Euclides, quando Rodolfo já se virava para ir embora.
Rodolfo se detém, e, sem se virar novamente, diz:
-Ouvi alguém falar comigo? Hum – Deu de ombros – Acho que não.
E sai da sala, imponente, mas, no fundo, quebrantado. Sabia de suas falhas como pai. Mas jamais daria o braço a torcer.
Euclides permaneceu ali, calado. E, subitamente, começou a rir, e rir, e rir. O policial foi buscá-lo, e perguntou o porque do riso.
-Acabo de cometer mais um assassinato: a da consciência do meu queridíssimo ex-papai. Ponha mais esse na lista. Mais um pro dia do “assassino diário”.
E foi rindo para sua cela.

Julia Medeiros já estava no quarto da enfermaria. Havia se recuperado magistralmente bem, superando as expectativas médicas. Naquele momento, ela recebia uma querida visita.
-Ariano...
Ela sorri enquanto Ariano caminha até sua cama, e segura sua mão engessada.
-Minha mãe. Minha mãe espiritual. – Diz Ariano, emocionado.
Julia fica extremamente feliz com aquele reconhecimento de Ariano. Pela primeira vez, ele a chama de mãe, e de um modo muito especial. Ela sentiu aquela energia vindo dele, e renovou-se ainda mais.
-Meu filho... Não quer segurar a mão boa?
Eles riem, evitando as lágrimas. Ela lhe dá a mão esquerda.
-O médico disse que foi um milagre você ter sobrevivido.
-Eu sempre acreditei em milagres, todos os dias da minha vida. Não seria justo o milagre não acreditar um dia em mim, não acha?
-Sua proteção espiritual é muito forte.
-Eu viajei, Ariano... Viajei a lugares fantásticos.
-Enquanto estava em coma? Eu nunca acreditei nessas historias, Julia! – Ele ri, sem graça.
-Não precisa acreditar, Ariano. Na hora certa, a verdade é revelada a cada um. A verdade que nos fará bem.
-E você o viu?... O seu...
-Não. Mas o vejo, e principalmente o sinto, aqui, e agora.
Ela aperta a mão de Ariano.
-Você foi um herói, garoto. Você me salvou. Você salvou a Lia também. Estou orgulhosa, mais ainda, de você!
Agora ela não segura as lágrimas.
-Eu não sou herói, nem vilão. Sou uma pessoa como qualquer outra.
-Não! Não renegue sua luz!
-Todos nós temos nossa luz própria.
-Sim, mas a sua brilha intensamente, Ariano... Como a luz do sol, que ofusca a visão de muitas pessoas... Sabe o que estou dizendo, não sabe?
-Ele pagará por tudo, o Euclides. Esse é só o começo do sofrimento dele.
-Esqueça o Euclides. Viva a sua vida de agora em diante livre de qualquer lembrança ruim. Liberte-se! Ilumine a todos! A inveja é o pior dos pecados, e sempre vai existir isso na vida dos iluminados. Mas cada Caim tem sua marca.
Ariano beija o rosto de Julia, e a abraça carinhosamente.

Um carro havia estacionado próxima a porteira daquele modesto e gracioso sítio. Dele, um homem de vestes despojadas, calçando um tênis esportivo, sai e vai a direção à porteira, que estava aberta. Ele caminha devagar até a casa que se avistava mais à frente no terreiro. Logo é surpreendido por algumas galinhas, as quais ele espanta despropositalmente.
Ele segue, sorrindo com a situação. Há muitos anos não “lidava” com granja, ou qualquer outro animal criado em fazendas. Defronte a fachada da casa, ele bate palmas. Uma mulher não demora vir atendê-lo.
Vestindo um longo vestido florido, a mulher se surpreende positivamente ao ver aquele homem ali, em sua frente.
-Deus, o que faz aqui?!
Regis sobe os quatro degraus que davam pra varanda de fachada, e se aproxima de Ana Lucia, sua esposa.
-Dezessete anos, aliado ao meu amor, são razões suficientes para me perdoar?
Ana Lucia, num misto de incredulidade e felicidade, o abraça e o beija.
-Acho que foi um sim.
Os dois sorriem.
-O Euclides conseguiu até mesmo criar uma ruptura em nosso casamento. Eu senti raiva na hora, mas... Sei que fez isso porque perdeu totalmente a cabeça. O Euclides também me enganou muito, entendo o que passou, Regis.
-Agora ele está pagando cada crime, cada mentira. Em breve será julgado, e condenado.
-Eu vi tudo pela tv... Liguei pro Ariano também. Mas vamos esquecer tudo isso, e falar de nós. Céus, a ficha ainda não caiu! O que faz aqui, seu doido? E o seu trabalho?
-Tirei licença, e se precisar voltar, estou impossibilitado, alego qualquer outro problema, sabe por que?
Ele alisa os cabelos de Ana.
-Porque agora, o que mais me importa, é a reconciliação com a minha família. Eu amo vocês, e nunca demonstrei isso como eu deveria demonstrar. O que aconteceu serviu, de certa forma, pra eu rever muitas das minhas atitudes como marido e pai.
-Regis, você sempre foi um marido incrível. Eu é que não sou exemplo pra ninguém, como você mesmo já me disse...
-Eu assumo uma parcela de responsabilidade do seu vício.
-Que isso, amor, de onde tirou isso?
-Eu sempre vivi mais para o trabalho do que em prol da minha família. Eu compreendo a sua entrega ao mundo das bebidas, apesar de reprovar.
-Eu to sóbria há cinco dias, Regis – Diz, orgulhosa - E eu não te culpo por nada disso que ta acontecendo. Não existe culpado. Existe um relacionamento desgastado por vários fatores.
-Eu quero reconstruir nosso casamento. Você topa?
Ela sorri, e diz:
-Mas é claro que eu topo.
Os dois se beijam, demoradamente. Pietro, o filho do casal, sai de casa neste momento, e os observa, abrindo um sorriso aliviado em ver os pais unidos novamente.
Regis encara o filho e se dirige até ele:
-Meu molecão, vem dá um abraço no pai, vem.
Pietro hesita, olha para mãe, que assente com a cabeça. Então ele vai e pula nos braços do delegado Regis que, acima de tudo, era um pai de família. E este era um dever de pai: dar amor, carinho e atenção a seu filho. Ser presente. Reconhecer seus talentos, e apoiá-lo nas dificuldades que a vida opõe. Ser um pai exemplar é contribuir para o crescimento íntegro de uma criança, de um adolescente. É fazê-lo encontrar o seu próprio caminho com boas indicações, e não forçá-lo a caminho algum. Não forçá-lo a ser quem ele não é em essência. Um homem deve sempre desejar ser mais consigo mesmo, e nunca desejar ser outro homem.

Dez dias depois...
Ariano acompanhou Lia Neide e sua mãe até a rodoviária. Não conseguia esconder a enorme tristeza que o abatia, devido aquela decisão de sua amada.
-Adeus, Ariano.
Lia despediu-se com um beijo no rosto. O ônibus partiria em cinco minutos.
-Por que, Lia? Não faz diferença ir, ou ficar. Fique comigo, e verá a diferença! – Insistia, com os olhos marejados.
-Ariano, nós já conversamos sobre isso... Eu e minha mãe sofremos muito nos últimos meses, você sabe... Precisamos descansar, e esquecer tudo isso.
-Se mudar não te fará esquecer nada, Lia.
-Não estamos nos mudando de vez, entenda isso. É temporário...
-Duvido que seja. Você vai arranjar um emprego em São Paulo, provavelmente vai conhecer o cara dos seus sonhos, e... E vai optar por ficar de vez. Eu sei que isso vai acontecer, eu sei. – Disse, transtornado.
-Venha, Lia. – Chama Dona Beatriz.
Lia olha com ternura para Ariano.
-Eu pensei que a gente fosse ficar juntos, Lia.
-Preciso pensar em muitas coisas da minha vida. Colocar tudo de volta em seu lugar. Depois... O tempo dirá o que será de nós.
-Eu não sei se vou agüentar viver longe de você.
-Para com isso! Assim você me parte mais o coração.
-Pois então vá, Lia Neide. Vá, descanse, reflita, organize sua vida.
-Está sendo grosso comigo.
-Não, eu só estou... – Ele engasga, com um nó na garganta – Estou me despedindo.
Ele se aproxima de Lia, e a beija na boca. Suas lágrimas se misturam às salivas do beijo. Ela o afasta, balançada.
-Adeus, Ariano. Eu voltarei.
Ele abaixa a cabeça, secando as lágrimas. Lia e Beatriz se vão, entram no ônibus. Estavam de partida para São Paulo, morar temporariamente na casa da irmã de Beatriz com o intuito de recompor as forças após tantos momentos conturbados. Estavam com medo também. Por mais que Euclides estivesse preso, um medo terrível ainda as atormentava. Um trauma.
Ariano não se conformava. Temia não vê-la mais. Temia não conseguir apagar aquele amor do seu peito. Aquele amor tantas vezes declinado.
Entrou em seu carro, deu partida e saiu sem rumo pelas ruas. Tomou uma estrada, sem saber onde ela daria. Ligou o som do carro e, aos prantos, ele seguia dirigindo, enquanto a mensagem da música do R.E.M, que tocava naquele momento, encaixava-se aos seus pensamentos...
- “Não desista de si mesmo... Pois todo mundo chora, e todo mundo se machuca às vezes...As vezes tudo dá errado. Agora é hora de cantar sozinho”...
Lia Neide também chorava, olhando a paisagem pela janela do ônibus... Chorava por motivo desconhecido. Chorava em sua redoma, trancafiada. Chorava em sua flor que já não desabrochava mais...
Julia também chorava, e sorria também, com a fotografia de seu filho na mão ilesa. “...Se você tiver vontade de desistir, agüente firme”... Ela aperta a foto contra o peito, e faz uma oração. Uma oração particular...
Regis, Ana Lucia e Pietro retornavam do sítio, ouvindo música no carro. Todos se divertiam, sorriam, e se amavam.
Euclides estava sentado no canto de sua cela, encolhido... Os olhos estavam fechados... Estava só, completamente só. Mas era acostumado com a solidão. Em sua concepção, a que o consolava de certa forma, todos eram solitários nesse mundo repleto de pessoas que só pensam em si mesmas...
Após rodar bastante tempo por estradas desconhecidas, Ariano retoma seu rumo. Ele segue para a praia.
Lá, ele se senta na areia quente, e fica a observar o quebrar das ondas... Ele se perde em seu horizonte. O céu estava totalmente azul.
Até que ele reconhece uma pessoa vindo em sua direção, segurando uma prancha debaixo do braço. Ela vinha sorrindo, contente. Aquela visão encantou Ariano. Ele se levanta para recebê-la.
-Não é que eu te vi lá das minhas altas ondas?!
Rebeca abraça Ariano. Eles trocam beijos no rosto. Ela larga sua prancha na areia.
-Nossa, e eu aqui, olhando pro nada, nem reparei que era você aquela surfista maluca.
Ariano esboça um riso. Rebeca repara em sua ‘’distância’’.
-Será que eu vou ter que te salvar de novo ou é impressão minha?
Ariano balança a cabeça, cabisbaixo.
-É, já vi tudo...
-Eu decidi uma coisa enquanto olhava pro mar. – Disse ele, convicto, erguendo a cabeça.
-Não decidiu que vai se matar não, né?
-Não, pelo contrário. Decidi que vou me libertar de tudo que me acorrenta feito escravo. Decidi que vou viver, finalmente.
-Viva! Isso merece uma comemoração! Vamos beber!
Ariano aceita o convite e segue com Rebeca para um quiosque próximo.
-Beber suco! Saúde em primeiro lugar! – Ela diz, sempre muito descontraída e alegre.
Eles brindam seus sucos.
-Que coincidência a gente se encontrar de novo. Ou você estava me vigiando?
-Ah, que isso... Minha cabeça estava a mil... Mas, pra variar, você me aparece e me torna outra pessoa. Você exala vida, Rebeca. E isso me fascina num ser humano.
-Que bom ouvir isso... Eu também tenho meus problemas, mas nem por isso fico me remoendo aí, pelos cantos. Mas me conta, pelo visto não matou ninguém, né.
-O que adianta eu não matar outra pessoa quando estou matando a mim mesmo?
-Se refere àquele problema amoroso, right?
-Ela foi embora.
Ariano toma um gole de suco.
-Da cidade?
-É... E da minha vida também.
-Se você ama essa mulher de verdade, por que não vai atrás dela?
Ariano hesita, e responde:
-Não vou atrás dela simplesmente porque passei dias da minha vida atrás dela, e nunca fui correspondido.
-Quer saber? Você já devia ter partido pra outra...
-Depende que “outra” seria essa.
-Não existe apenas um caminho para a felicidade.
-Não seria o amor?
-Amamos várias coisas, ou seja, há vários caminhos. Assim como há várias pessoas especiais que nos cercam e, na maioria das vezes, nem percebemos.
Ariano capta a insinuação.
-Rebeca... Você é meu anjo da guarda, não? Sempre me socorre nas horas certas.
-Eu sentia que iríamos nos encontrar de novo, uma hora dessas.
-Ah, sentia? Como assim sentia? – Sorri.
-Ah, sei lá! – Ela faz uma pausa – Eu não te esqueci, foi isso, deve ser... Bora dar um mergulho?
Ariano se sobressalta.
-Mergulho, assim, de repente?
-É! Pra espantar esse “bode”! Vamô cair n’água, vai de roupa e tudo mesmo! O mar tem uma energia incrível. Vem!
Ela da a mão a Ariano, e os dois saem correndo, de mãos dadas pela areia, em direção ao mar; jogaram-se no mar, juntos. Mergulharam, molharam um ao outro. Ariano agora sorria, e sentia verdadeiramente bem. Talvez isso sim poderia ser chamado de amor.

Cinco dias depois...
Euclides havia acabado de voltar do banho de sol quando recebe um pacote, entregue por um policial.
-Que diabo é isso? – Ele pergunta.
-Tome.
-Quem mandou?
-A pessoa pediu pra não dizer. Abra e saberá.
Euclides segura o embrulho, de formato semelhante a um livro... Ele se senta, em seu famoso canto da solidão, e rasga o embrulho. De fato, era um livro...
-Maktub, Paulo Coelho?? Mas... Que sacanagem é essa agora com a minha cara, hein!? – Ele grita, furioso – Vão todos vocês pro inferno!!
Ele abre e, na contracapa, há um dizer. Ele reconhece a letra.
- “Ficar sem nada para fazer deve causar um tédio imenso, não? Então, como sei que você é fã de carteirinha do Paulo Coelho, enviei esse livro de presente para você. Quem sabe, ao ler Paulo Coelho, você possa tirar suas próprias conclusões se suas historias são ou não Literatura? Abraços, Ariano Bezerra”.
-Filho da puuuuuuuuuuuuuuta!
Euclides arremessa o livro contra a parede com toda sua raiva.
-Vai me pagar por essa! – Grita, enlouquecido – Ou eu não me chamo Euclides dos Santos!

Um mês depois
O júri retomava seus lugares. O tribunal estava lotado para assistir o julgamento de Euclides dos Santos. Estavam todos ansiosos pelo resultado que seria anunciado pelo júri. Ariano estava ao lado de seus pais e Julia. Lia Neide e sua mãe também vieram assistir ao julgamento, bem como Ana Lucia.
-O júri decidiu que o réu é culpado.
Fim de julgamento. O juiz decreta prisão de Euclides: pena máxima, trinta anos. Cometeu seis assassinatos, entre outros pequenos delitos. A policia foi buscá-lo. Sua nova moradia seria a penitenciária.
Ariano e companhia vibram com o resultado. Enquanto era levado pelos policiais, ele lança, pela ultima vez, seu olhar epilético a Ariano. Aquele olhar tenebrosamente inesquecível.
Na saída da sala do tribunal, Ariano cumprimenta Lia Neide.
-Chegou ontem, é?
-Sim. Não podíamos perder esse momento. Essa condenação. Ufa... Agora sim, tudo está terminado. E você, como está? Senti saudades.
-Eu estou bem, Lia. E você? Organizou sua vida?
-Sim, deu pra dar uma ajeitada, deu pra pensar em tudo. – Ela sorri.
Lia repara na expressão áurea de Ariano.
-Parece bem mesmo. Bom saber que está bem, e feliz. Pensei muito em você. Pensei em todas as suas declarações de amor, e nos beijos também. Ariano... Eu fiz você sofrer demais.
-Fez, eu sei que fez. Você foi a maior ilusão da minha vida.
-Eu voltei, e desta vez pra ficar – Lia hesita, toma coragem e dispara – Sei que não tenho direito de fazer isso com você, mas... Ariano, eu descobri que você é o homem da minha vida.
Ariano inclina a cabeça, e a ergue em seguida:
-Tarde demais, Lia.
Ela se espanta com aquela frase, e com a naturalidade de Ariano.
-Como assim, você... Você dizia que me amava, que eu era a mulher da sua vida. Eu prometi a você que ia voltar.
-Sim, eu dizia tudo isso sim, Lia. E o que você me respondia? Que me amava como um grande amigo. Nunca me deu esperança. O que queria que eu tivesse feito? Entrado em depressão? Tatuar seu nome no meu braço, ou fazer greve de fome, sei lá. Você está certa quando diz que não tem o direito de me dizer isso agora. Está sendo cruel fazendo isso comigo.
-Ariano, por que isso? O seu amor por mim acabou em um mês? Eu não estava com cabeça pra relacionamento algum naquele momento, e você sabia disso!
-E agora está. É uma pena. Me perdoe se eu for duro demais, mas... Você me matou quando foi embora, aliás, você me matou um pouco em cada “não” que me respondeu. Só que eu encontrei uma pessoa que me salvou, e me deu a vida de volta.
-Já entendi. Você conheceu outra garota...
-Estou namorando há três semanas.
Lia se viu totalmente constrangida e envergonhada.
-Ariano, me desculpa, eu... Eu fui uma estúpida com você agora. Eu... Eu...
Lia Neide sai em disparada em direção à saída do fórum, prendendo o choro. Ariano a vê partir, e fica desolado. Ele vai atrás dela, correndo.
Na escadaria do fórum, ele a grita:
-Lia!
Ela pára, na metade da escadaria. Ariano desce ao encontro dela.
-Você não descobriu que sou o homem da sua vida, sabe por que? Porque isso que você sentiu não foi amor, mas sim, redenção. Você só quer se redimir comigo pelo sofrimento que me causou.
Lia comprime os lábios.
-É, Ariano... Talvez seja mesmo isso... Ou talvez eu tenha que começar a organizar essa bagunça dentro de mim tudo de novo!
Ela sorri, sem perceber que uma lágrima molhara seu sorriso. Ariano afaga seu rosto, seca sua lágrima.
-O tempo deu a resposta dele. Temos que aceitá-la. Não te quero mal. Eu ainda te amo, Lia, não vou negar. Mas jamais abriria mão do relacionamento maravilhoso que estou tendo com a Rebeca por você. Com ela eu me sinto tão bem... A cada dia que passa, eu gosto mais dela. Somos felizes, e... Não posso e não quero abrir mão da minha felicidade por um relacionamento duvidoso.
-Duvidoso? Então acha que não seríamos felizes juntos?
-Quem garante que você não mude de idéia novamente, Lia? E quem garante que eu não vá ter uma recaída pela Rebeca? Vamos ser bons amigos. Vamos falar de amizade.
-Você tem razão. Não quero mais atrapalhar sua vida. Vamos cada um seguir nossos rumos.
-Não quero que volte para São Paulo por minha causa. Por favor, fique.
-Não, Ariano, não vou voltar. Eu vou encontrar um jeito de ser feliz.
-Há vários caminhos para a felicidade. – Parafraseia Rebeca.
Ele lhe sorri carinhosamente e a abraça. Abraça forte. Do alto da escadaria, são observados por Julia e Ana Lucia, que ficam contentes em vê-los juntos.
-Vamos beber um café juntos, meu amigo?
Lia abre um sorriso. Ariano aceita, e os dois seguem juntos para uma lanchonete próxima. Seguem conversando normalmente, como se um vento forte tivesse soprado toda animosidade que reinara sobre eles naquele instante.
Aquela sim seria uma amizade verdadeira de agora em diante. Uma amizade de irmãos.

FIM